quarta-feira, 8 de julho de 2015

A África na sala de aula

Obrigatoriedade de ensinar história e cultura africanas é o novo desafio dos professores brasileiros

Mônica Lima
No dia 9 de janeiro de 2003, foi aprovada a Lei no 10.639, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras nos níveis fundamental e médio. Os currículos deverão incluir "o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política (…)"
Por que uma lei para fazer valer conteúdo tão fundamental na história, especialmente na história nacional? O fato é que nossos antigos historiadores trataram indevidamente, ou ignoraram, a participação africana em nossa formação, influenciados por preconceitos originários da sociedade escravista, entre os quais os ideais de branqueamento da população brasileira nutridos, desde meados do século XIX, por boa parte das elites nacionais.
Essa ideologia foi tão forte que mesmo a intelectualidade mais progressista custou a reconhecer a questão africana na nossa história. Acreditava-se que a luta dos africanos deveria ser estudada dentro da "luta dos dominados", ou seja, segundo a sua condição de trabalhadores explorados.Nesta ótica, a África continuava fora da história: na história do Brasil, era apenas o lugar onde se buscavam os escravos; na história geral, o cenário da expansão colonial. Quanto aos afrodescendentes figuravam apenas como escravos que davam duro nas lavouras, na mineração ou nos serviços domésticos, vítimas da exploração de fundo capitalista, ou que fugiam para os quilombos. No século XIX, voltam à cena ao serem libertados do jugo escravista, para se tornarem, no século seguinte, parte da massa trabalhadora. Em alguns livros, ainda aparecem como agentes da cultura popular, o samba, a capoeira ou outra manifestação cultural mais conhecida; em outros, chegam a ser representados por personagens como Zumbi e João Cândido, mas, com algumas exceções, em breves passagens. Imagens parciais – as de oprimidos, explorados e, mesmo quando rebeldes, derrotados – que inibem a construção da auto-estima. Quem gosta de se identificar com elas?
Os estudos recentes mudam esta visão, mas é preciso saber levá-la às salas de aula. Antes, ainda, é preciso que a universidade deixe, ela também, de ignorar o tema. Que história será esta, se a maioria dos professores em atividade não a conhece? Quais serão nossos objetivos, conteúdos, abordagens? E se resgatar esta história é matéria para a construção da identidade brasileira, estamos diante de um desafio maior: Quem somos? O que desejamos ser?
Não há como recuperar a africanidade sem conhecer a própria história da África. Ao mesmo tempo, é necessário despirmo-nos dos preconceitos etnocêntricos (olhar um povo ou etnia com valores de outro) – a África como lugar atrasado, inculto, selvagem – e deixar de ou supervalorizar o papel de vítima – do tráfico, do capitalismo, do neocolonialismo -, atitude que alimenta sentimentos de impotência e incapacidade.
O fato objetivo de povos diversos terem sido espoliados por agentes externos, compactuados com agentes internos, não pode ser negado.Mas não dimensioná-lo em seu tempo e em suas implicações dentro da própria África acaba por fortalecer a idéia de que os africanos foram somente vítimas de um destino cruel, e não sujeitos de processos históricos complexos em que desempenharam outros papéis. Superar essa construção simplificada requer muito estudo, além de ampla divulgação do conhecimento. Quanto mais gente souber, melhor! Como diz a canção de Chico César: "Mais forte que o açoite dos feitores/ São os tambores".
De outra parte, cabe lembrar que é quase impossível falar da África no singular, de uma só África no Brasil: são muitas as origens, as trajetórias, as culturas. A própria noção de "africano" não existia entre os escravos até o século XIX. A identidade de cada povo, que o mundo escravocrata dissolvia, ainda assim prevalecia sobre a idéia da identidade africana, da África como terra de todos. Esta só se desenvolveria na própria África nos séculos XIX e XX, a partir das lutas de independência, que, por sua vez, culminariam, mais adiante, em ideários como os da negritude e do pan-africanismo.
Não podemos perder de vista essas histórias compartilhadas em longos períodos. Nas grandes áreas geoculturais e lingüísticas, há africanidades profundas, da mesma forma que, no Brasil, povos diferentes criaram vocabulários e formas próprias de comunicação. Somente novas pesquisas podem revelar essas múltiplas Áfricas no Brasil.Mas há também que despertar curiosidade e admiração, trazer essas Áfricas para os espaços culturais e educativos, como já se tem feito, aliás. Ler, mas também escutar, ver, participar e perceber o quanto as trazemos dentro de nós. Despertar o orgulho da africanidade, de nossos heróis, não apenas os famosos – Zumbi, os Rebouças, João Cândido -, mas também os pouco conhecidos – Manuel Congo, Luíza Mahin – e os desconhecidos – os Antônios Minas, as Marias Cabindas, as Joanas Crioulas. Também não podemos mais repassar em nossas aulas informações folclorizadas ou idealizadas. Nem repetir modelos – a África apenas como a terra da macumba, da capoeira, do tambor.
O que está em jogo, mais do que a competência, é o nosso compromisso. Além de nos atualizarmos, vamos também cobrar das autoridades: foi estabelecida uma obrigatoriedade, mas isso não basta. Estudantes universitários, militem pela inclusão efetiva desses assuntos nos currículos de suas faculdades: professores, solicitem da rede de ensino a realização de cursos – isto já é realidade em alguns municípios. Busquem e criem novos espaços de estudos e pesquisas.
Muito já pode ser feito na sala de aula, independentemente de decisões institucionais. No ensino fundamental, trabalhar com lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Nas aulas de Integração Social, falar da presença africana na música, nas festas, no vocabulário, na alimentação.No segundo segmento do primeiro grau, trabalhar a "Pré-História" – sem deixar de questionar o termo, pois não é a escrita que cria a história – como o tempo do processo de hominização, que se deu primeiro na África. Não deixar passar o esplendor do Antigo Egito, sem lembrar que este fica na África, algo óbvio, mas que acaba esquecido. Falar também dos grandes reinos africanos que, no período correspondente à Idade Média européia, ergueram cidades, com universidades, bibliotecas, contatos com o Oriente e Europa – e que tanto encantaram viajantes como despertaram a cobiça de outros povos com suas minas de ouro: "Falar em ouro na Europa medieval era falar da África", escreveu o historiador francês Pierre Vilar. E ao tratar do tráfico de escravos, mercadoria que fazia a riqueza de comerciantes, não esquecer da outra riqueza, a espiritual, que não se mede em ouro, trazida "lá de longe".
No ensino médio, situar o surgimento do racismo como projeto científico e político, utilizando estratégias que permitam aos alunos desconstruir e reconstruir idéias mediante pesquisas orientadas, júris simulados, dramatizações. Debater as formas do colonialismo europeu na África, as transformações que operou – discutir fronteiras, territórios e conflitos, temas da história contemporânea. E, articulando com a nossa história, assinalar a fratura exposta da desigualdade racial brasileira.Nunca é demais repetir: nossa pobreza tem cor, nossa exclusão tem cor.
Outro ponto fundamental é destacar aspectos da afro-americanidade, introduzindo elementos que aproximam e diferenciam a história dos afrodescendentes em todo o continente. Temos uma história comum não apenas entre África e Brasil, como entre os africanos e seus descendentes no Novo Mundo. Mas também nos unem as reflexões necessárias sobre os projetos de identidades nacionais no continente. Os currículos devem aprofundar a percepção destes processos na história da América. Trata-se, enfim, de resgatar a África e africanizar a história do Brasil: além do sentimento de um passado comum, consolidar um conhecimento libertador. Pois, como ensinam os versos de Antônio Jacinto, poeta e militante angolano,
"O ritmo do tantã não tenho
no sangue
nem na pele
tenho o ritmo do tantã
sobretudo
mais no que pensa"
("O Ritmo do Tantã")
Mônica Lima é professora de História do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense.

