por Carla Aranha
A
ditadura começou mansa. Envergonhada, na definição do jornalista Elio Gaspari,
que escreveu sobre o período. Lideranças civis que apoiaram o golpe acreditavam
que os militares sairiam de cena com a mesma facilidade com que deixaram a
caserna para entrar na vida política. Os próprios golpistas tentavam ostentar
verniz democrático. Preferiam ser chamados de revolucionários. O Congresso
continuou funcionando, embora expurgado dos políticos inconvenientes ao regime,
e houve a preocupação de redigir uma Constituição que justificasse a nova
ordem. Mas não se colocam tanques nas ruas impunemente, e não tardou para que o
autoritarismo apresentasse suas armas.
Tudo
começou pela violação de direitos políticos. Já em abril de 1964, foram
cassados 41 deputados federais, 29 líderes sindicais, 122 oficiais das Forças
Armadas simpáticos a João Goulart e várias personalidades públicas, como o
antropólogo Darcy Ribeiro – então reitor da Universidade de Brasília –, o economista
Celso Furtado e o ex-presidente Jânio Quadros. Em breve, nem o
ex-presidente JuscelinoKubitschek escaparia. Tratava-se de
suspender, por até dez anos, o direito de ocupar cargo público, assim como o de
votar e ser eleito. Os funcionários públicos que foram considerados ameaça à
“segurança do país” foram demitidos. Os expurgos atingiram em cheio as Forças
Armadas, que teve quase 3 mil integrantes punidos em 1964.
Eleição indireta
A
perseguição política estava amparada pelo Ato Institucional número 1 (AI-1),
assinado em 9 de abril pela Junta Militar que governou provisoriamente o país,
formada pelo vice-almirante Augusto Grünewald, da Marinha, o tenente-brigadeiro
Francisco de Assis Correia Melo e o general Arthur da Costa e Silva – que, anos
depois, viria a ser presidente. O AI-1 também determinou a “eleição” do novo
presidente de forma indireta. O escolhido para o cargo foi o general Humberto
de Alencar Castello Branco, empossado em 15 de abril para um governo que
ficaria marcado por um estilo mais vacilante do que propriamente brando.
Também
houve as prisões e as torturas. Documentos do Departamento de Estado dos
Estados Unidos mencionam 5 mil detenções feitas em poucas semanas após a
derrubada de Jango. No balanço de 1964, nada menos que 203 denúncias de
maus-tratos foram registradas. No ano seguinte, o presidente Castello Branco
baixou o Ato Institucional número 2, instituindo que os processos políticos
seriam julgados, daí em diante, pela Justiça Militar. “Deu-se assim o primeiro
grande passo no processo de militarização da ordem política nacional”, sustenta
Elio Gaspari, no livro A Ditadura Envergonhada. Os tribunais não escaparam dos
expurgos, contribuindo para deixar a Justiça nas mãos de parceiros do regime.
O
AI-2 também acabava com os partidos existentes. O governo obrigou todos os
políticos a se enquadrarem em duas novas legendas: a Arena (Aliança Renovadora
Nacional), pró-ditadura, que recebeu os quadros da UDN, e o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro), no qual se agruparam os restos de PTB e PSD. “Com
vários deputados de centro e esquerda cassados, na prática quem dava as cartas
era o governo, ou seja, a Arena”, afirma o historiador Jorge Ferreira, da
Universidade Federal Fluminense. As cassações de parlamentares prosseguiram em
1965 e 1966. Em outubro de 1966, a situação chega a tal ponto que até as
moderadas lideranças do Congresso reclamam desse expediente, por considerá-lo
exagerado. Em represália, Castello Branco decreta recesso parlamentar por um
mês.
O mandato de Castello
Branco iria até 1967, e o fechamento do Congresso deixa claro que a Casa,
desfigurada e de mãos atadas, irá apenas referendar a escolha de um sucessor
militar. Outro mau sinal nessa direção tinha sido o AI-3, editado no início do
ano, que estipulava eleições indiretas também para governador. “Se em 1964
ainda se tentava segurar um pouco a linha dura dos militares e dar uma
aparência de legitimidade ao novo governo, em 1966 a ditadura já começava a
mostrar que iria endurecer”, diz Ferreira.
No
final do ano, os brasileiros conheceram mais um AI, o número 4, feito só para
obrigar os deputados a se reunirem às pressas, até janeiro de 65, para que
fosse aprovada uma nova Constituição – na verdade, pronta há seis meses. O novo
texto só entrou em vigor em 15 de março de 1967 – data em que tomou posse um
novo presidente, escolhido entre os militares e incensado pelo Congresso, o
general Arthur da Costa e Silva.
Nada
disso chegou a intimidar demais a oposição, na avaliação de Jorge Ferreira.
“Naquela época ainda se acreditava que a democracia pudesse voltar ao país em
pouco tempo”, comenta o historiador. Figuras de expressão no tempo dos civis,
como o ex-presidente Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart,
no exílio, confabularam no segundo semestre de 1967 para criar uma aliança
contra o governo militar, a Frente Ampla. Meses depois, em março de 1968, a
iniciativa é declarada ilegal.
Na
mesma época, a esquerda começava a pegar em armas. Com a ajuda de Cuba, Leonel
Brizola prepara vários grupos para ação armada, que não vão adiante. Mais
efetiva é a ação da Ação Libertadora Nacional (ALN), que é criada pelo líder
comunista Carlos Marighella e por estudantes, no final de 1967. A organização
faz os primeiros assaltos a banco para arrecadar fundos para o movimento, no
Rio de Janeiro e em São Paulo. Era um início tímido. “A esquerda, os
intelectuais e os estudantes ainda não haviam se dado conta de que a ditadura
não iria largar o osso”, diz Jorge Ferreira.
Combate à inflação
Na
economia, o governo militar fez grandes mudanças logo que assumiu. Os ministros
Roberto Campos, do Planejamento, e Otávio Bulhões, da Fazenda, criaram um plano
para controlar a inflação, que chegava a 80% ao ano. Também fizeram uma reforma
tributária e outra administrativa inéditas. “A dupla Campos-Bulhões unificou os
impostos, o que representou mais arrecadação para o governo federal”, explica o
economista Frederico Lustosa, da Fundação Getúlio Vargas, do Rio. Nessa época
ainda foram introduzidos os planos de orçamento do governo, outra inovação, e
um sistema unificado de Previdência – até 1964, eram os sindicatos que, pela
contribuição mensal dos trabalhadores, garantiam a aposentadoria de cada
categoria. “Foram reformas positivas”, opina Lustosa. É uma opinião
controversa. José Maurício Soares, do Departamento Intersindical de Estatística
e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese), é um dos que discordam. “Começou em 1964 a
política de achatamento do salário mínimo como forma de conter a inflação,
segurando a emissão de dinheiro”, relata. “A concentração de renda, um dos
maiores problemas do Brasil hoje, também teve início aí,
com os empresários e investidores das bolsas ganhando mais, pois o país
crescia, e os trabalhadores ganhando menos”, analisa.
Segundo
números do Dieese, o salário mínimo de 1964 seria hoje equivalente a R$ 823; em
1965, caiu para R$ 793; em 1966, para R$ 676,76. Depois, em 1967, foi para R$
640. No ano do AI-5, o salário mínimo já tinha baixado para o que, atualmente,
representaria R$ 626. “Se muita coisa mudou na economia, a meu ver nocivamente,
na política também era uma surpresa depois da outra”, comenta Soares, que em
meados dos anos 60 estava terminando o segundo grau.
A
verdade é que a semente da ditadura violenta que se instalaria em 1968 foi
plantada em 1964 e germinou nos anos seguintes. Uma frase do preâmbulo do AI-1
é reveladora desse processo: “A revolução legitima-se a si própria”.
Congresso é fechado pela primeira vez
Para manter aparências,militares só suspenderam
trabalho sem fases excepcionais
Durante
toda a ditadura, o Congresso só foi formalmente fechado em três períodos. O
primeiro começou em 20 de outubro de 1966 e teve ares de escândalo, com o
plenário sendo invadido por forças militares do governo Castello Branco dias
antes. Essa suspensão foi até 22 de novembro de 1966. Após a decretação do
AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o Parlamento foi novamente fechado. Até 21 de
outubro de 1969, a Casa não voltou a funcionar. A terceira suspensão foi entre
1º e 14 de abril de 1977, para a edição de um pacote de medidas eleitorais que
visava garantir a vitória dos candidatos do governo. Para gerir o país de forma
arbitrária, os governos militares usaram as cassações e a legislação que era
editada sem passar pelo Congresso. A idéia era tentar manter uma fachada
democrática. “Mesmo aberto, o Congresso funcionava de forma canhestra, porque
só havia dois partidos e o governo é que legislava, por meio dos decretos-leis
e atos institucionais”, diz o historiador Jorge Ferreira.
Vista grossa para torturas
Mesmo antes doAI-5, até as mortesficaram sem
punição
Até
o final de 1968, ano do AI-5, a tortura ainda não tinha se tornado
praxe nos cárceres brasileiros. “Ela já começava a ser praticada, mas não com a
freqüência do final dos anos 60 e começo dos 70”, diz o historiador Jorge
Ferreira, da Universidade Federal Fluminense. Entre 1964 e 1968, foram
torturados e mortos 34 opositores do regime. Sabe-se até quem foi o primeiro
torturado: o líder comunista pernambucano Gregório Bezerra, que no dia 2 de
abril foi preso, arrastado pelas ruas de Recife, amarrado em um jipe e depois
espancado por um oficial do Exército com uma barra de ferro. Como ainda havia
alguma liberdade de imprensa, os jornais trataram de colocar a boca no mundo,
em reportagens sobre o caso de Bezerra e outros semelhantes. O jornalista
Carlos Heitor Cony, que à época trabalhava no jornal O Globo, no Rio, lançou-se
em 1964 em uma campanha contra a tortura. O governo se incomodou com as
denúncias, e Castello Branco decidiu enviar o general Ernesto Geisel, então
chefe do Gabinete Militar, em viagem de averiguação por vários estados
brasileiros. “A viagem teve ao menos o mérito de paralisar as torturas”,
afirmou o jornalista Márcio Moreira Alves, em seu livro Torturas e Torturados,
de 1966. Mas como os torturadores não foram punidos, sentiram-se apoiados pelos
superiores, analisa o jornalista Elio Gaspari em A Ditadura Envergonhada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário