Maria Stella Martins Bresciani
Para além da força emocional da retórica poética e
literária em geral, presente nos textos dos homens cultos do século XIX,
aparecem com igual impacto os delineamentos de uma nova sensibilidade.
Convencidos de estarem vivendo no limiar de uma "nova era", prenhe de
um potencial transformador ainda não avaliado, eles se lançaram à empresa de
anotar em seus escritos os sinais visíveis dessa novidade de dimensões
desconhecidas e assustadoras. O sentido de desenraizamento expresso na perda de
identidade social e de formas de orientação multisseculares, aparece de maneira
recorrente elaborando a imagem de uma crise de proporção e conteúdo inéditos.
Sem dúvida, os termos desarraigado e desenraizado falam do homem arrancado de
sua íntima relação com a natureza, mas paradoxalmente apontam para a nova
condição humana de vencedor da natureza. Afinal, atribuía-se aos engenhos
astuciosos fabricados pelos homens - as máquinas com seus mecanismos
irresistíveis e incansáveis - essa vitória na guerra com a rude natureza. A
máquina foi apontada como expressão simbólica e material dessa vitória que
lograra emancipar o homem do limitado destino de ser subjugado aos imperativos
do mundo físico. À máquina o século XIX conferiu todo p poder transformador e
produtor da abundância e apostou nela como possibilidade, não muito remota, de
superação do reino da necessidade (superação de um mundo sempre às voltas com a
escassez de recursos para manter o crescimento ilimitado do gênero humano), mas
também a ela foi conferido o poder transformador da estrutura social (the
fabric of society), o que colocava em algo exterior ao próprio homem a potência
movimentadora do novo sistema social (social system).
Máquinas, multidões, cidades: o
persistente trinômio do progresso, do fascínio e do medo. O estranhamento do
ser humano em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter sua vida organizada
em obediência a um imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por
ele produzido. Registros de perdas e de imposições violentas encontram-se nos
escritos de homens que se auto-representaram contemporâneos de um ato
inaugural... É a constituição dessa "nova sensibilidade" que procura
acompanhar neste artigo, na certeza de que, hoje, o sentido de emancipação da
máquina em relação ao homem se expressa na aceitação de uma lógica interna ao
próprio progresso técnico e repõe a insólita experiência vivida pelo homem
quando considerou, a si mesmo, por sua astúcia, vitorioso sobre a natureza.
Para penetrar nos meandros dessa
nova sensibilidade decidi percorrer alguns textos, onde literatos, médicos,
advogados, filósofos, filantropos, estadistas, em suma, o homem letrado em
geral, expressaram o sentimento de perdas diversas e de viverem situações
paradoxais: registros semelhantes encontrei também em depoimentos de
trabalhadores rurais e fabris, de vendedores ambulantes, artistas de rua, enfim
de toda a grande parcela da população que subsiste através do trabalho de suas
mãos.
Quais perdas?
A representação do tempo regido
pela natureza perde-se e junto com ela a medida do tempo relacionada às tarefas
cíclicas e rotineiras do trabalho. Se desfaz um ajuste entre o ritmo do mundo
físico e as atividades humanas, o que implica a dissolução de um;i relação
imediata, natural e inteligível de compulsão da natureza sobre o homem. Perda
que implica a imposição de uma nova concepção do tempo: abstrato, linear,
uniformemente dividido a partir de uma convenção entre os homens, medida de
valor relacionada à atividade do comerciante e às longas distâncias. Tempo a
ser produtivamente aplicado, que se define como tempo do patrão - tempo do trabalho, cuja representação
aparece como imposição de uma instância
captada pelo intelecto, porém, presa a uma lógica própria, exterior ao homem,
que o subjuga. Delineia-se uma primeira exterioridade substantivada no relógio,
concomitantemente artefato e mercadoria.
Na atividade do trabalho uma
outra perda. A unidade do homem com suas condições de produção e com a
finalidade dessa produção definida pelas suas próprias e limitadas necessidades
cinde-se numa dupla exterioridade: de extensões inorgânicas de seu corpo
orgânico, as ferramentas se autonomizam materializando-se na máquina, vale
dizer, tornando dispensável a arte de suas mãos: de finalidade da produção, o
homem passa a ser uma das engrenagens de um processo que objetiva repor a
própria produção. O trabalhador despojado das condições objetivas do trabalho é
reduzido à mera subjetividade, à força de trabalho.
Os sistemas de trabalho com base
em relações pessoais se desfazem substituídos pela impessoalidade das relações
do mercado. O vínculo entre o mestre-artesão e seu aprendiz, certeza de
trabalho, e aquisição de uma destreza específica e de uma identidade
profissional rompe-se; a relação patrão-operário tem um caráter puramente
mercantil e sobre ela se erige uma representação que a coloca em uma instância
transcendente ao homem - a lei da oferta e da procura inscrita na natureza das
relações humanas - que, produto da atividade intelectual, passa a ser
interpretada como princípio férreo de ordenação do social.
Uma última perda: o homem, em
especial o trabalhador fabril e urbano em geral, arrancado dos vilarejos e
impelidos a levar uma vida agressiva nas cidades. Perda do habitat tradicional,
onde conjugava-se o trabalho artesanal com o labor dos campos; onde toda a
família encontrava condições de trabalho e onde a vida não aparecia cindida em
tempo do patrão e lugar do trabalho contrapostos a tempo do descanso e lugar de
morar.
O registro de cada uma dessas
perdas se fez presente no decorrer de três séculos, pelo menos, e culmina nos
inícios do século XIX, na percepção de que o homem ao sobrepujar-se à natureza
havia caído na armadilha de sua própria astúcia. A cidade moderna representa o
momento culminante desse longo processo e também o lugar onde se acumulam
homens despojados de parte de sua humanidade; em suma, lugar onde a
subordinação da vida a imperativos exteriores ao homem se encontra levada às
últimas conseqüências. Fascínio e medo; a cidade configura o espaço por
excelência da transformação, ou seja, do progresso e da historia; ela
representa a expressão maior do domínio da natureza pelo homem e das condições
artificiais (fabricadas) de vida.
É ainda importante anotar a
solidariedade entre o conjunto dessas perdas e a elaboração intelectual de uma
distância entre o homem e seus semelhantes; a elaboração da figura de um
sujeito de conhecimento capaz de estabelecer um distanciamento considerado
necessário para a observação e avaliação da natureza. A relação de exterioridade,
corrente na avaliação da natureza, estende-se, no século XIX, como experiência
de conhecimento para as relações entre os homens. O olhar analítico e
classificador procura imobilizar em momentos sucessivos de avaliação tudo
aquilo que vê em constante movimento e que precisa permanecer em contínua
movimentação. O fluxo ininterrupto dos homens no trabalho, dos homens se
deslocando pelas ruas, dos homens ocasionalmente fora do trabalho, dos homens
que tiram seu sustento trabalhando nas ruas, dos homens que vagam recusando-se
a trabalhar, dos homens que se mantêm através de expedientes pouco
confessáveis: tudo é submetido a esse olhar avaliador. A cidade se constituirá
no observatório privilegiado da diversidade: ponto estratégico para apreender o
sentido das transformações, num primeiro passo, e logo em seguida, à semelhança
de um laboratório, para definir estratégias de controle e intervenção. Não por
acaso, à frase de Vítor Hugo: "A França observa Paris e Paris observa o
faubourg Saint Antoine" (Os Miseráveis), corresponde um axioma da polícia
londrina. "Guarde-se St. James vigiando-se St. Giles."
Nos dois casos, os objetos de
constante vigilância são os bairros operários, cujo potencial de revolta é
considerado mais ameaça-dor, onde, portanto, os sinais da revolução podem ser
detectados. Nesses anos cinqüenta do século passado, tinha-se já formulado um
quadro conceitual que, recolhendo inúmeras experiências de investigação da nova
sociedade, permitia distinguir na diversidade aparente duas entidades distintas
e antagônicas. É parte dessa nova sensibilidade a expressão "Duas
Nações", cunhada por Disraeli para falar do abismo existente entre
ricos-civilizados e pobres-selvagens. Descontado o apelo emocional, a expressão
possui uma força explicativa plástica, pois remete imediatamente para a imagem
de uma sociedade cindida em duas partes irreconciliáveis, com identidades
próprias e diferenciadas.
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