Fonte: LIMA, Mônica. A África na sala de aula. Revista Nossa História, ano 1, nº4, fevereiro 2004. P.84-86.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Sintonizando seguiremos

  • Rádio e televisão protagonizaram a grande virada tecnológica do século passado, revolucionando a comunicação também no Brasil

    Marialva Carlos Barbosa
  • “Engenho e arte só comparável ao cinema”, anunciava a propaganda de revista, refletindo o entusiasmo provocado pelas novas tecnologias de comunicação que transformariam o século XX. A frase publicitária, publicada nos anos 1920, referia-se ao rádio – o que soa irônico para quem sabe que anos depois viria a televisão. Mas o rádio também foi uma revolução.
    Em 1922, a fabricante americana Westinghouse montou uma estação retransmissora no alto do Corcovado, no Rio de Janeiro, e outras em São Paulo, Juiz de Fora e Belo Horizonte. A primeira transmissão aconteceu durante a abertura da exposição comemorativa do centenário da Independência, em 7 de setembro, e a primeira emissora viria no ano seguinte, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. A atividade de radiodifusão foi logo regulamentada, e surgiram outras emissoras baseadas no modelo Rádio Clube: associados garantiam seu funcionamento contribuindo com uma quantia mensal.
    Se no início muitos interessados na nova tecnologia podiam montar eles mesmos seus aparelhos, com o tempo aumentou a sofisticação, permitindo outras possibilidades de escuta. Aos poucos, o rádio se transforma de hobby em negócio – e em poderosa arma política. De 1930 a 1937 foram fundadas 43 emissoras, sendo apenas duas estatais. Quando se instituiu a ditadura do Estado Novo (1937-1945), o governo enxergou a importância estratégica do rádio para a sua comunicação, assim como faziam, aliás, o nazismo e o fascismo na Europa. A criação do Programa Voz do Brasil, transmitido para todo o continente, foi uma das estratégias usadas por Getulio Vargas para falar diretamente ao público. A Rádio Nacional também transmitia seus discursos proferidos em cerimônias no Estádio São Januário, em datas comemorativas importantes para a ditadura. No ano de implantação do Estado Novo, havia no Brasil 62 estações em funcionamento; em 1945, quando o regime ditatorial de Getulio Vargas chegou ao fim, o número de emissoras chegava a 111.
    Diversas razões podem ser atribuídas à popularização do rádio: a percepção do seu valor comunicacional, a transformação tecnológica (modelos com alto-falantes permitindo a escuta coletiva), as mudanças na programação, como a inclusão de músicas populares – sambas, boleros e outros gêneros de preferência do público – a criação de programas humorísticos e de programas de calouros, a diminuição do preço dos receptores, a implantação de sistemas de crediário. O aparelho tornou-se obrigatório em toda e qualquer residência, articulando, pela primeira vez, o país inteiro numa grande teia de comunicação. Em 1948, o número de domicílios com rádio chegava a 91% no Rio de Janeiro e 88% em São Paulo.
    Era a chamada “Era de Ouro” do rádio: cantores tornavam-se “reis e rainhas da voz” em programas de auditório que reuniam milhares de pessoas. Nas rádios que possuíam auditórios, como a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, as filas dos ouvintes para ver os seus ídolos pessoalmente tomavam vários quarteirões, desde as primeiras horas da madrugada. Os programas populares, os humorísticos e as radionovelas levavam o mundo próximo e o mundo da fantasia para o público. ODiário de Notícias de 4 de julho de 1947 noticiava: “A gente do povo é, sobretudo, a que não apenas usa, mas abusa do rádio. Tem a mania de ouvi-lo de manhã à noite, seja o que for”.
    À medida que a década de 1950 vai chegando ao fim,o público cria novas relações com outro meio de comunicação que, além do som, espalha imagens. Telas em preto e branco, turvas, cheia de chuviscos, com imagem quase imperceptível e som repleto de interferências trarão para o mundo da comunicação uma nova mídia: a televisão.
