Elisa Frühauf Garcia
Base para a formação da economia colonial, a captura e a escravização
indígena na litogravura de Jean Bastiste Debret do século XIX. (Fundação
Biblioteca Nacional)
Tão logo fizeram os primeiros contatos na costa brasileira, os
portugueses começaram a carregar suas embarcações com mercadorias
extraídas da nova terra para serem levadas à Europa. Entre elas, o
pau-brasil, animais exóticos e... índios. Em pouco tempo tornou-se comum
encontrar escravos indígenas nas ruas de Lisboa e arredores,
principalmente nos serviços domésticos. Eles também eram vendidos na
Espanha e em seus domínios.
Quando os portugueses deram início às atividades produtivas no Brasil, a
partir da criação das capitanias hereditárias, decidiram utilizar os
índios para o trabalho escravo. Sem recursos para importar africanos e
sem as condições necessárias para o emprego de mão de obra assalariada,
os indígenas acabaram sendo a base da formação da economia colonial.
Transformá-los em escravos era uma tarefa difícil e arriscada. A
presença portuguesa no Brasil e a ocupação das novas terras dependiam do
apoio da população nativa. Para defender tão vasto território, a Coroa
precisava dos índios como aliados militares contra os concorrentes
europeus (no século XVI, especialmente os franceses). Eles também eram
úteis para combater grupos indígenas rivais que atacavam os incipientes
núcleos coloniais, além de fornecerem informações e alimentos
indispensáveis à sobrevivência em uma terra ainda mal conhecida.
Se a princípio chegou a existir um frágil equilíbrio entre índios e
portugueses, ele logo se rompeu. Os nativos acharam bom negócio vender
aos recém-chegados seus prisioneiros de guerra, antes utilizados em
atividades rituais e sociais (como a antropofagia). Quando, porém, o
apresamento de escravos tornou-se um negócio concorrido, a ânsia de
obter mais cativos desfez as alianças iniciais.
No início da década de 1540, por exemplo, um certo Henrique Luís,
traficante de escravos indígenas na costa, botou a perder o contato
amistoso construído até então com os índios da atual divisa do Rio de
Janeiro com o Espírito Santo. Tomado pela ambição de um lucro rápido e
fácil, ele sequestrou uma liderança nativa aliada e exigiu como resgate
um determinado número de escravos. O resgate foi pago, mas o
comerciante, ao invés de cumprir o acordo, entregou o chefe ao grupo
rival, obtendo assim escravos de ambos os lados. Os índios reagiram à
altura da ofensa: tornaram a vida dos portugueses impossível naquela
região. Não foi à toa que, ao escrever a sua História do Brasil
no início do século XVII, frei Vicente do Salvador comentou que não era
possível obter um testemunho direto sobre a ferocidade daqueles índios,
pois os que por lá se aventuravam não retornavam com vida para contar.
Muitos colonos apelaram a Deus e escreveram ao rei, implorando por
alguma atitude em relação à conduta inescrupulosa dos traficantes. Não
agiam movidos por fins humanitários, mas sim a partir de cálculos
estratégicos: se as coisas continuassem como estavam, temiam que os
portugueses fossem expulsos do Brasil. Para piorar, os franceses se
aproximavam cada vez mais dos índios e entravam na disputa pelo
território. A Coroa se viu então diante de um dilema: como escravizá-los
e, ao mesmo tempo, manter a sua “amizade”? A solução encontrada foi
separar os índios aliados dos índios inimigos.
Esta diferenciação já existia nas primeiras instruções dos monarcas,
que aconselhavam os navegadores a tratarem com distinção os líderes
“amigos” e evitarem conflitos. Mas a nova postura em relação aos índios
só começou a ser sistematizada em 1549, com a instalação do
governo-geral em Salvador. Coube ao primeiro governador, Tomé de Souza,
regulamentar a relação com os índios. Para isso, contava com dois
importantes recursos: um regimento elaborado pelo rei oferecendo
garantias aos aliados e a presença dos jesuítas, que chegaram na mesma
época e passaram a ter voz ativa nas questões indígenas.
