Por Nei Lopes
Origem do samba na África: do tambor de crioula a outras danças dos escravos
Muito antes de
denominar um gênero musical, o nome “samba” se aplicava a qualquer refrão, coro
ou estribilho ritmado, de aspecto mais ou menos africano. Hoje, o samba, em
seus vários estilos e modalidades, é uma forma de canto e dança e um bem
imaterial valioso, gerando renda e prestígio, na condição de símbolo máximo da
identidade musical brasileira.
Se voltarmos ao Brasil escravista, nos tempos coloniais e imperiais, nas breves
folgas do trabalho, os escravos se agrupavam cantando e dançando. Nas
cidades, eles geralmente saíam às ruas em cortejo; da mesma forma que os das
fazendas dançavam em rodas, nos terreiros.
As várias danças de roda tinham características que as aproximavam, sendo a
umbigada (no momento de escolher o substituto na roda) sua característica
principal. E as urbanas, em geral, ocorriam em solenidades, como as de posse
dos reis simbólicos das diferentes etnias, organizadas em irmandades, portando
os respectivos estandartes ou bandeiras.
Daí que veio o samba, música e dança; e se originaram as antigas manifestações
em cortejo que deram origem às escolas de samba.
Observemos que, até hoje, em Angola, o vocábulo semba, mas não samba, dá nome a
uma dança urbana, caracterizada pela umbigada, acima referida. E em diversas
línguas locais, o vocábulo samba aparece conotando movimento, especialmente em
verbos, significando “pular” e “saltar”; ou designando o entrechoque de corpos
etc.
Então, não há como
negar a origem africana do samba.
Abolicionismo e consequências
Com o tráfico de escravos para as Américas, iniciado já no século XVI, a África
foi se despovoando e enfraquecendo (além da escravização, muitas pessoas
morreram lutando ou vitimadas pelas viagens desumanas nos porões dos navios
negreiros), enquanto as potências europeias ficavam cada vez mais ricas e
poderosas. Até que Inglaterra, França, Bélgica, Portugal e outros países
resolveram, no fim do século
XIX, dividir o continente africano entre si, para explorarem as diversas
colônias.
O progresso dessas potências acabou por tornar o escravismo inconveniente. E,
assim, muito menos por compaixão ou por espírito humanitário, foi que surgiu o
Abolicionismo.
No Brasil, porém, a Lei Áurea decretou o fim do escravismo, mas não pensou em
dar terra, casa e trabalho remunerado para os africanos e descendentes (muitos
já libertos) vitimados pela escravidão. Em vez de transformar os antigos
escravos em trabalhadores livres, o Estado brasileiro preferiu trazer
imigrantes europeus para as frentes de trabalho, na esperança de “melhorar a
raça”, como então se dizia, pelo branqueamento da população.
Então, o século XX quando chegou, encontrou nas grandes cidades massas enormes
de negros (pretos e pardos) marginalizados, se “virando” como podiam... Mas
também cantando e dançando as músicas de sua tradição, as quais eram chamadas,
pelo povo em geral e pelas elites, de “sambas”.
Nesses “sambas”, eram cantados e dançados, em roda, principalmente cantigas da
tradição baiana, basicamente refrãos ou estribilhos que se sucediam, ritmados
por palmas.
Hilária Batista de Almeida, a “Tia Ciata”, foi a mais conhecida das chamadas
“tias” da comunidade baiana do Rio, antigo Distrito Federal, que eram mulheres
negras civilmente livres, muitas delas comerciantes e mães de santo, as quais,
graças a seu trabalho e sua autoridade ou influência religiosa, gozavam de
relativa independência social e financeira. Como suas camaradas, Tia Ciata
costumava promover em sua casa concorridas festas, sempre com fartura, música e
alegria.
Foi a partir de uma dessas festas que teria nascido a composição Pelo Telefone,
que se tornou um marco na história do samba.
O ano era 1916 e a baiana tinha perto de 62 anos. Ainda não havia emissoras de
rádio, mas a indústria e o comércio de música, sim. Existiam através da venda
de discos gravados e de partituras impressas para serem tocadas ao piano, nos
teatros e nas casas das famílias remediadas. O mercado estava surgindo, e
alguns músicos já percebiam que uma composição musical, caindo no gosto do
povo, podia render algum dinheiro.
Foi assim que o violonista e compositor Ernesto dos Santos, o “Donga”, em
parceria com o jornalista Mauro de Almeida, de um pedaço de cantiga, um
estribilho, ouvido numa das festas da legendária Tia Ciata, teria criado uma
composição mais extensa. Registrando-a na Biblioteca Nacional, Donga a definiu
e a identificou (pois esse era um dado necessário para o registro) como “samba
carnavalesco”. Assim, o samba ganhou sua certidão de nascimento.
Do maxixe ao novo samba
Mas, nessa primeira década do século XX e até a seguinte, com José Barbosa da
Silva, o “Sinhô”, Oscar José Luiz de Morais, o “Caninha”, e outros, o
repertório do samba, cantado principalmente por intérpretes como Mário Reis,
Francisco Alves e Araci Côrtes, pouco se distinguia, formalmente, daquele do maxixe,
popularizado a partir do teatro. Em 1927, porém, a gravadora Odeon lançava A
Malandragem, de Alcebía-
des Barcelos, o
“Bide”, considerada o primeiro exemplar gravado de um novo tipo de samba,
criado por compositores do bairro do Estácio. Entre eles, além de Bide, estavam
Ismael Silva, Nilton Bastos e outros.