    Um dia antes da inauguração da TV Tupi Difusora de São Paulo, em 1950, o anúncio das lojas Mappin veiculado no jornalFolha da Manhã, de 17 de setembro de 1950, convidava possíveis compradores a assistirem à novidade na loja, num “receptor GE, pungente reprodutor de imagem e do som”. O aparelho custava Cr$ 38.950, enquanto um rádio era vendido a Cr$ 3.950 – poucos podiam comprá-lo. Tanto a TV Tupi do Rio quanto a de São Paulo foram obra do empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), proprietário dos Diários Associados. Foi ele quem encomendou os equipamentos à RCA, nos Estados Unidos, trazendo também os técnicos responsáveis pelas instalações.
    Em sua primeira década, atelevisão se caracterizou pelo improviso na programação,mas já começava a ser vista como veículo de publicidade. “Um anúncio no vídeo reúne as qualidades do anúncio em jornal e as qualidades do anúncio em rádio, com a vantagem da imagem, o que ameniza e torna simpática a mensagem”, dizia a revista Radiolândia, em 1954.
    Na mesma revista, também em 1954, a coluna “Televisolândia” informava que “os artistas vão se tornando ídolos de um público mais apaixonado”. O público podia, agora, reagir diante desses astros que tinham ganhado rostos. Crianças e senhoras desejavam abraçar os mais populares e, sobretudo, “admirá-los como criaturas irreais”. A televisão tornava presente para o público o retrato em preto e branco dos artistas e de personagens que se transformavam em ídolos do cotidiano.
    A década termina com mais de 400 mil aparelhos receptores. Em 1964, existiam 34 estações, cobrindo parte significativa do território nacional. Com o golpe militar e durante todo o período da ditadura, a televisão passa a ter papel estratégico na difusão da ideologia da segurança nacional, ao mesmo tempo em que se beneficia do regime para garantir sua expansão. É uma questão muito complexa, que não pode ser generalizada, mas é possível sugerir que tal estratégia dividiu os brasileiros entre desconfiados e apáticos. A ideologia da segurança nacional era a chave política do regime militar que precisava ser difundida em todo o território nacional. Houve muitas vozes discordantes e houve também muita repressão e perseguição política. Com repressão, aumentava o grupo dos apáticos.
    Se durante três décadas o rádio tivera a preferência do público, agora a televisão procurava influenciar os hábitos dos ouvintes gradualmente transformados em telespectadores. A principal emissora era a Rede Tupi de Televisão e seu principal programa, o Repórter Esso. Em 1969 o homem pousou na lua e este foi o primeiro acontecimento transmitido ao vivo pela televisão.
    A TV Globo, inaugurada em 1965, tentava conquistar o público veiculando programas populares, como os de Dercy Gonçalves e Raul Longras, que promovia o seu “casamento na TV”, tendo se tornado um santo Antonio casamenteiro da era eletrônica. A proximidade da Globo com os governos militares lhe permitia usufruir do desenvolvimento de um sistema de telecomunicações que passaria a cobrir boa parte do território nacional. Sua ligação aos interesses internacionais – fez um acordo com o grupo norte-americano Time-Life, que resultou na injeção de recursos para a implantação da emissora – também seria fundamental para o desenvolvimento da empresa. Em 1970, já havia aparelhos de televisão em 4 milhões de residências, atingindo, aproximadamente, 25 milhões de telespectadores. A popularização da TV foi impulsionada, inclusive, por uma evolução tecnológica – as imagens começam a ser propagadas por micro-ondas – o que torna possível exibir programas simultaneamente em uma rede de retransmissoras. A televisão vira, enfim, um meio de comunicação de massa.
    A Globo consolida sua liderança na audiência no final da década de 1970. Em 1987, com 12 mil funcionários, era a quarta maior rede privada do mundo, atrás apenas das norte-americanas CBS, NBC e ABC. Com suas 86 emissoras, alcançava 99% do território nacional.
    As décadas finais do século XX foram marcadas pelo impulso tecnológico que iria estimular a convergência de telecomunicações e informática, mudando os rumos dos meios de comunicação e inaugurando processos de transformação desses meios, reinventados pelas mídias digitais. Rádio e TV transformaram para sempre a paisagem sonora e visual das cidades brasileiras. Hoje cabem na palma da mão.

    Marialva Carlos Barbosa é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de História da comunicação no Brasil (Vozes, 2013).