O estatuto dos índios na sociedade colonial reafirmava a liberdade dos
aliados. É bem verdade que eles eram obrigados a trabalhar para a Coroa e
para os colonos, mas deveriam ser remunerados e tinham uma série de
outras garantias, como a propriedade coletiva das terras dos seus
aldeamentos. A escravização dos índios, porém, continuava permitida em
duas situações: o resgate e a guerra justa. O primeiro fazia referência
aos prisioneiros feitos pelos próprios índios, destinados à
antropofagia. Neste caso, algum colono poderia resgatar o prisioneiro
que, em retribuição, trabalharia algum tempo como escravo. Já a guerra
justa era um recurso empregado quando os índios atacavam os portugueses,
que então tinham o direito de defender-se e de escravizar os
prisioneiros. Não foram poucos, no entanto, as guerras justas e os
resgates que não passaram de um pretexto para a obtenção de escravos.
À medida que a economia colonial se desenvolvia a partir de um produto
destinado ao mercado internacional (o açúcar no Nordeste), os colonos
começaram a importar escravos de origem africana. Assim, evitavam
problemas com a lei e se beneficiavam da maior regularidade da oferta
desta mão de obra. Trabalhadores indígenas, escravos ou livres,
continuaram a existir, mas não formavam mais a base da produção.
No entanto, em regiões menos prósperas, os índios ainda eram parte
importante da mão de obra, por vezes a principal. Sem outra alternativa
de enriquecimento, os colonos lutavam pela manutenção dos "seus índios",
como então se dizia. Os paulistas alegavam que os índios eram “um
remédio para a sua pobreza”. Uma forma de mantê-los cativos era a
administração particular. Teoricamente, tratava-se de uma relação de
troca: os índios eram livres, mas prestavam serviços ao seu
"administrador" que, como pagamento, os instruía na fé católica. Na
prática, muitas vezes adquiria ares de escravidão, como quando os índios
eram deixados em testamento junto com as demais propriedades.
Em certas ocasiões, como ocorreu em 1640, as tentativas de proibir
definitivamente a escravidão indígena geraram verdadeiras revoltas,
obrigando a Coroa a negociar. Na época, os jesuítas estavam empenhados
em obter a proibição das expedições dos paulistas às missões do Paraguai
em busca de cativos, conhecidas como "bandeiras" e completamente
ilegais. Não foi difícil obter do papa e do rei a proibição específica
de tal atividade, o problema foi colocá-la em prática. Por conta disso,
os jesuítas foram sumariamente expulsos de São Paulo. No Rio de Janeiro,
por pouco não aconteceu o mesmo: quando os moradores ficaram sabendo da
notícia, dirigiram-se enfurecidos à residência dos padres. Alguns, mais
exaltados, gritavam: "Mata, mata!". Diante da ameaça, os jesuítas
recuaram e deixaram as coisas como estavam. Dessa vez, como em muitas
outras, os colonos ganharam.
O cenário só se modificou no final da década de 1750, quando o
secretário de Estado do Reino de Portugal, futuro Marquês de Pombal,
declarou a absoluta e definitiva liberdade indígena. O Diretório dos
Índios propunha a inserção dos índios na sociedade colonial em condições
de igualdade com os súditos de origem portuguesa. A Coroa pretendia
assim criar uma massa populacional capaz de ocupar o território
brasileiro, especialmente as áreas de fronteira em disputa com a
Espanha. Por um lado, os índios tiveram dificuldades em lidar com a nova
realidade, que previa uma série de mudanças culturais, como a
obrigatoriedade do uso da língua portuguesa. Por outro, receberam bem
certas medidas, como o acesso a cargos geralmente restritos aos
luso-brasileiros, como oficiais camarários e militares.
De maneira geral, os índios fizeram um uso bastante ativo do Diretório
em diferentes partes do Brasil. Muitos já possuíam uma longa experiência
com a sociedade colonial e sabiam utilizar os recursos disponíveis a
seu favor. Índios que estavam em situação de cativeiro irregular, por
exemplo, conseguiram obter a liberdade recorrendo à Justiça. Sua lenta e
progressiva conquista de direitos começava, de fato, ali.
Elisa Frühauf Garcia é professora da Universidade Federal Fluminense e autora de As diversas formas de ser índio (Arquivo Nacional, 2009).
Saiba mais - Bibliografia
MARCHANT, Alexander. Do escambo à escravidão. 2. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.
MONTEIRO, John. Negros da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
PERRONE-MOISÉS, Beatriz. “Índios livres e índios escravos: os
princípios da legislação indigenista do período colonial (séculos XVI a
XVIII)”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 115-132.
SCHWARTZ, Stuart. “Uma geração exaurida: agricultura comercial e mão de
obra indígena”; e “Primeira escravidão: do indígena ao africano”. In:
___. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Filme
Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1970)
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário