por Alessandro Meiguins
“Contra a pátria não
há direitos”, informava uma placa pendurada no saguão dos elevadores do prédio
da Polícia Civil em São Paulo. Era o templo da “tigrada”, policiais e militares
com ordem e permissão para matar, muitos sob o comando de Sérgio Paranhos
Fleury. O delegado era violento. Começava estapeando, depois torturava e, se
perdia a paciência, atirava mais de uma vez. Filho de legista, Fleury cresceu
em delegacias. Desde os 17 anos estava na polícia. Fazia parte de uma unidade
particularmente agressiva, a Delegacia de Roubos, quando foi “recrutado”
pelo regime militar, em
junho de 1969. O delegado viria a ser a peça-chave da Operação Bandeirante, a
Oban. A missão era estratégica: criar um organismo que reunisse elementos das
Forças Armadas, da polícia estadual e da Polícia Federal, para o trabalho
específico de combate à subversão. Na prática, o núcleo reuniu os elementos
mais radicais, corruptos e violentos dessas organizações. Fleury e sua
trajetória são um retrato acabado do que se passou nos porões da ditadura
brasileira. Contra o terror, investiu-se no horror.
A repressão não nasceu
com o AI-5, mas foi com ele que viveu seu auge. Houve torturas e mortes desde
os primeiros anos de governo militar. O Departamento de Ordem Política e Social
(Dops), subordinado ao governo estadual, existia desde os anos 20. O Serviço
Nacional de Informações foi criado em 1964. A Polícia do Exército torturou logo
após o golpe. As manifestações de 1968 foram reprimidas com dureza. Só que o
AI-5 foi entendido como licença para matar e, de fato, quem matou em nome do
combate à subversão não foi incomodado nos anos seguintes.
Dizer que a máquina
repressiva se organizou após 1968 é uma imprecisão por conta disso. E também
porque a desorganização era o fundamento da lógica da repressão. O capitão
torturador passava por cima do major, o delegado trabalhava contra o
governador. Nesse sentido, a repressão subvertia a ordem mais do que os
guerrilheiros. Isso não quer dizer que não houvesse cadeias de comando, mas que
os porões criaram sua própria hierarquia – clandestina, com ramificações nos
altos escalões e, no mínimo, sua conivência.
Fleury, por exemplo,
teve plenos poderes ao chefiar a Oban. Quando se instalara no Dops, já levara
com ele todo seu “Esquadrão da Morte”, um grupo de policiais envolvidos em
esquemas de corrupção, proteção a traficantes, desvio de contrabandos. Um
deles, conhecido como Fininho, carregava no chaveiro, como amuleto, a língua de
um dedo-duro que metralhou. “Os comandantes militares sabiam que tinham
colocado um delinqüente na engrenagem policial do regime”, diz Elio Gaspari no
livro A Ditadura Escancarada, referindo-se a Sérgio Paranhos Fleury.
Quando o delegado
esteve em alta, unidades policiais enviavam suspeitos para sua base, uma
delegacia na rua Tutóia, no bairro do Paraíso. Atrás daquelas paredes, os
presos viviam o inferno. As sessões de tortura desse período estão entre as
piores de que se tem notícia, repletas de choques elétricos, afogamentos,
palmatórias, queimaduras, espancamentos em pau-de-arara e estupros individuais
e coletivos. Algumas vítimas se suicidaram anos depois. A influência do
delegado ia além dos limites do estado. Em 1969, Fleury matou Carlos Marighella
com ajuda do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que deteve no Rio
padres que tinham ligações com o guerrilheiro e os ofereceu à tortura do
delegado.
Nos quartéis, também
ocorriam maus-tratos e mortes. Houve aulas de tortura, ministradas por
oficiais. Os que se destacavam na repressão recebiam medalha cujo título seria
irônico, não fosse o contexto macabro: Ordem do Grande Pacificador. Fleury
recebeu a sua em 1971. Henning Boilesen, presidente da Ultragás que foi morto
pela esquerda, também ganhou uma.
Para os altos escalões da República, a
tortura tinha dois resultados práticos: obter informações sobre as atividades
clandestinas da esquerda e exterminar seus participantes. O primeiro era visto
como uma necessidade. O segundo, como acidente de trabalho. Mas é difícil
acreditar que a morte da vítima fosse
indesejada quando se olha a extensão dos ferimentos de alguns presos. Chael
Charles Schreier, estudante de medicina que pertencia à VAR-Palmares e foi
morto em 1969, tinha mais de 50 machucados. Seu queixo exibia um corte com
cinco pontos. A cabeça sofrera hemorragia e havia sangue “em todos os espaços”
do abdômen. O intestino fora rompido e dez costelas estavam quebradas, segundo
relato de Elio Gaspari, que examinou a necropsia de Schreier e a qualifica como
“a mais detalhada do regime”.