    Saiba Mais - Bibliografia

    CALABRE, Lia. O rádio na sintonia do tempo. Rio de Janeiro: Casa Rui Barbosa, 2006.
    RIBEIRO, Ana Paula; SACRAMENTO, Igor & ROXO, Marco. História da Televisão no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010.

Escravo é aquele que não sou eu

Escravidão era prática usual na África antes de os europeus chegarem e, quando virou negócio global, continuou enriquecendo africanos

Alexandre Vieira Ribeiro
Com quase quatro séculos de duração e mais de 12 milhões de seres humanos embarcados na costa africana, o tráfico transatlântico de escravos foi o maior fluxo migratório forçado da História, pelo menos até o século XIX. E os beneficiários desse comércio, rapidamente transformado em um dos principais motores da economia mundial, não estavam exclusivamente na Europa e na América. Os homens e as mulheres embarcados nos navios negreiros eram capturados e negociados por africanos. O tráfico foi um negócio afro-europeu. 
Gravura de atlas do século XVII. Antes do século XV, já havia um comércio de escravos que envolvia a África, o oriente Médio e o extremo oriente. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Gravura de atlas do século XVII. Antes do século XV, já havia um comércio de escravos que envolvia a África, o oriente Médio e o extremo oriente. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
A escravidão e o comércio de pessoas na África existiam antes da chegada dos europeus. Comerciantes atravessavam o deserto do Saara e o mar Vermelho com carregamentos de cativos que eram ofertados em mercados do norte da África e do Oriente Médio. Há notícias de envios de escravos para o Extremo Oriente, onde eram vistos como bens exóticos. A inserção dos europeus nesses mercados fez a atividade ganhar vulto. Começou ainda no século XV, como uma atividade paralela da expansão portuguesa pela costa ocidental da África. No contato com os povos subsaarianos, pequenas levas de escravos eram adquiridas e enviadas para Lisboa, Algarve e outras regiões do Mediterrâneo. No século seguinte, a opção pelo uso de mão de obra escrava nas colônias da América causou a explosão da demanda por africanos.

Em diversos pontos da costa africana, os europeus encontravam indivíduos dispostos a vender escravos. A diversidade de povos do continente impedia que se forjasse entre eles uma identidade comum. Não se reconheciam como iguais. Constituíam laços de solidariedade por meio de linhagens, clãs e Estados, e escravizavam os diferentes. O escravo era a única forma de propriedade privada na África, pois a terra era considerada um bem coletivo. A escassez de mão de obra possibilitou a disseminação de escravos por todo o continente, principalmente na realização de trabalhos agrícolas. Exerciam também funções de mineradores, artesãos, serviços domésticos e até mesmo militares.
Ao se tornar escravo, o indivíduo era deslocado de sua terra e perdia os vínculos com seu grupo de origem. Vencido numa guerra, tinha sua pena comutada: em vez da morte física, a “morte social”. Seu único laço era o senhor e somente a ele devia fidelidade, pois passara a viver como um estranho numa nova sociedade. Por isso muito líderes de Estados complexos tinham seus exércitos compostos por escravos e chegavam a incorporá-los em destacados cargos administrativos, tendo em vista as ameaças que sofriam de homens livres, mais devotos aos chefes de seus clãs e linhagens. Estabelecia-se uma relação orgânica entre senhor e escravo, na qual havia dependência mútua.
Os europeus souberam tirar proveito dessa situação e passaram a ofertar produtos em troca de escravos. Os bens importados eram supérfluos, como rum, cachaça, vinho, fumo, tecidos, armas de fogo, pólvora e utensílios de metal, muitas vezes de qualidade inferior àqueles produzidos na própria África. Mas davam prestígio. As lideranças locais adquiriam esses artigos para cooptar adversários políticos, angariar apoio e consolidar seu poder.
Europeus recebidos pela rainha Nzinga nos desenhos de Giovanni Cavazzi, 1678. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Europeus recebidos pela rainha Nzinga nos desenhos de Giovanni Cavazzi, 1678. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Sociedades descentralizadas também mercadejavam com os europeus. Muitas buscavam obter, em troca de escravos, objetos de metal que os ajudassem na agricultura, na caça e na defesa contra inimigos mais bem estruturados. Ou armas e munições que lhes garantissem maior poder de fogo. As guerras foram o mecanismo principal para a escravização de indivíduos. Como exigiam um alto nível de organização e investimento, só podiam ser realizadas pelos Estados mais fortes. Já as sociedades descentralizadas atuavam localmente, praticando raptos, cobrando dívidas e punindo crimes com a escravidão. Não raro, pessoas se entregavam à escravidão, juntamente com sua família, por falta de alimentos – fosse pela seca ou por pragas de insetos.

A presença de europeus na costa redirecionou muitos desses cativos ao tráfico transatlântico. Em geral as transações ocorriam no próprio navio negreiro ancorado ao largo da costa. Pequenos grupos de cativos eram levados por mercadores africanos ao capitão, que realizava ainda a bordo o pagamento. Outros tomavam a crédito produtos com a promessa de retornarem com carregamento de escravos. Como garantia, deixavam parentes sob a custódia do capitão. Algumas vezes as âncoras foram içadas e os navios partiram levando pessoas da estima dos comerciantes africanos.
Nem todos os escravos eram remetidos ao comércio internacional. Geralmente, as sociedades africanas retinham as mulheres e as crianças. A mulher, por sua capacidade reprodutiva, as crianças, por serem mais propensas a absorver uma nova cultura e códigos morais. Atravessaram o Atlântico principalmente homens adultos, atendendo à demanda dos mercados do Novo Mundo.
A associação de chefes locais com o tráfico internacional alterou o equilíbrio de forças em todo o continente. Novas organizações políticas sugiram, como o reino de Cassange, fruto da aliança de povos do interior da África Centro-Ocidental com os portugueses. Na baía de Biafra, os ibos e ibibios, aliados a ingleses e franceses, enriqueceram mercadejando escravos e viraram a nova elite econômica local.
Os marinheiros que quisessem ter acesso a escravos tinham que pedir permissão para uma autoridade local para permanecerem atracados e negociar. Pleiteavam também a construção de fortes para se resguardarem da chegada de rivais europeus, e de armazéns onde estocavam mantimentos e artigos usados nas trocas. A construção de fortes e feitorias nas praias africanas só era autorizada após uma série de tratativas com os líderes. Era preciso oferecer uma variedade de presentes para muitas pessoas a fim de garantir o bom andamento dos negócios. Ainda assim, nem sempre se agradavam os soberanos. Em 1759, insatisfeito com o andamento do comércio, o rei daomeano Tegbessu expulsou o diretor do forte português em Uidá, impedindo que navios baianos negociassem na região.
Mulheres e crianças no Congo, 1885. Em geral, os homens adultos eram os escolhidos para serem escravos no Novo Mundo. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Mulheres e crianças no Congo, 1885. Em geral, os homens adultos eram os escolhidos para serem escravos no Novo Mundo. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Os comboios com carregamento de escravos vinham de regiões interioranas. Rotas de milhares de quilômetros de distância eram percorridas até que se alcançassem os portos de embarque. Por esse caminho, muitos lucravam com a venda de víveres para as expedições. Autoridades locais recebiam taxas pelo direito de passagem em suas terras. A dieta do escravo, desde o momento da sua captura, era insuficiente para nutri-lo de forma adequada. O índice de mortalidade era elevado, criando um ambiente propício para a disseminação de doenças que rapidamente se alastravam e atingiam regiões inteiras. Um surto de varíola fechou o porto de Luanda na primeira década do século XIX, estancando o fluxo negreiro e causando muitas mortes entre livres e cativos.

Apinhados dentro de embarcações em condições degradantes, homens e mulheres, adultos e crianças, padeciam durante a travessia atlântica. Havia racionamento de comida e a água de qualidade duvidosa era limitada a pequenas doses. O ar dos porões onde eram acomodados era nauseabundo, uma mistura de suor com dejetos humanos. Alguns comandantes, conscientes do valor de seu carregamento, permitiam que os escravos circulassem por alguns minutos no convés para respirar. Não é de surpreender que no século XVIII a mortalidade nesses “tumbeiros” girasse em torno de 14%.
O sistema de navegação à vela precisava seguir a orientação dos ventos e das correntes marítimas do oceano. No Atlântico norte, eles movimentam-se no sentido horário, o que forçava os navios que partiam da Europa para o Caribe a descer primeiro em direção à Linha do Equador para depois navegar para o norte. No Atlântico sul, os ventos e as correntes marítimas movem-se no sentido anti-horário, levando navios que partiam do Brasil para a África a seguir primeiro a corrente rumo ao sul para cruzar o oceano, e então tomar a corrente de Benguela para o norte ao longo da costa africana.
Foram esses ventos e correntes marítimas que influenciaram as conexões entre regiões americanas e africanas. O comércio de escravos brasileiro importou cativos de cinco amplas áreas daquele continente: Senegâmbia, Costa da Mina, baía de Biafra, África Centro-Ocidental e Sudeste africano. A Senegâmbia compreendia a costa entre os rios Senegal e Gâmbia e foi uma das primeiras regiões a fornecer escravos ao tráfico transatlântico. Os navios luso-brasileiros embarcavam escravos nos portos de Cachéu e Bissau e em mercados próximos, estabelecidos na região de Serra Leoa, nas ilhas de Cabo Verde e Bijagós. A Costa da Mina era o maior território costeiro envolvido no comércio de escravos. Compreendia a área entre as atuais Libéria e Nigéria. Nessa região, os capitães luso-brasileiros costumavam negociar na baía do Benin. Na baía de Biafra, entre os atuais Nigéria e Camarões, os traficantes ingleses tiveram grande atuação, mas dali também saíam escravos em quantidade para os comerciantes brasileiros. A região Centro-Ocidental (do atual Gabão até o sul de Angola) estava entre as primeiras grandes fornecedoras de cativos para o Brasil. E o Sudeste africano, principalmente a atual costa de Moçambique, era a mais longa rota da atividade negreira, apenas uma alternativa às demais fontes de escravos.
Comerciantes baianos tinham representantes em portos da Costa da Mina, enquanto os cariocas privilegiavam a África Centro-Ocidental. As redes comerciais inter-regionais garantiam o bom andamento dos negócios. Uma das chaves para o sucesso era o acesso à informação: sócios em ambos os lados do Atlântico trocavam mensagens comunicando as necessidades e o ambiente de negócios nos portos. A confiança no parceiro de negócios era fundamental, uma vez que milhares de milhas náuticas separavam as duas esferas desse mercado.
O trato negreiro era uma atividade muito arriscada. Para além da mortalidade dos escravos em alto mar, havia o risco de rebeliões, pirataria e naufrágios, que poderiam causar danos irreparáveis aos negócios de um comerciante em início de carreira. Por isso, era também uma atividade concentrada nas mãos de poucos. Com os 10 contos de réis empregados no custeio da viagem do bergantim Ceres para a Costa da Mina, em junho de 1803, podia-se adquirir, na Bahia, o Engenho do Macaco, na Vila de São Francisco da Barra, com todas as suas casas e benfeitorias, e ainda sobrariam quase 3 contos de réis. Em suma, com a quantia necessária para uma expedição negreira, os traficantes poderiam converter-se em senhores de terras e de homens. Se assim não o faziam é porque o retorno do comércio negreiro era bem superior aos investimentos produtivos, como fazendas e engenhos.
O tráfico de escravos causou sofrimento incomensurável a milhões de seres humanos, levados à força de suas terras, apartados de seus parentes e amigos. E mudou o mundo, principalmente o Novo Mundo. Influenciou aspectos políticos, econômicos e sociais tanto nas áreas agrícolas como nas urbanas. E sua herança cultural definiu o que seriam os povos da América, moldando sociedades miscigenadas.
Alexandre Vieira Ribeiro é professor da Universidade Federal Fluminense e autor da tese “A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo mercantil (c.1750-c.1800), (UFRJ, 2009).
Saiba Mais:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003

