Márcio Ramos
A história dos movimentos sociais nos
mostra que a plebe se organizou de diversas formas em sua luta política. A
partir do século XVIII, uma das principais formas de organização foi através
dos motins de fomes, onde ela fazia uso
de um repertório de ações coletivo na
luta por seus direitos.
Quando as pessoas comuns percebiam e
entendiam que certas circunstancias e atitudes governamentais e econômicas,
como o aumento de impostos ou do preço de pão eram prejudiciais, elas se uniam
e se organizavam em motins, realizando revoltas e atacando quem eles percebiam
causador do distúrbio da ordem natural da vida em comunidade.
Analisando os movimentos do século
XVIII na Inglaterra, Thompson afirmou
que os motins de fome buscavam sua legitimação nos costumes, na tradição,
possuindo formas complexas de ação, já que tinham objetivos específicos e eram direcionados a
interferir na esfera política para conservar determinada estrutura social[1].
Não eram atitudes de seres famintos irracionais.
A Europa nesse período passava por
grandes mudanças econômicas, através do desenvolvimento do capitalismo, mas as
pessoas não se adequavam a esse novo tempo, e buscavam o retorno a antiga
organização social. Reivindicavam a manutenção dos direitos consuetudinários, e
por isso faziam motins. Suas ações eram legitimadas pelo consenso de grande
parte da sociedade sobre tal questão, que temiam a novidade.
Apesar das mudanças provocadas pelo
capitalismo, “a economia dos pobres era local e regional, derivadas de uma
economia de subsistência”[2],
portanto, a plebe não aceitava as transformações provocadas por essa nova
realidade e agiam no intuito de conservar como válida a sua antiga noção de
direito, e mais do que isso, sua antiga forma de sobrevivência, que se baseava
no respeito do soberano a tradição local.
A reação popular apresentava um
padrão de comportamento, ou seja, o povo era chamado a partir do toque do sino
da Igreja, se reunindo na praça e indo em direção ao lugar onde o a origem do
problema era detectada, como por exemplo, os armazéns.As revoltas eram iniciadas quase sempre com as mulheres, as
mais envolvidas com o valor dos
produtos. Elas reagiam defendendo “uma espécie de reflexo biológico, a vida de
seus filhos e a existência física de seu lar”[3].
Esses
motins possuíam um certo repertório de ação, que os unia e ao mesmo tempo
servia para instrumentalizar suas ações, conforme a definição de Mark Traugott:
O repertório da ação coletiva, como sua
contrapartida teatral, implica em um grupo de atores sociais que escolhe entre
um número restrito de performance com as quais eles estão familiarizados. Suas
opções estão circunscritas tanto pela experiência anterior, quanto pelos
recursos materiais, organizacionais e conceituais que eles encontram às mãos[4].
Ao ouvir o sino, todos entendiam o
significado e sua intenção, e como viviam uma mesma realidade de exploração se
união para combatê-la, na busca do bem-estar público. Podemos dizer que
possuíam uma “visão comum do mundo, numa leitura partilhada do passado (...) de
normas, crenças e valores”.[5]
Possuíam uma cultura política, e respondiam ao seu chamado.
Os motins causavam pavor entre as
autoridades e as classes governantes, e por isso o rei controlava tais movimentos através de decisões de
manter o preço dos alimentos. Segundo
Thompson o Estado Paternalista salvava a plebe nos momentos de carestia para
conter grandes revoltas sociais. O movimento ocorria e logo se iniciava uma
situação de negociação entre o produtor, ou comerciantes e os consumidores, ou
uma ação do Estado.
A análise de Thompson foi criticada
por Bohstetd, Raudall e Charlesurth, que afirmam que os motins não são formas
organizadas de manifestação e que a política paternalista não tinha como
preocupação inicial a sobrevivência dos pobres, mas sim a manutenção do Estado
e da ordem social. Ela era usada apenas para conter o ímpeto da população, que
apenas reagiam a fome de forma irracional. Apesar dessas críticas, Thompson
manteve a sua interpretação, afirmando que seu período de análise histórica
havia se restringido ao século XVIII na Inglaterra e que
os motins são geralmente uma
resposta racional, que não acontece entre os indefesos ou sem esperança, mas
entre aqueles grupos que se sentem com um pouco de poder para tomar os viveres
que precisam quando os preços vão às alturas, os empregos desaparecem e eles
vêem o seu suprimento de alimentos básicos ser exportado[6].
