A
trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século XIX revela que a
história das religiões afro-brasileiras é, sobretudo, a de crescente
mistura étnica e social
João José Reis
Foi
na Bahia do século XIX que ficou estabelecido o modelo básico adotado
pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradição, o Ilê Iya Nassô –
a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como Candomblé do Engenho
Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar diferentes
deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria
alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a
consolidação de novas identidades africanas em terras brasileiras.
Mas
teria sido aquele terreiro o único com essas características no
ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a história das religiões
afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os indivíduos e grupos
envolvidos. É a respeito de líderes, acólitos, devotos e clientes que
vamos falar aqui. Informações sobre homens e mulheres participantes de
formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de
fontes, os registros policiais e as notícias de jornal. Esses documentos
eram produzidos por indivíduos que, em geral, não eram iniciados no
candomblé, não tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade
ou lazer, e que o estavam perseguindo e/ou condenando. Por isso, as
informações que apresentam são quase sempre incompletas, distorcidas ou
simplesmente equivocadas. Apesar disso, elas revelam muito das práticas e
dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do
século XIX.
Durante
esse período, na Bahia, a maior atividade do candomblé acontecia nos
subúrbios de Salvador. Apesar disso, não foram poucas as denúncias de
episódios acontecidos na cidade, sob as barbas da polícia, como insistia
O Alabama, periódico “crítico e chistoso”, publicado entre 1864 e 1871.
Dedicando-se a uma dura e sistemática campanha contra os candomblés
baianos, o jornal publicava, com considerável freqüência, histórias de
pessoas envolvidas nesses rituais.
Os
que podem ser considerados líderes do candomblé não eram apenas os
indivíduos que presidiam os terreiros propriamente – ou seja, uma
comunidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierárquica e
organizacional, calendário de festas, e assim por diante. Eram também
os auxiliares mais próximos dos chefes de terreiros, incluindo, por
exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e o responsável pelo
sacrifício votivos de animais. Com freqüência, adivinhos e curandeiros
atendiam em casa, sem participar da hierarquia dos terreiros de
candomblé. Alguns atraíam centenas de consulentes, mesmo de fora da
Bahia, até da África.
Nomes
como o da sacerdotisa Nicácia, uma mulata que teria morrido em 14 de
março de 1807, conforme foi registrado com precisão, no final do século
XIX, em um Resumo chronologico e noticioso da Província da Bahia desde
seu descobrimento em 1500. Segundo o autor da obra, o registro de
Nicácia fora feito porque ela “tão falada foi por muito tempo, e da qual
inda hoje se referem factos interessantes.” Infelizmente ele não relata
esses “factos.” Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje
bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses
antes quando fora seguida por uma multidão até cidade, presa por ordem
do governador da capitania da Bahia, o Conde da Ponte. Esse governador
desencadeou uma vigorosa campanha repressiva contra candomblés e
quilombos nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos. Mas a
perseguição aos cultos afros aconteceu durante quase todo o século XIX
na Bahia.
Amaro,
um liberto africano, foi uma vítima. Preso em novembro 1855 em incursão
policial provocada por rumores de uma conspiração de escravos, era
suspeito de ser “o grande sacerdote dos africanos” no distrito da Sé,
populoso centro administrativo e religioso de Salvador. Com ele foi
encontrada a maioria dos “vários objectos de [...] crenças” africanas
confiscados em sua casa e outras da vizinhança. Alguns desses objetos
foram assim descritos pelo subdelegado: “figuras, símbolos, sapos mortos
e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas”. Nessa mesma
ocasião, na freguesia de Santana, foi preso o crioulo (preto nascido no
Brasil) Francisco Antonio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relatório
policial porque “com embustes e superstições reúne em sua casa Africanos
escravos para danças e [para] batuques com ofensa à moral pública”. Nem
Amaro nem Vico Papai estavam liderando conspiração alguma, mas sim
cultos da religião africana, o que não deixava de ser uma forma de
rebeldia.
A maioria
dos líderes identificados no período tinha nascido na África. É
possível ir um pouco mais longe na tentativa de determinar a origem
deles. Os escravos importados para a Bahia ao longo da primeira metade
do século XIX vieram principalmente de povos do grupo lingüístico gbe,
localizados sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje
na Bahia; ou eram falantes do iorubá, vindos do Sudoeste da atual
Nigéria e chamados nagôs na Bahia. Maiores vítimas do tráfico
transatlântico nos anos que antecederam sua proibição definitiva, em
1850, os nagôs alcançaram a marca de quase 80% dos escravos africanos em
Salvador na década de 1860. Tradições religiosas nagôs e jejes
predominaram no candomblé da Bahia oitocentista, mas no final do século
os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia.