Outras bandeiras do lucro infame

Auge do comércio de escravos foi liderado pela Grã-Bretanha, e trouxe Europa e Estados Unidos para a modernidade

Richard Price (Tradução: Rodrigo Elias)
Escravos capturados para serem vendidos no Suriname, em 1796. (Imagem: Reprodução)Escravos capturados para serem vendidos no Suriname, em 1796. (Imagem: Reprodução)
Ao longo de três séculos e meio de tráfico transatlântico de escravos, cerca de 12,5 milhões de seres humanos foram trazidos à força para as Américas. Entre 1492 e 1820, africanos escravizados constituíram mais de 80% das pessoas que desembarcaram nas Américas. Que nações participaram neste crime sem precedentes contra a humanidade? Que nações lucraram com o comércio?
Sabe-se que o Brasil recebeu cerca de 45% de todos os africanos trazidos como escravos para as Américas – mais do que qualquer outra nação – e que navios portugueses (e brasileiros) conduziram 47% de todos os africanos escravizados que cruzaram o Atlântico (37% deles foram transportados pelo Atlântico em embarcações que saíram do Brasil – 5% de Pernambuco, 15% da Bahia e 17% do Sudeste brasileiro, particularmente do Rio de Janeiro). E quanto às outras nações?
Deixando de lado Portugal/Brasil, as maiores nações comerciantes de escravos foram a Grã-Bretanha (cujos navios carregaram 26% dos cativos), França (11%), Espanha (8%), Holanda (4%), Estados Unidos (2%) e os Estados bálticos (menos de 1%). Ao longo de todo esse comércio de escravos, “embarcações do Brasil, Inglaterra, França, Portugal e Holanda carregaram 90% de todos os cativos transatlânticos removidos da África”, como escreveram em seu atlas David Eltis e David Richardson, cujas estatísticas tomo como base para este artigo.
Nos primeiros anos, as maiores nações comerciantes de escravos eram Portugal e Espanha. O comércio espanhol de escravos para as Américas começou em 1501, com embarcações partindo principalmente de Sevilha e, em menor número, de Cádiz, carregando ferramentas, mosquetes, pólvora, panelas, roupas, miçangas, chapéus e bebidas para trocar com africanos por pessoas escravizadas que eram muitas vezes cativos de guerras internas. Seus portos africanos preferenciais estavam na África Central Ocidental. Navios portugueses deixavam seus portos de origem em Lisboa e, em número menor, no Porto, também rumo à África Central Ocidental. Navios portugueses armados nesse período no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro tomavam o mesmo destino. Os espanhóis carregavam suas cargas humanas da África principalmente para o Caribe, enquanto os portugueses as levavam principalmente para o Brasil e, em menor escala, para a América espanhola. Entre 1501 e 1641, embarcações portuguesas ou brasileiras respondiam por três quartos do total do comércio, com navios espanhóis carregando o outro quarto (outros europeus transportaram apenas entre 1 e 2%). Mas o tráfico transatlântico de escravos estava apenas começando: todo esse período inicial representou apenas 7% do total de africanos escravizados que seriam transportados para as Américas até o século XIX.
Ao longo da costa ocidental africana, os europeus construíram fortes que constantemente mudaram de mãos nas guerras entre nações. Europeus conhecidos como “feitores” representavam companhias comerciais e negociavam escravos com líderes africanos, para os fortes ou castelos. As nações europeias se especializaram em diferentes mercadorias na troca por escravos. Os britânicos negociavam prioritariamente com “lãs e linhos de Manchester e Yorkshire, chitas da Índia, sedas da China, e facas, espadas, mosquetes, pólvora, barras de ferro e bacias de latão de Birmingham e Sheffield, além de lençóis velhos (muito procurados), chapéus pomposos, contas de vidro e várias bebidas destiladas”, segundo Daniel P. Mannix e Malcolm Cowley. Uma vez que a maioria destes produtos era de fabricação inglesa, aquela nação lucrava duplamente no tráfico de escravos. Franceses e holandeses também se utilizavam de bens manufaturados em seus próprios países, como têxteis e ferramentas de baixo custo.Neste aspecto os portugueses estavam em desvantagem, pois precisavam comprar na Holanda a maior parte dos bens para suas trocas.
