Márcio Ramos
O surgimento de uma cultura
democrática, onde a participação dos cidadãos nos negócios públicos é a
essência da sociedade, se dá na Grécia Antiga, mais especificamente em Atenas,
uma das mais importantes e conhecidas cidades-estados gregas. Entender como os
gregos criaram essa cultura é importante para a compreensão dos Estados Modernos
ocidentais atuais, já que quase todos se consideram democráticos.
Mas o que é cultura política e como ela se manifesta em cada sociedade?
Ela é um sistema de representação que é responsável pela motivação do agir
politicamente. Esses sistemas de normas
e valores são coletivos, e são referencias para determinado grupo social
. É
determinada cultura política que permite
a participação ou exclusão dos indivíduos da vida em sociedade. A proposta do
presente texto é entender como a cultura política democrática surgiu e
influenciou a organização da vida do povo ateniense.
A democracia surge em Atenas no final do século VI a.C. como uma rejeição
à tirania. Apresenta-se como um sistema oposto ao tirânico, tendo a soberania
no conjunto dos cidadãos, e não mais em um líder ou grupo. O principal líder
político nesse momento foi Clístenes, que buscou a ajuda do povo para formar o
novo governo. Clístenes realizou as mudanças que permitiriam o desenvolvimento
da democracia, acabando com os privilégios da aristocracia tradicional e
tornando todos os cidadãos iguais perante a lei(isonomia).
A partir desse período, várias instituições democráticas foram se
organizando e se estabelecendo na sociedade grega. Foram essas instituições que
permitiram a criação de uma cultura política de envolvimento e participação dos
cidadãos na vida publica.
Dentre as novas instituições, temos o ostracismo, lei que permitia que a
Assembléia votasse e determinasse o exílio para quem supostamente oferecesse o
risco de se tornar tirano. A pessoa ficava até dez anos fora de Atenas, mas
quando voltava continuava a possuir e a exercer
seus direitos políticos. Nesse período a cidade ficava livre de sua
suposta influencia negativa.
A Assembléia era a instância máxima da soberania popular. Decidia praticamente
sobre tudo.Eram realizadas cerca de quarenta vezes ou mais ao ano, e todos os
cidadãos podiam participar. A democracia
ateniense era direta, ou seja, as decisões eram tomadas pelos cidadãos e não
por representantes, por isso as
assembléias eram importantes, sendo o
lugar das decisões da organização da vida de cada ateniense. As discussões
ocorriam durante o dia, e até a noite,o que havia sido proposto era votado,
ganhando o que a maioria simples
decidisse.
Outro órgão importante era o Conselho (Boulé), formado por
quinhentos representantes sorteados das dez tribos de Atenas. Eram
responsáveis dentre outras coisas, pela preparação dos decretos que seriam
votados pela Assembléia, além de elaborarem a pauta da reunião. Era também sua função cuidar da administração da cidade.
O Conselho zelava pela preservação da monarquia e pelo combate a qualquer tipo
de golpe tirânico.
O interessante é perceber que todos os cidadãos poderiam participar em
algum momento de sua vida da administração da cidade. Isso porque havia uma
rotatividade no exercício dos cargos, sendo que praticamente todos, inclusive o
Conselho de Quinhentos eram preenchidos através de sorteios, o que garantia a
participação de um número elevado de cidadãos.
Somente os cargos dos dez generais e os funcionários das embaixadas é
que eram preenchidos por eleição.
Essa participação garantia uma familiaridade dos cidadãos com os assuntos
de interesse publico, de sorte que o processo político fazia parte de sua vida
cotidiana. As votações nas Assembléias eram precedias de discussões sobre os
temas nas ruas, nas casas, no comércio,
e isso contribuía para a criação
e a difusão de uma cultura política democrática, que teve longevidade em Atenas.
Nessa organização política a fala, o discurso, é de extrema importância. Isso porque tudo é
debatido e decidido pela Assembléia, e todo cidadão pode falar. Essa é outra
característica da democracia grega, a isegoria, o direito de todo cidadão de
debater e defender suas idéias diante da comunidade. Qualquer cidadão podia
fazer discursos e propostas. Porém, ele sabia que sua fala seria julgada por
todos. Dependendo de sua proposta ele até poderia ser julgado como traidor da
democracia, podendo ser multado ou preso.
Na Assembléia todos eram iguais, independente do cargo que a pessoas
estivesse exercendo, o poder não residia na força do cargo e sim na capacidade
de cada cidadão de argumentar e quem sabe convencer a Assembléia.
Até na guerra os cidadãos exerciam seu poder de participação. Eram eles
que decidiam a entrada ou não de Atenas no conflito,e os passos seguintes que deveriam ser tomados
pela liderança militar.
Participar da vida cívica da cidade era
visto como dever de todos cidadãos. Quem não participava era considerado
inútil. A Assembléia e a vida em comunidade era a fonte de educação para os
atenienses, o lugar da aprendizagem da política, do agir em sociedade. É ali
que se decide o aumento dos impostos e a participação em guerras. E as pessoas
sobre quem essas decisões iriam recair estavam ali votando, o que tornavam as
tais decisões mais legitimas.
A Batalha de Maratona, por volta de 490 a.C, é considerada,
politicamente, o momento fundador da democracia. Atenas estava sendo atacada e
a população sai da cidade, sendo essa destruída parcialmente. Apesar da
destruição da cidade geográfica, a cidade civil continua a existir. Ou seja,
podiam destruir a cidade física, mas as instituições democráticas de Atenas
estavam de pé. Essa concepção esteve presente na visão de mundo ateniense, ou
seja, a democracia residia no corpo de cidadãos que se reunia nas assembléias.
Até o conflito contra Esparta, a Guerra do Peleponeso (430 a. C.), apesar
da participação de todos os cidadãos na ágora, as principais lideranças
políticas ainda eram pessoas ligadas a nobreza. A guerra vai mudar essa
situação. Sua longa duração(cerca de 27 anos), aliada a uma peste que dizima grande parte da população, permite o surgimento de um novo tipo de liderança,
vindo das camadas mais populares.Um
exemplo foi Alcibíades. Dessa forma a democracia passa a ser de fato o governo
de todo “corpo de cidadãos”, incluindo pessoas que não faziam parte das
oligarquias tradicionais de Atenas.
No primeiro ano da Guerra do Peloponeso, um dos lideres políticos da
cidade chamado Péricles fez um discurso em honra aos mortos no conflito, que
nos revela muito sobre a cultura política dos gregos.
O discurso era uma oração fúnebre e Péricles, conforme relata Tucidides
,
começa louvando os antepassados, apontando-os como responsáveis pela criação de
instituições que serviam de modelo para outros povos. A democracia é vista como
uma construção essencialmente grega .Eles teriam tido a capacidade de criar um
novo modelo de organização política que possibilitou a participação real dos
cidadãos. Ele mostra as principais características dessa forma de governo da
cidade-estado, como a igualdade de todos perante a lei, o acesso de todos à
participação da vida política e aos cargos políticos e administrativos, não por
ter nascido nobre, mas por seus méritos. Péricles afirma que em Atenas havia o
respeito às liberdades individuais e à lei.Ninguém era oprimido, tendo seus
direitos preservados.
O autor do discurso mostra a riqueza da vida cultural grega, como os
concursos, as festas religiosas e o teatro. A partir da análise da experiência
história grega, podemos afirmar que essas atividades eram mecanismos de
educação civil e política, pois faziam
com que os gregos se reconhecessem como tal, criassem uma identidade política
coletiva e defendessem seu modo de vida.
Era um momento de comunhão , de convivência entre os atenienses. Momento de
inculcar na mente dos cidadãos e das novas gerações a superioridade grega. Além
disso, esses encontros públicos podia demonstrar o poderio econômico e cultural
de Atenas.
Conforme Péricles, os gregos amavam a beleza e a filosofia, mas não eram
indolentes, participavam ativamente da vida, conciliando sua vida privada com a
defesa dos interesses públicos. Percebe-se nesse discurso uma idealização de
participação dos cidadãos na vida publica. Eles seriam abnegados pelo bem da
coletividade.
Os gregos se achavam de fato superiores aos outros povos. Atenas era
apresentada como a “escola de toda Hélade”, o ideal a ser buscado pelos povos
vizinhos e, também pelos futuros. Para
Péricles o sistema era tão perfeito que seria copiado pela posteridade.
Um detalhe interessante no discurso é que ele afirma que “simples
artesãos podem ter bastante compreensão sobre
questões da política”. Conforme apontamos acima, isso era possível
devido ao envolvimento e participação efetiva que as pessoas tinham com a vida
política, tanto nas Assembléias como na ocupação dos cargos públicos. Elas eram
chamadas a ocupar parte importante de suas vidas nos debates e no exercício da
atividade política.
Para que todos os cidadãos pudessem ocupar os cargos públicos,
independentes de sua situação financeira, o serviço prestado ali era
recompensado financeiramente. Dessa forma, até os artesãos mais pobres podiam
se dedicar e ter experiência
administrativa e política. A questão do nível de conhecimento formal não era
tão importante quanto a pratica política. A formação se dava na realização das
Assembléias.
Essa organização era possível pois havia uma concepção dominante na
Grécia que os ricos deveriam arcar com os custos do governo. Nenhum imposto
recaia sobre as atividades exercidas pelos cidadãos. Mas os ricos tinham que financiar as “liturgias”:
manutenção de navios e pagamento da tripulação, realização dos festivais
religiosos, dentre outras obrigações. Além disso, o governo obtinha receitas
através do aluguel de suas propriedades, de cobrança de multas, de tarifas
portuárias, dentre outras.
Não podemos esquecer do imperialismo ateniense, do seu domínio sobre
outras cidades da Grécia. Alguns autores
afirmam que a democracia em Atenas só
foi possível devido ao domínio e à exploração econômica sobre outras regiões,
além da exploração dos não-cidadãos na cidade. Essa desigualdade interna em
Atenas deve ser lembrada. Na concepção política ateniense vida política não era destinada às mulheres,
nem aos escravos e estrangeiros.
