sábado, 28 de dezembro de 2013

O Renascimento: A razão brilha para todos

Muito além das artes, o Renascimento transformou a vida social e o comportamento do homem comum

Angelo Adriano Faria Assis
Na pintura do flamengo Pieter Brueghel, O Velho, de 1565, trabalhadores em colheita. A arte do período sobrepunha a razão à fé.

O sorriso enigmático da Mona Lisa faz por merecer a multidão de turistas e a enxurrada de flashes que a registram todos os dias no Museu do Louvre, em Paris. Criada por Leonardo Da Vinci no início do século XVI, a Gioconda é resultado da utilização de técnicas de pintura apuradíssimas e proporções corporais exatas, sem falar no famoso meio sorriso e no olhar enviesado. Mais do que uma revolução artística, porém, o que aquela criação testemunha é um período de transformações culturais e sociais que varreriam a Europa e dariam luz ao homem moderno.
Em geral, o Renascimento é celebrado por suas grandes obras na pintura, na escultura e na arquitetura. Artistas do quilate de Michelangelo, Rafael, Da Vinci, Botticelli, Caravaggio, Arcimboldo, El Greco, Bruegel, Bosch, entre tantos outros, reiventarama arte com novas noções de dimensão espacial, emprego das cores e valorização dos planos e contrastes, como ochiaroescuro, ornamentação detalhada e equilíbrio geométrico. Mais tarde, o conceito de renascença seria estendido à literatura, à filosofia e à ciência. Na escrita, Cervantes, Camões, Maquiavel, Montaigne e Erasmo detalhavam desejos, medos, qualidades e defeitos do ser humano e de sua moral. Era a razão se sobrepondo à fé. Descreviam a utopia de um homem novo e do mundo perfeito, num tempo em que sonhar era arriscado.
Foi também um momento de exacerbação da escatologia, do realismo grotesco e do vocabulário das ruas, presentes nas obras Gargântua (c. 1532) ePantagruel (c. 1564), de François Rabelais, a retratar celebrações e atos cômicos do cotidiano popular. Cientistas como Copérnico, Galileu, Vesalius e Kepler ajudavam a compreender os fenômenos da natureza pela própria natureza, e não mais por vontade divina. O homem, em vez de Deus, passava a ocupar o centro das atenções.
O historiador francês Jean Delumeau, em A civilização do Renascimento, afirma que este movimento ensinou o homem “a atravessar os oceanos, a fabricar ferro fundido, a servir-se das armas de fogo, a contar as horas com um motor, a imprimir, a utilizar dia a dia a letra de câmbio e o seguro marítimo”. Fez mais: despertou o interesse pelo conhecimento do corpo, definiu maneiras de pensar a política e o sagrado, permitiu a descoberta de terras e costumes no contato com outros povos, incentivou o avanço nas ciências e no modo de entender a ordem do mundo. Pintores, escultores e escritores representaram o cotidiano e os costumes de camponeses e citadinos, a natureza, os rituais da aldeia, as fases da vida, o trabalho diário, a produção e o preparo dos alimentos, as festas, as danças, os jogos, as feiras, as batalhas, a morte, o amor.
Mas qual terá sido o impacto prático do Renascimento para o homem comum?
O advento da imprensa – graças à invenção dos tipos móveis por Gutenberg na década de 1450 – tornou-se poderoso fator de transformação social, ao acelerar e expandir a circulação das ideias para um público cada vez mais extenso, incentivando o desenvolvimento da cultura letrada, ainda bastante limitada. Embora muitos fossem analfabetos, as informações eram repassadas pelos que liam e repetidas oralmente aos demais, contribuindo para alargar a visão de mundo e para reordenar os papéis a serem desempenhados pelos homens na sociedade.
Do macro ao micro, inovações tecnológicas mudaram o entendimento do mundo. Enquanto ateoria heliocêntrica provava que a Terra girava em torno do Sol (e não o contrário, como normalmente se acreditava), microscópios desvendavam seres desconhecidos ao olho humano. O estudo da dissecação de cadáveres, que permitia a mestres da arte pintarem e esculpirem figuras humanas em perfeição de detalhes, também gerava avanços na medicina. Entender a composição e o funcionamento do corpo – veias, ossos, músculos, órgãos internos e externos, sistemas digestivo, circulatório e respiratório – auxiliava na descoberta, na identificação e no tratamento de mazelas. Aos poucos, explicações sobrenaturais para as doenças, como espíritos malignos ou influência do demônio, eram substituídas por tratamentos racionais e científicos. Surgiram o termômetro e uma série de novos instrumentos e técnicas cirúrgicas, remédios químicos e minerais, a exemplo do mercúrio. Passou-se a produzir membros artificiais, como pernas e braços mecânicos, as suturas substituíram a cauterização de ferimentos. Popularizou-se a ideia do cuidado com a saúde, diminuiu a necessidade de amputações, aumentou a expectativa de vida.
Nos campos, o aperfeiçoamento de arados, alavancas de rosca e moinhos hidráulicos somava-se a métodos organizados de plantio e experiências vindas de outras regiões e continentes, efeito das grandes navegações. Resultado: aumentou a produção e a oferta de alimentos e amenizou-se o trabalho árduo na lavoura, com reflexos imediatos na saúde da população.