Foi na segunda metade do século XVII e durante o longo século XVIII (até 1807) que o comércio transatlântico de escravos realmente decolou. As nações cujos navios carregaram a maior parte dos escravos durante o período foram, em ordem, os britânicos, com 3.247.000 cativos (38% do total), os portugueses, com 3.061.000 (36%), os franceses, com 1.188.000 (14%), os holandeses, com 541.000 (6%), os norte-americanos, com 292.000 (3%) e os espanhóis, com 42.000 (menos de 1%).
Durante o século XVIII, toda a costa ocidental e central ocidental africana estava explorada, mas diferentes nações europeias preferiam partes específicas do continente, onde haviam estabelecido relações especiais com os governantes. Os portugueses mantinham laços com Angola e Congo – 75% de todos os africanos levados para o Brasil saíram destas regiões, em parte porque a distância entre essa região e o Brasil é menor (Salvador foi uma exceção: estabeleceu uma ligação forte com a enseada de Benin.) Os britânicos comercializaram mais ao norte da costa ocidental, sendo o Golfo de Biafra, a enseada de Benin e a Costa do Ouro suas áreas preferidas.
Surpreendentemente, cerca de 46% de todas as viagens transatlânticas de escravos foram organizadas nas Américas, e o Brasil respondeu por mais de 75% delas. Na Inglaterra, Liverpool, Londres e Bristol foram armados 30% dos navios usados nesse comércio. Os portos franceses de Nantes, La Rochelle, Le Havre e Bordeaux respondem por cerca de 12% do total. Lisboa armou 4%, portos holandeses 4% e espanhóis 1%. Quanto aos Estados Unidos, que respondem por apenas uma pequena parte (1%) do tráfico de escravos, os principais portos escravistas estavam, curiosamente, no norte: New London (em Connecticut), Newport, Bristol e Providence (em Rhode Island), e Boston e Salem (em Massachusetts).
O comércio transatlântico de escravos foi formalmente abolido pelas nações europeias entre 1803 (data do banimento dinamarquês) e 1836 (quando Portugal se tornou a última nação do continente a banir o tráfico), e pelos Estados Unidos em 1807. Mas o tráfico continuou até 1867, quando o último navio negreiro chegou a Cuba. Durante todo esse período ilegal, mais de 1 milhão de escravos africanos desembarcaram nas Américas: 70% para o Sudeste do Brasil e a maior parte dos restantes para Cuba. O comércio ilegal foi organizado principalmente a partir de portos franceses, espanhóis e portugueses. Nantes era o maior, seguido por Lisboa, mas outros portos europeus participaram – como Liverpool, Le Havre e Cádiz.
Não é possível classificar nações a partir do quão cruéis eram as condições em seus navios negreiros: a vida a bordo era sempre miserável. Em alguns casos infames, capitães pensavam que poderiam ter mais lucros resgatando apólices de seguros de escravos do que vendendo-os em seus destinos, então simplesmente atiravam africanos vivos ao mar, alegando às seguradoras que eles haviam ficado doentes e morrido.
Desde Capitalism and Slavery (“Capitalismo e Escravidão”), de 1944, livro clássico de Eric Williams, que argumentou que escravidão e comércio escravo forneceram o capital para a Revolução Industrial na Grã-Bretanha, houve muito debate sobre a lucratividade do comércio negreiro e se ele foi abolido por razões econômicas (porque a escravidão não era mais rentável do que o emprego de trabalho livre) ou por motivos humanitários. Parece claro que o comércio transatlântico de escravos desempenhou um papel fundamental não apenas fornecendo capital para a Grã-Bretanha, mas também trazendo a Europa e os Estados Unidos completamente para a época moderna.
Richard Price éprofessor emérito de Estudos Americanos, Antropologia e História do College of William & Mary nos Estados Unidos e coautor de O nascimento da Cultura Afro-americana (Editora Pallas, 2003). Seu site é www.richandsally.net.
Saiba Mais
ELTIS, David & RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven: Yale University Press, 2010.
MANNIX, Daniel P. & COWLEY, Malcolm. Black Cargoes: A History of the Atlantic Slave Trade. New York: Viking, 1962.
REDIKER, Marcus. The Slave Ship. A Human History. New York: Viking, 2007.  

Em nome do Pai, do filho e da Real Fazenda

Europeus buscavam na religião as justificativas para o comércio de escravos, mas a grande preocupação dos colonizadores era com o fluxo de trabalhadores
Joice Santos
Em 21 de outubro de 1795, D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, dava o seu parecer sobre a chegada de uma embaixada daomeana e, mesmo com as considerações negativas sobre daquele potentado africano, destacava a sua importância em termos econômicos: “À vista da carta que me apresentaram do rei Dagomé [...] e da consideração de que convém a boa harmonia com este potentado sumamente ambicioso e soberbo, em razão do comércio de resgate dos escravos tão interessante à Real Fazenda e tão necessário para a subsistência da lavoura destas colônias”.
Os interesses da Real Fazenda e a subsistência da lavoura foram justificativas formadas ao longo do período em que o reino português estabeleceu sua administração no além-mar. Os primeiros argumentos para a submissão de outros povos, entretanto, não tinham relação direta com economia – eles vieram sob a forma de aprovação da Igreja Católica. Através das bulas Dum Diversas (1452), Romanus Pontifex (1455) e Inter Coetera (1456), Roma legitimava a escravização dos infiéis e a conquista e a vassalagem de todas as populações ao sul do Cabo Bojador, no Marrocos, com o objetivo de conversão ao cristianismo. Em um plano mais geral, justificava a expansão marítima portuguesa.
A expulsão dos muçulmanos e judeus de Portugal em 1496 estimulou o “resgate” dos povos não cristãos. O próprio termo dava conta da tentativa de trazer à luz divina aqueles que estavam na completa ignorância, não os muçulmanos, já que estes já rejeitavam o cristianismo, mas aqueles que desconheciam a palavra divina. Os que seriam resgatados, segundo a lógica do cristianismo europeu, teriam a possibilidade de viver em melhores condições do que na África, em meio à barbárie.
Em relato de meados do XV, o cronista português Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), ao narrar as aventuras do Infante D. Henrique, afirmava que os negros africanos tinham sinais de bestialidade pela forma como se alimentavam, se vestiam e se relacionavam com os seus semelhantes. Para defender a legitimidade do resgate, Zurara indicava que os africanos que haviam migrado para Portugal aprenderam o português, além de terem adquirido novos hábitos em decorrência do seu contato com os europeus.
Os cristãos, naturalmente, faziam esta justificativa remontar ao texto bíblico. A maldição lançada por Noé ao seu filho Cam havia recaído sobre os negros, que seriam seus descendentes, destinando-os à servidão. O cristianismo, portanto, teria um papel civilizador ao resgatá-los da barbárie. Esse mesmo princípio de civilidade dada pela religião justificou a escravidão indígena na América espanhola, através de bula promulgada pelo papa Alexandre VI ainda no início do século XVI. A população indígena foi forçada a trabalhar em um sistema chamado de encomienda, no qual o rei concedia benesses aos primeiros colonizadores, incluindo a força de trabalho dos índios. No entanto, o ritmo de trabalho adotado, aliado às doenças trazidas pelos europeus, fez com que esta população entrasse em declínio. Em função dos maus-tratos e das denúncias da própria Igreja, a Coroa espanhola acabou por interferir na relação entre os colonizadores e os indígenas, em 1542, proibindo a escravidão indígena, determinando o fim da encomienda e estabelecendo o repartimiento – na prática, mantendo o trabalho forçado dos indígenas, agora de forma sazonal.
O fim da exploração indígena na América espanhola foi defendido pelo frade dominicano Bartolomeu de Las Casas (1484-1566), que não reconhecia, em oposição à posição defendida por Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573), a barbárie dos indígenas: “eles não são ignorantes, desumanos ou bestiais. Ao contrário, muito antes de ouvirem a palavra ‘espanhol’ tinham Estados adequadamente organizados, sabiamente governados por excelentes leis, religião e costumes”.
A defesa e o fim da escravidão indígena já nos primeiros decênios da colonização espanhola não foram seguidos no caso lusitano. Os chamados “negros da terra”, termo adotado por jesuítas e colonos portugueses para designar os índios, foram utilizados em larga escala no início da colonização. Segundo o historiador norte-americano Stuart Schwartz, a palavra “negro” em Portugal estava diretamente relacionada a uma posição servil e deixou de designar os indígenas apenas na medida em que aumentou o número de escravos africanos na América portuguesa.
Essa transição entre a mão de obra escrava indígena e a africana não se deu por conta da proibição de aprisionamento dos primeiros, o que de fato ocorreu em meados do XVIII. Também não se deu por conta de alguma pressão ideológica contra o cativeiro dos nativos – a exemplo de religiosos como o padre Antônio Vieira (1608-1697). Em terras portuguesas, ao longo de todo o século XVII, ainda era válida a prática das “guerras justas” com o objetivo de salvação cristã – com a consequente escravização dos derrotados. Também valia a máxima cunhada por Pero de Magalhães de Gândavo, autor de História da Província de Santa Cruz (1576): tratava-se, para os portugueses, de povos “sem fé, nem lei, nem rei”. A substituição da origem dos braços escravizados se deu, em parte, pelo reconhecimento das habilidades dos africanos na iniciante indústria açucareira, além da maior suscetibilidade dos índios às doenças europeias.
A presença africana na América portuguesa, entretanto, se estabeleceu de forma maciça na medida em que esta se tornou imprescindível para a administração colonial e por conta das atividades que geravam lucro para a Real Fazenda – escravos africanos eram mercadorias tributadas nas alfândegas de Sua Majestade. O resgate justificado pela cristianização e pela expansão da civilização continuou ocorrendo ao longo dos séculos, menos como uma crença e mais como um recurso para estabelecimento da colonização e da permanência das lavouras. Ao menos é o que indica a preocupação do governador da Bahia no final do XVIII.
Joice Santos é pesquisadora da RHBN e autora da dissertação “As embaixadas dos reinos da costa africana como mediadores culturais: missões diplomáticas em Salvador, Rio de Janeiro e Lisboa (1750-1823)”, (Puc-Rio, 2012).
Saiba mais
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CANDIDO, Mariana. “O limite tênue entre a liberdade e escravidão em Benguela durante a era do comércio transatlântico”.Afro-Asia, Salvador, nº 47, 2013.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 2002.