Uma questão merece reflexão. Até que ponto os cidadãos gregos que iam à
Assembléia votavam de acordo com a sua consciência, ou se eles eram induzidos
pelos demagogos, mestres da oratória. A manipulação da população pelos oradores
era algo possível, mas não parece ter sido o que predominou em Atenas. O orador
tinha que tomar cuidado com a sua fala pois ele seria julgado a partir dela.
Quando ele pregava a ida à guerra, a Assembléia podia chamá-lo para dirigir a
forças militares.
Era essa mesma Assembléia que
julgava as ações desses lideres, muitas vezes voltando atrás em suas decisões,
como aconteceu no inicio da Guerra do Peloponeso, quando a Assembléia decide matar os homens da cidade
de Mitilene que tinham se levantado contra Atenas, e no outro dia essa mesma
Assembléia muda de idéia, revogando a condenação à morte, mesmo contra a
vontade do líder político da época, Cleon.
As Assembléias eram incontroláveis, principalmente porque havia uma
grande rotatividade dos participantes a
cada dia. Era possível que houvesse mudança na platéia, o que poderia resultar
em um decisão diferente.
É preciso compreender que o
conflito, como em todas as sociedades, fazia parte da vida e da organização de
Atenas. Na realidade, podemos afirmar que havia interesses conflitantes, como
por exemplo a questão da participação de todos nas Assembléias. As antigas
oligarquias não concordavam com essa concepção, e volta e meia tentam
restabelecer a oligarquia ou a tirania. Continuam querendo podar o poder do
povo, e por isso muitos sofreram o processo do ostracismo. As classes baixas
não queriam perder o poder que haviam conquistado.
Uma prova desses conflitos foram as diversas constituições que Atenas
possuiu, demonstrando as constantes mudanças provocadas por esses grupos que
estavam em conflitos. A questão da terra é outra fonte de conflitos entre os
gregos. Como o território era muito pequeno, as pessoas das camadas mais
populares tentavam pressionar a Assembléia para resolver tal problema. Uma
possível solução encontrada foi o imperialismo, com a ocupação de terras fora
de Atenas, muitos atenienses acabaram recebendo um pedaço de terra e isso
possivelmente diminuiu tais conflitos.
Mesmos esse conflitos contribuíram para o fortalecimento de uma cultura
democrática. Os cidadãos quando participavam das Assembléias faziam isso
pensando no bem da coletividade, mas também em busca de respostas para
problemas como esses.
Em 404 a.C., depois da longa guerra, a população de Atenas estava faminta
e arrasada, sendo vencida por Esparta . A cidade muda de regime, destrói as
suas muralhas e adota novamente um regime oligárquico, exercido pelos chamados 30 tiranos. Adotam um
regime de repressão e autoritarismo. Porém, um ano depois, esses tiranos são
derrotados e a democracia restabelecida.
Atenas havia perdido o império e sua população não estava em uma situação
social nem um pouco confortável. Muita gente estava arruinada, outras até
passando fome. A necessidade de tentar o ganha pão acabou afastando muita gente
das atividades políticas. Para incentivar a participação nas Assembléias,
começa-se a pagar a presença dos cidadãos, o equivalente a meio dia de
trabalho. Isso acaba provocando um desequilíbrio nas finanças publicas, o que
leva a adoção de um imposto sobre o patrimônio provocando um sentimento de
revolta entre os nobres. A nobreza se
considerava prejudicada e espoliada, começando a sonegar impostos.
Atenas passa por uma crise financeira nesse período pós Guerra de
Poleponeso. Ela sofre algumas reformas
econômicas com Calistrato, obtendo uma pequena recuperação. Mas no final do século IV a.C. a democracia ateniense não resiste e
cai.
Contudo, podemos perceber a importância da formação histórica e cultural
grega para a história. A formação de uma cultura democrática, cultura essa que se espalha por todos os
setores da sociedade, que permite a participação dos cidadãos sem levar em
conta a sua posição social e que faz da arte do debate uma razão de ser da vida
política.
A partir do século XVIII, os
pensadores iluministas e revolucionários vão voltar sua atenção para a Grécia e
para a Antiguidade de forma geral
,
em busca de inspiração para a formatação de um novo pensamento político que
rompesse com a tradição cristã predominante. Cada um buscou na Antiguidade a
fonte de pensamentos e experiências que justificasse suas idéias e propostas políticas. Alguns
buscaram o exemplo de democracia ateniense, outros a experiência de Esparta,
outros de Roma.
O interessante é que essas experiências histórias serviram de fonte de
inspiração para a criação de várias
culturas políticas modernas, de diversas experiências democráticas,que
continuam a influenciar e a organizar a vida de pessoas.O dilema atual é como é
conseguir retomar essa cultura de participação vivenciada pelos gregos
atenienses. Como será possível, em um
regime representativo o envolvimento dos cidadãos na vida publica? Essa é a
grande questão colocada para a ciência política moderna.
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Cf. MOSSÉ,
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José Antonio Dabdab. Liberdade, Igualdade, Antiguidade: a Revolução Francesa e
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