Os motins que ocorriam na Europa
possuía semelhanças com os que aconteciam na América colonial nesse mesmo
período. Aqui, quando os colonos achavam
que os costumes haviam sido desrespeitados, que o governo ou seu representante
estava sendo tirânico, eles também se
amotinavam.
Um exemplo de revoltas que se
baseavam nessa critica à quebra de um pacto entre o soberano e os súditos foi a
revolta que ocorreu em São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1660, chamada de
Revolta da Cachaça.A região vivia da produção da cana-de-açúcar, e como era
importante na economia colonial tinha que ser bem protegida, e o preço da
manutenção das tropas de defesa era cobrado da população, o que gerava uma
grande insatisfação .
Quando o governador Salvador de Sá
Correia tentou cobrar uma nova taxa sobre todos os moradores da cidade, ele foi
acusado pela população de tirânico, e de nepotismo. A população se reúne em
praça publica e inicia um levante, fazendo o governador fugir e instituindo um novo governo, formado de
diversos setores da população. Pouco tempo depois o governador retorna e o
grupo é desmobilizado e os líderes presos.
Um outro exemplo são as revoltas
que aconteceram em Minas Gerais no início do século XVIII. Em 1715, houve um
levante na região mineradora devido à tentativa do governador de mudar a
cobrança de impostos, que passaria a ser por bateia. A população exigia que a
cobrança continuasse a ser como era antes, através do pagamento do quinto em 30
arrobas, já que a nova forma era vista como injusta e muito onerosa aos
mineradores. Conforme Carla Anastasia assinala, os revoltosos declararam “que
não discutiam a justiça do pagamento do tributo com o qual voluntariamente se
dispunham a arcar, mas que nada pagariam caso a forma da arrecadação fosse
alterada”[7]. O rei não viu outra solução a não ser manter
a cobrança de acordo com o costume estabelecido entre as partes. Nesse caso, a
ação não era contra o rei ou a estrutura política estabelecida, mas sim contra
o abuso de autoridade do rei ou de seus comandados.
Por trás dessas revoltas a visão
política que prevalecia era a de que o governo deve ser justo e não pode
explorar os vassalos. Se o governante fosse justo, não realizando uma
exploração descabida, ele permitiria o desenvolvimento da sociedade e não a sua
destruição. A sociedade era vista como um corpo e o desrespeito a parte desse
corpo resultaria numa reação violenta de todo o corpo.
Analisando tal realidade, Luciano
Raposo de Almeida Figueiredo afirma que
o reforço à figura do soberano, e
ao amparo que deveria proporcionar aos vassalos, estaria configurado em um dos
rituais adotados nessas revoltas: os gritos de “Viva o rei”, onde
manifestava-se antecipadamente o reconhecimento público da lealdade que, na
perspectiva desses colonos, ao lado dos clamores contra a usurpação dos
direitos tradicionais de súditos, legitimava a prática da rebelião.[8]
Percebemos a partir dessas análises
que a plebe se organizava a partir de suas experiências, na tentativa de se
conservar uma organização social e cultural que lhe pareciam mais justa.
Combatiam o que eles entendiam como a quebra de um pacto. O homem no inicio da
Era Moderna era inseguro, se sentindo ameaçado por fatores diversos, tendo medo
da floresta( lugar dos lobos e dos bandidos), medo do mar, medo dos outros( o
estranho é perigoso), medo da feitiçaria, medo da noite. Medo de serem mortos
pela fome, que era uma realidade inescapável para a maioria. Era um sociedade
que de fato temia. Os contos que surgem nesse momento (Chapeuzinho Vermelho,
João e Maria, entre outros[9])
vão justamente falar dessa angústia e medo.
Esse homem que fazia motim era rude, ainda vivendo sob o domínio da mentalidade
medieval. Está em fase de transição entre o velho e o novo, possuindo
características modernas e medievais, e utilizam de concepções antigas em sua
luta política. Buscam a explicação para a vida a partir da religiosidade. Se
apegam a segurança da tradição, a defendendo até mesmo com o uso de violência.