Por esse tempo, o jovem Noel Rosa iniciava sua carreira compondo emboladas
nordestinas e outras canções nos estilos rurais, então em voga. Admirador
confesso de Sinhô, Noel já tinha notícia desse novo tipo de samba que surgia no
Estácio e dali se espalhava pelos morros próximos ao Centro.
O fenômeno se expandia, e é nesse momento que refulge a forte liderança de
Paulo Benjamim de Oliveira, o “Paulo da Portela”. Influenciado pelo ambiente, o
jovem Noel Rosa inicia amizades e parcerias com sambistas do Morro do
Salgueiro, do Estácio, da Mangueira etc. Tudo isso num momento em que certa
imprensa saúda o ingresso de compositores e intérpretes de outra origem social,
como o próprio Noel, num ambiente onde – conforme sucessivas edições da revista
carioca O Malho, na década de 1930 –-, predominavam “macumbeiros” e “gente
mal-encarada”.
O ambiente era o do rádio, inaugurado em 1922. No qual, por seu potencial
motivacional e aglutinador, o samba acabou por ser utilizado como trilha sonora
preferencial das ações do primeiro governo de Getúlio Vargas, em 1930. O que
serviu para neutralizar o preconceito e avivar o sonho de ascensão social
acalentado principalmente por Paulo da Portela.
Desde então, o samba passou por profundas transformações. E o processo
culminou, em fins dos anos 1950, com o surgimento da bossa-nova, estilo,
inicialmente referido como “samba moderno”, e no qual o gênero foi despojado de
sua excitante conjugação de ritmos para se tornar mais compreensível aos
ouvidos estrangeiros, o que, mais adiante, felizmente, acabou por dar certo.
Mas, logo após seu surgimento, a bossa-nova viu seu caminho dividido em dois: o
do lirismo descomprometido e o dos políticos, como a miséria, a favela, a questão
agrária etc. Assim surgia a “nova geração do samba”, impulsionadora da chamada
“corrente nacionalista” da bossa-nova, na qual despontaram, por exemplo, Carlos
Lyra, Sérgio Ricardo, Nara Leão e Edu Lobo. Na sequência, surgiram Caetano
Veloso, Gilberto Gil e Francisco Buarque de Hollanda (o futuro “Chico
Buarque”), além de nomes hoje desaparecidos ou em outros caminhos.
Na segunda metade da década de 60, quando o centro irradiador das novidades
internacionais deslocou-se de Paris para Londres, chegavam até o Brasil novos
padrões de comportamento, sonorizados pela música dos Beatles. Aqui, isso se
traduzia na “Era dos Festivais”, no movimento conhecido como Tropicalismo e no
fortalecimento da jovem guarda, estilo que ocupava as paradas de sucesso desde
1965, com Roberto Carlos. No mesmo contexto, chegava ao desfile das escolas de
samba (já transmitidos pela tevê) uma nova estética, com a qual as agremiações
foram gradativamente abandonando a essência que lhes dera origem em proveito de
uma apresentação mais espetacular.
Na imprensa, o jornalismo cultural também passava a sofrer a influência de
novas correntes de pensamento, vindas de fora, para as quais o samba era visto,
cada vez mais, como uma música “regional”, não cosmopolita. Nascia, aí, a
designação MPB, que não se traduzia apenas como “música popular brasileira” e,
sim, como música brasileira globalizada, obediente às determinações das
gravadoras internacionais até hoje dominantes na indústria da música no País.
Mas a tradição do samba resistia. Sambistas importantes, como Martinho da Vila,
Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Roberto
Ribeiro, Beth Carvalho, Clara Nunes, Paulinho da Viola e a Velha Guarda da
Portela conseguiam se manter ativos. E, mais do que todos, lutava o portelense
Antônio Candeia Filho, o “Candeia”, líder de uma importante tentativa de
reação. Mesmo assim, o samba continuava sendo reduzido a simples
classificação “cidade” e “morro” e, explicavelmente, excluído do círculo da
MPB, onde agora pontificavam artistas revelados no âmbito da “nova geração do
samba”.
A reação nos pagodes
Na passagem para a década de 80, aparecia o “pagode de fundo de quintal”, um
estilo que, além de incorporar novos instrumentos ou modos de executá-los,
servia-se também das infindáveis possibilidades harmônicas da bossa-nova.
Entretanto, nos anos 1990, em meio à desorganização da economia, a indústria
fonográfica ajudava a criar uma nova crise, quando elegia como foco de seus
cuidados mercadológicos apenas duas vertentes: a da música dita “sertaneja” e a
do amplo leque da chamada “música pop”, no qual cabia tudo, até mesmo uma forma
diluída do pagode, açucarada, com letras nas quais só cabia o amor erotizado
até o extremo.
Dentro desse quadro, alguns grupos “pagodeiros” começavam a ser lançados no
mercado latino, até mesmo cantando em espanhol, num surto que fez alguns
artistas do estilo passarem a negar sua vinculação ao samba.
Na contracorrente, novas gerações de adeptos organizavam-se no culto ao samba
“de raiz”, denominação que abrangia desde clássicos consagrados a partir da
década de 30 a composições de produção recente.
A despeito de tudo isso e muito embora a ideologia colonizada de certa mídia
esteja sempre a reboque das orientações internacionais, o samba permanece com
toda a sua múltipla vitalidade, tocado e gravado. Em pagodes, rodas e shows,
por pequenos conjuntos, à base de cavaquinho e pandeiros, por grandes
orquestras etc., o samba evolui. E isso apesar de muitas vezes ter de dividir
sua centralidade com o funk e derivados nascidos nas chamadas “periferias”.
Nei Lopes é sambista,
escritor e autor, entre vários outros livros, da Enciclopédia
Brasileira da Diáspora Africana
Fonte: http://cartafundamental.com.br/single/show/57