O tempo passou a ser contado com maior exatidão do que antes, quando o máximo de que se dispunha eram ampulhetas, quando não o badalar dos sinos das igrejas. O relógio mecânico, composto por complexa engrenagem de rodas denteadas, molas e ponteiros, tornava precisa a indicação de horas e minutos, aumentando o controle sobre as rotinas diárias. Tratados como verdadeiros objetos de arte, ficavam muitas vezes expostos em edificações e praças públicas, enfeitando a paisagem e ordenando os afazeres, fixando e disciplinando compromissos ou a contagem das horas trabalhadas.
A aplicação dos símbolos matemáticos + e –, em vez de escritos por extenso, o uso de frações decimais, a invenção da máquina de calcular por Blaise Pascal, em 1642, a padronização de pesos, medidas e valores monetários garantiam contas mais rápidas e a exatidão de quantidades e preços, auxiliando os registros comerciais de compra e venda de mercadorias.
O florescimento das cidades, a ascensão burguesa, as novas normas de convivência e civilidade e o fortalecimento do individualismo levaram a mudanças até nos casamentos, que começavam a respeitar as preferências de cada pessoa, ao contrário dos matrimônios arranjados da Idade Média. Extremamente sensível às transformações de seu tempo, coube a William Shakespeare criar o símbolo máximo dessa revolução: a tragédia de Romeu e Julieta (1597), dois jovens apaixonados que sacrificam suas vidas em nome do amor, pondo fim à milenar rivalidade entre suas famílias.
O teatro, por sinal, mobilizava grandes públicos e era um veículo importante para disseminar as mudanças de costumes. O próprio Shakespeare possuía, em sociedade, o Globe Theatre, localizado junto ao rio Tâmisa, na capital inglesa. As peças eram encenadas durante o verão e com dia claro, para garantir transporte à plateia até a outra margem do Tâmisa e se encerrar cedo, pelo risco de assaltos. Os cenários eram simples, com poucos adereços, e os papéis femininos ainda eram interpretados por homens, pois mulheres eram proibidas de representar. Elas também raramente apareciam na plateia. Algumas companhias realizavam turnês, levando os espetáculos, recheados de críticas sociais, para públicos que viviam longe das grandes cidades, divulgando novas ideias e aumentando o interesse popular pela arte.
Embora os efeitos do Renascimento se fizessem sentir principalmente nas cidades, os locais mais afastados também foram influenciados pelas transformações da época. A rotina dos camponeses e das classes populares nunca mais seria a mesma: na forma de comer, no modo de trabalhar, nas relações sociais, na crítica aos valores estabelecidos, na relação com Deus e com o clero. Um mundo com maior presença da razão começava a ganhar força e a moldar as raízes do homem contemporâneo.
Mas a soberania da razão não impede a renovação dos horrores humanos: guerras religiosas e pela formação de Estados, a miséria e a fome que se alastravam pela Europa, armas de fogo mais potentes, a violência da conquista de novas terras e povos, a escravização de africanos. Os questionamentos à ordem estabelecida também geraram reações conservadoras, principalmente da Igreja. A Inquisição foi intensificada, espalhando uma atmosfera de perseguição e medo nas sociedades sob a alçada do Santo Ofício, como Portugal, Espanha e Itália. Perseguiam-se bruxas, hereges, protestantes, homossexuais, descendentes de judeus e mouros, proibiam-se livros e a divulgação de valores contrários à moral cristã. Indivíduos eram denunciados, presos, processados e, no limite, condenados à morte. Não eram poucos os que continuavam a acreditar em superstições, na influência do diabo e nos castigos divinos como explicação para os problemas do dia a dia. Os pintores flamengos Hieronymus Bosch e Pieter Brueghel, em quadros como Juízo Final e O triunfo da Morte, retrataram os terrores que alimentavam o imaginário popular, recheado de monstros, doenças, demônios, fantasmas, vícios, seres híbridos, hermafroditas.
Se hoje as obras de arte renascentistas são conhecidas em todo o mundo, na época eram financiadas por mecenas e costumavam ficar restritas a poucos, enfeitando palácios ou residências burguesas. Foi em termos de impacto social e cultural que o Renascimento extrapolou todos os limites. “Penso, logo existo”, filosofou Descartes. Quando o pensamento humano se liberta, um novo mundo pode existir.

Angelo Adriano Faria Assisé professor da Universidade Federal de Viçosa e autor de João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no nordeste quinhentista (Alameda, 2011), e de Macabeias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia (Alameda, 2012).


Saiba mais - Bibliografia

BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Europa, 1500-1800. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Vol. 1. Lisboa: Editorial Estampa, 1983.