Natalie Zemon Davis ao analisar os
ritos de violência do período das reformas religiosas, afirma que ela possui
três objetivos básicos: defender a doutrina, combater a poluição da doutrina e
desempenhar a função das autoridades, que por incompetência ou negligência não
praticavam. Dessa forma, a multidão incorporava o papel de juiz, através de
julgamento e execuções públicas.
Tanto os católicos e protestantes
defendiam aquilo que eles achavam ser a verdade original, combatendo as
“novidades profanas” ou “desvios” da verdadeira doutrina. Geralmente iniciavam
os movimentos em datas e situações especificas, quase sempre relacionadas ao
calendário religioso. O seu repertório, que Natalie Davis chama de ritos de
violência, era derivado da “Bíblia, da
liturgia, da ação das autoridades políticas ou tradições da justiça popular,
cuja intenção era purificar a comunidade religiosa e humilhar o inimigo,
tornando-o menos perigoso.”[10]
Podemos perceber a dura realidade em
que esses homens e mulheres enfrentavam. Vivam tempos de mudanças sociais,
econômicas e culturais, ao mesmo tempo não sabiam como responder a tal situação
e como preservar seus direito. Acabam se organizando e reforçando os laços de
solidariedade, agindo em defesa do que acreditavam através dos motins, que na
realidade não eram tão complexos como Thompson queriam, eram espontâneos e em
sua maioria sem liderança, mas mantinha um certo padrão de comportamento, ou
repertório.
A constatação da longa duração desses eventos nos permite ver como eles
faziam parte de uma cultura de participação política, que não se acomodava às
mudanças, mas que lutava para se manter.
BIBLIOGRAFIA
ANASTASIA, Carla
Maria Junho. Vassalos Rebeldes:
violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo
Horizonte: C/ Arte, 1998.
BERSTEIN, Serge, In: RIOUX &
SIRINELLI( Org.). Para uma
história Cultural .Lisboa: Estampa, 1988
DARNTON, Robert.
O grande massacre dos gatos. Rio de
Janeiro: Graal, 1986.
DAVIS, Natalie
Zemon.As razoes do desgoverno. Ritos de violência. In:- Culturas do povo:
sociedade e cultura no inicio da França moderna: oito ensaios. Rio de
Janeiro: 1990.
DELUMEAU, Jean.
Medo e sedições. In:-. História do medo
no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FIGUEIREDO,
Luciano Raposo de Almeida. Práticas políticas e idéias ilustradas na América
portuguesa(quando os motins tornam-se inconfidências – 1640-1817). 10th International Congress on the
Enlightenment, 7,1999,Anais, Dublin.(inédito)
RUDE, George F.
E.. A multidão na historia: estudo dos movimentos populares
na França e na Inglaterra 1730-1848. Rio de Janeiro: 1991.
THOMPSON, E. P.A
economia moral da multidão inglesa no século XVIII. Economia moral revisitada.
In: Costumes em comum.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998
TRAUGOTT, Mark.Barricades as repertoire: continuities and
discontinuities in the History of French contention ( Tradução, adaptação e
notas por Carla Anastasia). Manuscrito.
[1] THOMPSON, E. P.A economia moral da multidão inglesa
no século XVIII. Economia moral revisitada. In: Costumes em comum. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998,p. 152
[2] Idem, p. 167.
[3] DELUMEAU, Jean. História
do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 189
[4] TRAUGOTT, Mark.Barricades
as repertoire: continuities and discontinuities in the History of French
contention ( Tradução, adaptação e notas por Carla Anastasia). Manuscrito
[5] BERSTEIN, Serge,
In: RIOUX & SIRINELLI( Org.). Para uma história Cultural .Lisboa:
Estampa, 1988, p.362.
[6]Thompson, Op. Cit.
p. 207.
[7]ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade
do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998, p. 33
[8] FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Práticas
políticas e idéias ilustradas na América portuguesa(quando os motins tornam-se
inconfidências – 1640-1817). 10th International Congress on the Enlightenment,
7,1999,Anais, Dublin.(inédito)
[9] Conforme DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
[10] DAVIS, Natalie Zemon.As razoes do desgoverno. Ritos
de violência. In:- Culturas do povo: sociedade
e cultura no inicio da França moderna: oito ensaios. Rio de Janeiro: 1990, p.
149.
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