Colonizado
e cristão, miscigenado e avesso a Revoluções, o Brasil evangélico adapta a
crença em seus mitos fundadores e difunde um protestantismo que pretende
conquistar o mundo.
Ao final dos anos de 1950, Nelson Rodrigues tornou conhecida a
expressão “complexo de vira-latas” para falar da suposta inferioridade a que o
brasileiro se colocava diante do mundo. Tratava-se, naquela ocasião, de uma
crônica sobre futebol, mas funcionaria durante muito tempo como um deboche do
atraso brasileiro, o país do eterno futuro, cheio de potencialidades naturais e
de “cordialidade”, mas incapaz de resolver seus problemas mais antigos como o
analfabetismo e a fome.
Coincidência ou não, entre os anos 50 e 70, a população
evangélica daria uma salto de quase 70% em relação ao período anterior,
acompanhada pela modernização conservadora durante a ditadura militar, e pela
explosão mundial de movimentos sociais em defesa da liberdade de expressão, dos
direitos das minorias e da negação da guerra. Um por um, os temas da agenda social
brasileira e mundial foram gradualmente incorporados à pregação protestante
tradicional: o pastor abre as portas da Igreja como as de sua própria casa,
possui a autoridade de um pai ao acolher o cidadão mais desamparado pelo Estado
e pela sociedade; oferece-lhe uma família para pertencer, eventualmente emprego
e orgulho próprio, e um objetivo de vida, uma missão: mostrar ao mundo o
caminho da salvação.
Primeiros evangélicos da Assembleia de Deus de Goiânia. 1936.
Podia ter dado certo ou não, como ocorre igualmente nos
processos históricos e na vida, mas em fins da década de 1980, a
redemocratização no Brasil e a vitória do capitalismo no mundo, contribuíram
com importantes ferramentas: a legítima liberdade de crença religiosa, o livre
acesso aos meios de comunicação e a consolidação do modelo liberal de sociedade
de massa: cada um por si e pelos seus.
Contudo, o Espírito Santo, ou para os mais céticos, o senso de
realidade e de oportunidade de alguns pastores e igrejas escapou à observação
restrita às fronteiras e à conjuntura, e enxergou o impacto da fragmentação global.
Conflitos étnicos, desemprego generalizado e a desarticulação da família
tradicional não desfrutam mais da opção dos projetos revolucionários, o Estado
tornou-se autoridade menos capaz com o aprofundamento da globalização, e a
política é hoje um terreno cada vez mais desacreditado pelos jovens. Nascidas
no dia a dia da batalha que cada fiel pentecostal trava com a realidade
brasileira, explicada pela demonização de seus mais diversos reversos, as
igrejas evangélicas oferecem à América Latina, Ásia e África uma nova utopia.
Sem revoluções, imposição ou violência, elas agem pela conversão e crescem
sempre de baixo para cima, raramente seduzem as elites nos primeiros encontros,
misturam com alguma facilidade a sua fé aos aspectos mais tradicionais das igrejas
predominantes, e transformam a religião em uma identidade conquistada e
vencedora, pois que escolhida para levar a palavra de Deus aos incrédulos.
África
e America Latina
Na África e na América Latina, as proximidades da língua parecem
ajudar no crescimento das igrejas brasileiras, sempre associadas a outros
elementos, específicos em cada país. Pesquisadores apontam que nessas regiões
os cultos são realizados em proporção de 40% na língua local, e 60% em
português, atraindo também os grupos de imigrantes brasileiros.
Na Argentina, é possível que as sucessivas crises econômicas,
somadas ao desgaste no orgulho das classes médias, contribuam para uma
aceitação das igrejas bem maior do que no Chile, onde o catolicismo ainda é
profundamente identificado com uma distinção de classe. Bolívia, Peru e México
apresentam um índice de crescimento pentecostal marcadamente entre as
populações indígenas, para as quais há um trabalho direcionado por parte de
algumas igrejas, e minuciosamente acompanhado pela SEPAL (Servindo aos pastores
e líderes), missão internacional que avalia e difunde o crescimento evangélico
no Brasil há mais de 30 anos. No site da instituição/Rede é possível ter acesso
às chamadas “missões transculturais”, cujos objetivos variam de acordo com as regiões
de destino e a formação dos missionários. Estes, são atualmente cerca de 600 e
incluem teólogos, professores, antropólogos, administradores, entre muitos
outros espalhados por quase 70 países do globo.
A motivação mais comum a
levar essas pessoas para lugares tão distantes de suas raízes é a “batalha
espiritual”: cada povo não cristão seria vitima de um tipo de demônio como a
pobreza, a violência, a exclusão, o neocolonialismo, o desemprego, a solidão,
etc. Mas entre os horrores contemporâneos, existe ainda uma hierarquia que alça
ao seu topo o islamismo e as religiões orientais. Daí a existência da chamada
“Janela 10-40”; segundo a qual a maior concentração de pessoas do globo
terrestre que ainda não “encontrou Jesus” localiza-se no retângulo que se
estende da África ocidental através da Ásia, entre os graus 10 e 40 a norte do
equador, incluindo o bloco muçulmano e o bloco budista, ou seja, bilhões de
pessoas à espera da conversão.
Ao que é possível obter de informações nos sites das igrejas
como a Universal do Reino de Deus, e em pesquisas acadêmicas variadas, as missões
são estudadas com bastante antecedência por uma comissão que visita o país ou
região de destino e elabora uma espécie de dossiê avaliando as probabilidades
de sucesso, a legislação local, os trâmites relacionados à existência jurídica
da Igreja e, sobretudo, a cultura local. Contexto nacional, linguagem
apropriada, classes e modos de vida específicos, localização ideal dos templos
com vias de acesso e sem concorrências, compra ou preferencialmente o aluguel
de um imóvel com as proporções adequadas, arrecadamento estimado dos dízimos...
A fé evangélica é também uma empresa de porte multinacional, embora esteja
longe de se reduzir a isso.
Movidas especialmente pela adesão global de populações pobres,
com baixos graus de instrução, não-brancas, jovens, e mulheres, tudo indica que
essas igrejas buscam e produzem fieis cada vez mais diferentes entre si,
marcados por histórias nacionais e individuais muito particulares, parecidos
com a sociedade em que vivem mas, ao mesmo tempo, sensíveis a um discurso que universaliza
sentimentos velhos conhecidos do povo brasileiro.
Desde a síndrome de vira latas criada por Nelson Rodrigues, até
a opressão sentida pelas tribos indígenas latino-americanas, agora fortalecidas
pelo poder eleitoral dos evangélicos, a exclusão social, no caso dos imigrantes
nos Estados Unidos, e a diversidade, marca de nossa identidade histórica e
cultural, agora oferecida aos russos, aos chineses, e aos países muçulmanos
mais radicais... Não sem algum custo, é claro.