Fleury se destacou
tanto em obter informações quanto em matar os esquerdistas – Marighella era seu
maior troféu. A ofensiva de que participou em 1969 colocou a luta armada contra
a parede e dizimou os guerrilheiros. Para isso, contou com um passo em falso
dado pela esquerda no início do ano. Até 1968, o Exército se ressentia da falta
de informação e fora surpreendido seguidamente por ações da Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Empolgada pelo sucesso de seus
atentados, roubos a banco e justiçamentos, a VPR planejou atacar o Palácio do
Governo paulista e o quartel do 2º Exército. Para isso, esperava a deserção de
Carlos Lamarca, campeão nacional de tiro e capitão respeitado no 4º Regimento
de Infantaria. Ele iria tomar seu quartel e fugir com 560 fuzis e dois
morteiros. Mas o plano é descoberto, seus participantes são presos e Lamarca
foge às pressas do quartel com 63 fuzis e uma Kombi – o ex-capitão morreria em
1971.
Após interrogatórios e
torturas, os presos deram ao Exército um grande trunfo: conhecer a estrutura da
VPR. Era a primeira vez que isso acontecia. Em pouco tempo, ocorreram dezenas
de prisões e a organização foi desarticulada. Os presos levaram a integrantes
de outras siglas. O Grupo Tático da ALNcaiu, com alguns dos militantes cercados
pessoalmente por Fleury. Em Belo Horizonte, o Colina foi destroçado. No Rio, o
MR-8 se desfez como pó.
Repressão vira o jogo
A repressão virou o
jogo com menos de dois meses de AI-5. Passou à ofensiva e aperfeiçoou suas
engrenagens. Cada Arma tinha um centro de informações que, a exemplo do
Cenimar, ia a campo contra a subversão. Os Dops se ligaram à estrutura militar
pela Oban, iniciada em São Paulo e exportada a outros estados. Em 1970, a Oban
integrou-se aos DOIs e aos Codis, que eram regionais e pertenciam ao Exército.
Cada órgão tinha agentes que seguiam pessoas, grampeavam telefones, analisavam
interrogatórios e recolhiam boatos para “fichar” suspeitos. A repressão compôs
dossiês de pelo menos 60 mil nomes. Todos os órgãos caçavam subversivos.
Prender mais, matar mais, era motivo de disputa e status.
Essa estrutura
precisava de dinheiro. Dados do Projeto Brasil: Nunca Mais indicam que a Oban
receberia verbas até de multinacionais, como Ford e General Motors. “Na
Federação das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões
em cujo término se passava o quepe”, relata Gaspari.
No início da década de
70, a repressão exterminava terroristas e, ao mesmo tempo, ampliava seus alvos
– uma forma de justificar sua própria existência. Gente sem vínculo com a
guerrilha virou “suspeita de subversão” e foi tratada como “inimiga”. A cúpula
do regime aplaudia, a julgar pela Lei Fleury, de 1973, feita para beneficiar o
delegado, ao permitir que réus primários aguardassem julgamento em liberdade.
A repressão só iria se
modificar em 1974. Pressões da sociedade e a desordem que os porões criaram na
própria estrutura militar contribuíram para isso. Fleury então vira motivo de
preocupação para o general Ernesto Geisel, ainda antes da posse. “É um
bandidaço sem-vergonha”, definiu o general Golbery do Couto e Silva em conversa
com o futuro presidente. Desvalorizada, a face mais cruel do regime mergulha na
clandestinidade, onde se prolongaria até os anos 80, com ataques a jornais da
imprensa alternativa e à Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo.
Fleury morreu em maio
de 1979, por suposto afogamento, após cair de seu iate, em Ilhabela (SP). O
comando da polícia paulista impediu que fosse feita autópsia no corpo.
Como funcionavam os porões
As
estratégiasdos agentes que torturavame matavam
CAPTURA
Ao
descobrir a localização de um suspeito, a polícia o prendia no esconderijo ou
na rua. Mas houve gente que foi solta legalmente para depois “sumir”
ilegalmente
LAUDO
FALSO
Médicos
compactuaram com as torturas, forjando autópsias para vítimas que haviam
morrido ou mantendo o preso em condições de falar durante interrogatórios
MAUS-TRATOS
NA CELA
Choques
elétricos e o pau-de- arara foram dois dos métodos mais usados pelos
torturadores, que, quando agiam em delegacias, usavam os gritos das vítimas
para aterrorizar os demais prisioneiros
GRAMPEADO
Agentes
montavam dossiês sobre suspeitos, acompanhando suas atividades e conversas
telefônicas, por meio de escuta ilegal. Todas as Forças tinham setor de
informações
AULA
DE TORTURA
Nos
quartéis, houve casos isolados de aulas de tortura, ministradas por oficiais
diante de platéias de dezenas de militares. Os presos eram tirados da celas e
supliciados “ao vivo” para ajudar nas explicações
MÉTODOS
RADICAIS
Espancamentos,
palmatória e afogamentos também foram técnicas usadas nos maus-tratos. Contra
mulheres, houve estupros individuais e coletivos. Um preso teve a boca presa a
escapamento
DESOVA
Quando
ocorria um “acidente de trabalho”, com a morte do preso, eram montadas falsas
versões de tiroteio, cenas de suicídio ou o corpo era enterrado como indigente
MEDALHA
Militares
e civis ganhavam medalha por serviços prestados à repressão. Fleury ganhou a
sua. O nome parecia ironia: Ordem do Pacificador