Embora
candomblé seja um vocábulo de origem banta (família língüística dos
escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc.,
trazidos principalmente de território da atual Angola), poucas são as
evidências escritas sobre cultos especificamente bantos no século XIX
baiano. Mas temos algumas expressões como candonga e milonga para
designar feitiçaria, e calundu, para definir a prática religiosa
africana em geral. Este último termo, que predominou até o final do
século XVIII, foi mais tarde substituído por candomblé. É possível,
porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os líderes desse
universo religioso.
O
papel de líder era também desempenhado por crioulos, pardos e até
brancos. Tem-se notícia que, em julho de 1859, o português Domingos
Miguel e sua amásia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa à
rua Coqueiros d’Água de Meninos, porque ali organizavam um candomblé com
“danças e objetos de feitiçaria”, dele participando homens e mulheres
pardos, crioulos e africanos, escravos, livres e libertos. Foram presas
dezesseis pessoas. Que o português estivesse envolvido naquela
experiência religiosa parece provável, mas é possível que a batuta
ritual estivesse de fato nas mãos de sua amante parda ou de outra pessoa
do grupo; talvez nas mãos de Felisarda Sulana, escrava e única africana
presa com o grupo.
Nenhuma
dúvida foi deixada pela polícia no caso da outra pessoa branca em nossa
lista de líderes. Maria Couto foi abertamente acusada de ser “dona ou
diretora” de um “grande candomblé” no Saboeiro, arredores de Salvador,
que estivera ativo – batendo tambor e dançando para os deuses – por
alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados.
Segundo o chefe de polícia, além de moradores locais bem conhecidos,
estranhos armados e escravos fugidos freqüentavam aquelas cerimônias, o
que recomendava cuidado. O chefe de polícia ordenou ao subdelegado
daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse à sua presença –
sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas
curioso, o fato de uma casa de candomblé ser liderada por uma mulher
branca.
Alguns
escravos faziam parte da liderança religiosa africana. O mais antigo
documento conhecido no qual o termo candomblé aparece é relativo ao
escravo angola Antônio, descrito por um capitão de milícias em 1807 como
“presidente do terreiro dos candombléis”. Observe-se que aqui também
aparece a palavra terreiro associada a candomblé, outra novidade. Um
bem-sucedido sacerdote, adivinho e curandeiro, Antônio vivia longe de
sua senhora, em terras localizadas em um engenho no rico município
açucareiro de São Francisco do Conde, onde ele tinha estabelecido seu
terreiro. Ali, o escravo era procurado por “número maior [de pessoas] de
alguns Engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e Domingos”.
Segundo um relatório policial, ele exigia, “apesar de ser moço, que lhe
tomassem a benção, e lhe prestassem obediência, inda os mais velhos”. De
início, Antônio conseguiu escapar às forças de milícia enviadas para
capturá-lo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha
acesso a algum capital obtido de sua prática religiosa. Seis escravos
foram presos para informar onde Antônio se escondera. Ele foi preso
porque o feitor subornado não cumpriria sua parte no trato.
Para
ser chefe de terreiro, que implicava dedicação grande de tempo, um
escravo tinha que ter relações especiais com seu senhor. Era o caso de
Antônio, cuja senhora o deixava viver sobre si. Infelizmente não sabemos
por que. É capaz que ela temesse seus poderes espirituais e se
intimidava com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicação
pode ser mais simples: como muitos outros senhores, ela o autorizava a
trabalhar sem impedimentos, desde que lhe pagasse parte da renda
adquirida. Há casos do período colonial de senhores que chegaram a
agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfação à
Inquisição.
Uma
expressiva maioria dos líderes do candomblé havia nascido livre ou,
principalmente, adquirido a alforria por compra ou doação. Os libertos
formavam um setor importante da população africana e crioula na Bahia,
sobretudo na capital, onde o sistema do ganho facilitava o acesso do
escravo ao trabalho remunerado − como carregadores, vendedores,
operários e artesãos −, que permitia a formação da poupança amiúde usada
para a compra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores
responsáveis pela estruturação do candomblé baiano nesse período. Alguns
deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ganho com
práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas
complementaram formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade.
