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terça-feira, 11 de agosto de 2015
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Na lei e na marra - Combate inglês ao tráfico de escravos
Após abolir o tráfico de escravos em seu Império, a
Grã-Bretanha partiu para uma acirrada campanha em outras nações
Juliana
Barreto Farias
Os imensos
caldeirões de cobre postados no convés do solitário navio mercante comprovavam:
a embarcação era usada “no carregamento de africanos da costa para o comércio
proibido de escravos”. E o capitão do brigue Wizzard, da Marinha de Guerra de
Sua Majestade Britânica, não teve dúvidas. Ao avistá-los no amanhecer de 27 de
dezembro de 1838, decidiu iniciar uma “caçada” nas proximidades da costa de
Cabo Frio, litoral da província do Rio de Janeiro. À força, oficiais e soldados
invadiram o navio suspeito e rapidamente tomaram seu controle. Assim que
abriram as escotilhas do porão, depararam com uma visão aterradora: 230
africanos – homens, mulheres e crianças – se acotovelavam na escuridão.
Desde pelo
menos 1810, autoridades inglesas e brasileiras patrulhavam águas americanas e
africanas em busca de embarcações envolvidas no tráfico ilegal de escravos.
Depois de abolir o comércio negreiro em suas possessões, no ano de 1808, o
Império Britânico partiu para uma acirrada campanha para que todas as outras
nações também desistissem daquele lucrativo negócio. E não mediu esforços para
alcançar seus objetivos.
Os
questionamentos em torno da escravidão e, sobretudo, do tráfico de africanos
mobilizavam filósofos, intelectuais e políticos europeus desde a primeira
metade do século XVIII. Ao lado de pensadores como Montesquieu, Rosseau e Adam
Smith, grupos religiosos protestantes, como os quakers,
atacavam a imoralidade da instituição escravista e do comércio que a
sustentava. No final do século, era difícil encontrar na Europa quem a
defendesse. Especialmente com as repercussões dos ideais de igualdade e
liberdade das revoluções Francesa (1789) e Haitiana (1791). Ainda assim, mesmo
com seu profundo apelo moral, essa campanha antiescravagista não estava baseada
numa postura pró-africana ou mesmo na crença da igualdade dos negros. Pelo
contrário. Alguns de seus líderes e divulgadores apostavam em ideias e práticas
“racistas”.
De acordo com
o historiador Herbet Klein, o que estava em jogo, na verdade, era a crença de
que o trabalho livre era um dos pilares da sociedade moderna, uma garantia do
progresso da humanidade. E essa postura era compartilhada tanto por
capitalistas que pregavam o livre comércio como pelos próprios trabalhadores
que estavam se integrando ao mundo urbano e cada vez mais industrializado da
Inglaterra do século XIX. Enfrentando o impacto do sistema salarial e a
autodeterminação nessa nova sociedade, eles também viam a escravidão como algo
antiético e uma ameaça à sua própria segurança, mesmo em terras distantes.
Não
à toa, a campanha rapidamente se alastrou pelos gabinetes e ruas da
Grã-Bretanha e também por suas colônias. Dos dois lados do Atlântico, 90 mil quakers de língua inglesa começaram, a partir
de 1750, a forçar seus membros a abandonarem o tráfico e a propriedade escrava.
Em 1787, eles se integraram à mobilização nacional, chegando rapidamente aos
metodistas e a um grande número de igrejas protestantes tradicionais e seitas
radicais. Entre 1787 e 1792, diversos clubes populares antiescravagistas formaram-se
em Londres, e uma campanha de petições em massa foi organizada. Como primeiro
resultado dessas investidas, houve modificações nas leis sobre transporte dos
cativos. Liderados por William Wilberforce, os abolicionistas que atuavam no
Parlamento também foram angariando restrições parciais, com o fechamento de
algumas áreas de comércio escravista. Até que, em março de 1807, veio a
suspensão total do tráfico britânico, colocada em prática no primeiro dia do
ano de 1808.
Daí em diante,
os ingleses se empenhariam no combate sistemático ao “infame comércio”
realizado por outros países. Em 1814, com o possível retorno francês ao
negócio, conseguiram reunir mais de 700 petições com assinaturas de quase 1
milhão de pessoas exigindo a abolição universal. No ano seguinte, as pressões
só aumentaram, e o governo britânico negociou um tratado com Portugal,
proibindo imediatamente o tráfico acima da linha do Equador e garantindo o
início de sua extinção progressiva para o Brasil. Ainda em 1815, durante o
Congresso de Viena, as principais nações europeias concordaram com as
determinações inglesas, com exceção da França e dos países ibéricos. Contudo,
com o fim das Guerras Napoleônicas, os franceses foram forçados a ficar ao lado
dos abolicionistas da Inglaterra. Portugal e Espanha tornavam-se os únicos no
velho continente a ainda praticar o comércio de escravos, mesmo com as
proibições já firmadas.