"Apesar
de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o
candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura
cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios
africanos de diferentes etnias".
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Negociantes,
quitandeiros, ambulantes, vendedores eram algumas das ocupações de
muitos dos adivinhos, curandeiros, pais e mães de terreiros. Mas não
deviam ser poucos os sacerdotes africanos vivendo exclusivamente da
religião, a se considerar os muitos clientes que, segundo as fontes,
eles tinham. Esses clientes em geral deixavam, individualmente, pouca
coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando
pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana
liberta Maria Romana que, em 1856, acusou um certo Jorge, africano
liberto como ela, de lhe tomar todo o dinheiro, jóias, além de um baú de
roupas e até uma casa, como remuneração pelo tratamento de seu marido, o
também africano liberto Pedro Theodoro da Silva, que segundo ela teria
sido lentamente assassinado com “ervas venenosas” feitas por Jorge.
Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma reparação,
Maria resolveu denunciar Jorge à polícia. Não se tem notícia do desfecho
dessa história. Mas decerto, a reputação do acusado foi arruinada com o
escândalo.
Era
comum que esses líderes fossem despóticos, o que podia até elevar o seu
prestígio, mas eles tinham de balancear essa reputação com outra mais
positiva de generosidade, proteção e sobretudo eficiência ritual. Esta
última é que ajudava as religiões africanas a recrutar, desde o período
colonial, devotos e clientes de diversas camadas sociais.
Apesar
de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o
candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura
cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios
africanos de diferentes etnias. Documentos relativos ao fim do século
XVIII e à primeira metade do XIX, ainda que escassos, sugerem a formação
de identidades étnicas a partir dessa mistura. Em 1785, por exemplo,
seis africanos foram presos em um calundu na vila de Cachoeira, no
Recôncavo, onde danças, batuques e cantos eram freqüentes. Eles foram
identificados por uma testemunha africana no inquérito policial como
dois “marris”, dois “jejes”, um “dagomé” e um “tapá” (termo iorubá que
se usava na Bahia para designar os nupes, povo da África Ocidental).
Apesar
de identidades diversas e mesmo da possível hostilidade que pudesse ter
havido na África entre algumas dos grupos ali representados, eles eram
falantes, exceto o tapá, de línguas gbe. Portanto, antes da criação do
Ilê Iya Nassô, a religião africana já servia como instrumento de
alianças interétnicas na Bahia, sobretudo no mesmo universo lingüístico.
Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos.
Em
1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas,
dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Brotas.
Aquilo representava outro passo largo na formação do candomblé baiano: a
incorporação ritual de negros nascidos do lado de cá do Atlântico.
Considerando sua reação, o juiz que invadiu o terreiro se defrontara com
algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província,
ele argumentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar
deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental perigosa
para a ordem pública; a seu ver, negras nascidos no Brasil deviam ser
exclusivamente católicas.
Mas,
de acordo com o juiz de paz, elas, ao contrário, “adoravam” deuses
africanos sem muita preocupação em escondê-lo, embora fingissem ser
devotas dos santos católicos. Era como se à mistura étnica de fato
equivalesse a religiosa. O juiz não entendeu, mas testemunhava um
fenômeno, novo para ele, já característico da religiosidade dos que
viviam na Bahia: a circulação das pessoas através de diferentes sistemas
religiosos, sem necessariamente misturá-los.
Na
segunda metade do século XIX, abundam evidências sobre africanos,
crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no
candomblé. Com o correr dos anos, observa-se um processo de
nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda
continuava predominantemente africana.
Em
1862, tendo sabido que um grupo de crioulos havia construído terreiro
em um bairro sob sua jurisdição, num local chamado Pojavá, um
subdelegado escreveu que “neste distrito nunca os crioulos se deram a
tal divertimento, foi a primeira vez que aqui o praticaram com admiração
de [todos]”. Essa mesma autoridade vangloriou-se de haver acabado com
todos os candomblés de africanos em sua jurisdição, que representavam –
escreveu – “um modo de vida dos africanos que se não queriam empregar na
lavoura”. O jornal Diário da Bahia fez um perfil detalhado dos presos
no candomblé do Pojavá. Dos 26 homens, um era africano, três pardos e 22
crioulos. Quanto às mulheres, duas eram africanas libertas, quatro
“pardas escuras” e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; dentre os homens,
apenas quatro crioulos eram escravos. Além da predominância parda e
crioula, o candomblé era formado, sobretudo, por gente livre e liberta
que eram, ao contrário do insinuado pelo subdelegado, trabalhadores.
Havia um tipógrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marceneiro,
um aparelhador e um lavrador; dois saveiristas e dois funileiros; três
alfaiates e três carpinteiros; nove pedreiros. As ocupações das mulheres
não foram listadas.
A
composição do candomblé do Pojavá refletia os ventos de renovação
característicos do processo de nacionalização desse universo cultural no
século XIX, fosse seu dirigente africano ou não. Era um candomblé
predominantemente formado por gente emancipada da escravidão e, a se
considerar o perfil ocupacional dos homens, gente empregada em um setor
mais especializado do mercado urbano de trabalho. Eram também jovens e
nascidos no Brasil. Quanto à predominância crioula, o Pajová não era
exceção. No ano seguinte, 1863, um subdelegado da freguesia da Vitória
declarou que ali os “filhos da terra” já tinham substituído os africanos
nos “batuques de tabaques”. Entretanto, os centros religiosos africanos
continuariam a existir, pelo menos, até a virada do século. E o apelo à
pureza africana se tornaria índice de prestígio dos candomblés, desde
essa época.
Entre
os clientes ocasionais e visitantes, encontra-se nos documentos todo e
qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacional.
Havia negros, brancos e mulatos, escravos e senhores, homens de negócio e
vendedores de rua, professores e estudantes, prostitutas e madames,
policiais e criminosos, artesãos, empregados públicos, padres católicos,
políticos. Pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e
curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que
celebravam divindades específicas ao longo do ano.
Típico
neste caso era o que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa
casa na ladeira de Santa Tereza, ao lado do convento com o mesmo nome
onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas,
assim como “pessoas de gravata e lavadas”, participavam de cerimônias
presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nagô da cidade-porto de
Onim (Lagos), que havia sido escravo num engenho do Recôncavo. Sodré
era um afamado adivinho e “feiticeiro” que atendia a gente de toda
sorte. Mas havia muitos outros e outras. Entre a clientela de Anna
Maria, mãe de terreiro angola denunciada por O Alabama em 1864, constava
uma parda que queria curar o filho de feitiço, um português e uma
crioula que procuravam tirar o diabo dos corpos dos respectivos amásios,
um crioulo em busca de cura para seu afilhado e uma “moça”,
provavelmente branca, Virgínia por acaso, que queria arrumar casamento.
Se
for lícito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com
africanos e era encabeçado, sobretudo, por eles, é também correto dizer
que essa religião aos poucos deixaria de ser uma instituição ou uma
forma de espiritualidade apenas africana, nem era uma religião exclusiva
de escravos.
A
história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de
sua mistura étnica, racial e, logo, social. Um processo que ocorreu
em diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens
étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos
descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de
serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e
sociais. Obviamente isso não fez do candomblé parte da cultura
dominante local, pois ele continuou a ser visto – talvez pela maior
parte da população e decerto pela maioria da elite – como anticristão ou
incivilizado e legitimamente sujeito à perseguição e à brutalidade
policiais.
Durante
todo o século XIX e por muitas décadas depois, o candomblé continuou a
ser identificado como uma instituição africana. Devemos admitir que,
embora essa religião tenha se difundido na sociedade, enquanto existiram
africanos na Bahia, provavelmente existiram candomblés apenas de
africanos, e mesmo entre estes alguns etnicamente restritos. Mas, ainda
que os terreiros não tenham deixado de representar uma memória da
identidade étnica – pois continuam até hoje a se definir, de acordo com
sua “nação”, como nagô, ketu, jeje, angola –, tal identidade, em virtude
da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na
linhagem étnica para se basear na afiliação espiritual. Mesmo com a
repressão policial e o menosprezo público, esse processo transcorria a
todo vapor nas vésperas da abolição da escravidão, em 1888.
João José Reis é
professor do departamento de História da Universidade Federal da Bahia
(UFBA) e autor de REBELIÂO ESCRAVA NO BRASIL: A HISTÒRIA DO LEVANTE DOS
MALÊS EM 1835 ( Companhia das Letras, 2003)
Fonte:
Revista de História