O governo
espanhol tentou ao máximo protelar a abolição total. Como perdera a maior parte
de seu império na América com a independência de suas colônias, estava cada vez
mais dependente da crescente economia açucareira de Cuba, sua principal fonte
de financiamento. Por isso, acabou adotando uma espécie de jogo duplo, mantendo
o tráfico naquela área colonial até o final da década de 1860.
O caso
português era um tanto diferente. O país era intimamente dependente da
Inglaterra: contava com sua proteção para o mercado de vinho do Porto e tinha
apoio político em diversas questões continentais desde o século XVIII,
especialmente nas lutas travadas contra a invasão napoleônica, a partir de
1807. Estava por isso muito mais vulnerável às investidas inglesas. Já em 19 de
fevereiro de 1810, foi assinado o Tratado de Aliança e Amizade entre o Príncipe
Regente de Portugal e o Rei do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Era o
primeiro ato formal que daria impulso a uma série de tratados internacionais
entre os dois países – e, após a Independência, com o Brasil – para dar fim ao
tráfico de cativos.
Por este
acordo, ficava firmado que o príncipe português, convencido da injustiça do
comércio negreiro e decidido a cooperar com Sua Majestade Britânica, adotaria
os meios mais eficazes para atingir uma abolição gradual em seus domínios.
Contudo, nesse primeiro momento, nem todas as suas áreas seriam “fechadas”. Os
direitos portugueses sobre alguns territórios africanos, como Cabinda e
Molembo, ainda seriam mantidos. E o comércio com Ajudá e outros portos ocupados
por Portugal também persistiria. Mesmo assim, ainda havia dúvidas sobre os
locais na costa africana em que era permitido negociar escravos. Diversas
embarcações de súditos portugueses acabaram sendo apreendidas sob acusação de
tráfico ilegal, o que trouxe uma certa agitação entre os negociantes,
especialmente os estabelecidos na praça da Bahia. Em apenas dois anos, 17
embarcações foram apresadas pela Marinha de Guerra britânica.
Tanto
na província baiana como em outras terras e águas das Américas e da África, os
britânicos enfrentavam forte resistência de governos e de pequenos e grandes mercadores.
Para contorná-la, a solução era sempre a mesma: mais pressão. Além de firmar
tratados cada vez mais rigorosos, aparelhavam ainda mais sua frota
(estabelecida até mesmo no litoral africano) e criavam comissões judiciais
mistas com outras nações. Com sedes em Serra Leoa, Rio de Janeiro e Londres,
esses grupos – que contavam com funcionários dos países envolvidos – deviam
julgar se os navios detidos eram ou não empregados no comércio de escravos. Se
a acusação ficasse comprovada, a embarcação era confiscada e os escravos
recolhidos, transformados em africanos livres – alforriados
e estabelecidos como trabalhadores livres consignados ao governo do país em que
foram julgados.
Mas nem todas
essas medidas pareciam suficientes para paralisar as negociações negreiras. Nos
anos de 1831 e 1832, o governo brasileiro aprovou uma legislação que
supostamente colocava em prática a proibição oficial, permitindo a inspeção
policial de todas as embarcações que chegavam a seus portos. Parece ter sido
ignorada: o tráfico foi realizado abertamente até 1850, quando, enfim, os
navios britânicos entraram em confronto direto com a frota mercante brasileira.
Embora as
repercussões tenham chegado a Cuba, os negócios ainda foram mantidos ali por
mais uma década. A escravidão não acabava ali, mas o fim do tráfico determinou
que seus anos estavam contados.
Juliana
Barreto Farias é professora
na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e coautora de No
labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX (Arquivo Nacional, 2005).
Saiba
mais
BETHELL,
Leslie. A abolição do tráfico de
escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de
escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São
Paulo: Edusp, 1976.
KLEIN, Herbet. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: Funpec Editora, 2004.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no fim do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850).Campinas, SP: Cecult/ Unicamp, 2000.
KLEIN, Herbet. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: Funpec Editora, 2004.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no fim do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850).Campinas, SP: Cecult/ Unicamp, 2000.
Fonte: Revista de História
sábado, 1 de agosto de 2015
PAI CONTRA MÃE
A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e
aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns
aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço,
outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres. A máscara
fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha
só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça
por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque
geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e
aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era
grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o
grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na
porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos
escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à
direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava,
naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde
quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam
com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia
ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada.
Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de
padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava
a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve,
ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo,
deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa,
não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam
ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava
algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os
sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por
onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha
promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma
boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma
vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma
trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um
ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se
mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações
reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a
pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, -- em família,
Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza,
quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse
homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele
chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que
era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era
carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A
obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao
cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório,
contínuo de uma repartição anexa ao
Ministério do Império, carteiro e
outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara,
não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo,
entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu
adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou
apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras
finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras.
Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou
muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e
dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia
tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o
tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela,
ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela
notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez
nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia
a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de
longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la,
deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a
moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido
verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi-para lembrar o
primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses
depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos
por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam
a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes;
diziam que era dado em demasia a patuscadas.
--Pois ainda bem, replicava a noiva;
ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica,
depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma
vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
--Vocês, se tiverem um filho, morrem
de fome, disse a tia à sobrinha.
--Nossa Senhora nos dará de comer,
acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando
ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o
casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O
casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara,
Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem
esforço.
Ela cosia agora mais, ele saía a
empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O
filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido
na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o
fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou
desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
--Deus nos há de ajudar, titia,
insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha.
Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora
com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas,
tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela,
vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa,
os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má
vontade.
--Vocês verão a triste vida,
suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.
--Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco...
--Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o
pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela
advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de
costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. --A senhora ainda
não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo.
Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. -Seremos
quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço?
-- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho,
o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado;
não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa
semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de
sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase
nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da
esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era
naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de
entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar
escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas
sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda.
Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às
pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo
fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força
era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de
cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia
fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a
conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e
de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas
e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor
arranhão.
Um dia os lucros entraram a
escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de
Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um
desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e
deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer
que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos
dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal;
comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de
remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia
Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe
pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum
fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em
escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade.
Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande
soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
--É o que lhe faltava! exclamou a
tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas
conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro
emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer
outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de
ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à
mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto
crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês
de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso
também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais
amargos.
--Não, tia Mônica! bradou Candinho,
recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso
nunca!
Foi na última semana do derradeiro
mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à
Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a
dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la
rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho
arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A
mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente.
Clara interveio. -Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia
Mônica. Por mal ou por bem,
seja o que for, digo que é o melhor
que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se
não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há
tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que
vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem
criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá
não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se
viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um
gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado
aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,--
crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o
ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A
ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
--Quem é? perguntou o marido. --Sou
eu.
Era o dono da casa, credor de três
meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele
entrasse.
--Não é preciso... --Faça
favor.
O credor entrou e recusou sentar-se,
deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco.
Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco
dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos
outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o
que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez
uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu
mais.
--Cinco dias ou rua! repetiu,
metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses
lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia
como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns
já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem
proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos,
foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de
mudança.
A situação era aguda. Não achavam
casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua.
Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três
em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos
baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a
arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise
começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e
regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,
sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a
deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir
melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa,
passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria
do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à
Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos
Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a
levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este
sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai
levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de
escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas
traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se
de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a
pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum
amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e
a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro.
Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da
Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um
farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer
droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves
parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi
mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam
emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e
tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito,
mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe
guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com
o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia.
Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação
do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte
sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher
que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em
voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito,
que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua
da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregá-lo
o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer
longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que
ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à
direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher;
era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo
fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a
mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a
informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza
de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
--Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de
dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a
mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José,
Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda!
bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar
malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou
dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era
já impossível. Cândido Neves, com as
mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,
parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu
logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse
pelo amor de Deus.
--Estou grávida, meu senhor!
exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me
solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu
senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero demoras;
siga!
Houve aqui luta, porque a escrava,
gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma
loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que
o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que,
no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe
mandaria dar açoutes.
--Você é que tem culpa. Quem lhe
manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por
causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não
costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives,
em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta
cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente.
O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá
chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda
ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao
rumor.
--Aqui está a fujona, disse Cândido
Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo
o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação.
Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta milréis, enquanto o senhor
novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e
da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste
mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves
viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia
correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências
do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico
sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o
farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e
ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava
fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu
depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a
casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica,
ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem
mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa
do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas,
verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
--Nem todas as crianças vingam,
bateu-lhe o coração.
Pai Contra Mãe, de Machado de
Assis
Texto proveniente de: A Biblioteca
Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A
Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Releeitura do conto: Filme Quanto Vale ou é por quilo
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