quarta-feira, 28 de setembro de 2016

7 perguntas para entender a origem da guerra na Síria e o que está acontecendo no país

A guerra da Síria, que começou como um levante pacífico contra o presidente Bashar al-Assad, se converteu em um conflito brutal e sangrento que não apenas afeta a população local, mas arrasta potências regionais e internacionais.

A ONU estima que a guerra tenha deixado cerca de 400 mil mortos e provocado um êxodo de mais de 4,5 milhões de pessoas do país.

Confira a seguir como o conflito começou e em que pé ele está cinco anos depois.

1. Qual era a situação na Síria antes da guerra?

Antes do início do conflito, muitos sírios se queixavam de um alto nível de desemprego, corrupção em larga escala, falta de liberdade política e repressão pelo governo Bashar al-Assad - que havia sucedido seu pai, Hafez, em 2000.

Em março de 2011, adolescentes que haviam pintado mensagens revolucionárias no muro de uma escola na cidade de Deraa, no sul do país, foram presos e torturados pelas forças de segurança.

O fato provocou protestos por mais liberdades no país, inspirados na Primavera Árabe - manifestações populares que naquele momento se estendiam pelos países árabes.

Quando as forças de segurança sírias abriram fogo contra os ativistas - matando vários deles -, as tensões se elevaram e mais gente saiu às ruas. Os manifestantes pediam a saída de Assad.

A resposta do governo foi sufocar as divergências, o que reforçou a determinação dos manifestantes. No fim de julho de 2011, centenas de milhares saíram às ruas em todo o país exigindo a saída de Assad.

2. Como começou a guerra civil?

À medida que os levantes da oposição aumentavam, a resposta violenta do governo se intensificava.

Simpatizantes do grupo antigoverno começaram a pegar em armas - primeiro para se defender e depois para expulsar as forças de segurança de suas regiões.

Assad prometeu "esmagar" o que chamou de "terrorismo apoiado por estrangeiros" e restaurar o controle do Estado.

A violência rapidamente aumentou no país: grupos rebeldes se reuniram em centenas de brigadas para combater as forças oficiais e retomar o controle das cidades e vilarejos.

Em 2012, os enfrentamentos chegaram à capital, Damasco, e à segunda cidade do país, Aleppo.

O conflito já havia, então, se transformado em mais que uma batalha entre aqueles que apoiavam Assad e os que se opunham a ele - adquiriu contornos de guerra sectária entre a maioria sunita do país e xiitas alauítas, o braço do Islamismo a que pertence o presidente.

Isto arrastou as potências regionais e internacionais para o conflito, conferindo-lhe outra dimensão.

Em junho de 2013, as Nações Unidas informaram que o saldo de mortos já chegava a 90 mil pessoas.

3. Quem está lutando contra quem?

A rebelião armada da oposição evoluiu significativamente desde suas origens.

O número de membros da oposição moderada secular foi superado pelo de radicais e jihadistas - partidários da "guerra santa" islâmica. Entre eles estão o autointitulado Estado Islâmico e a Frente Nusra, afiliada à Al-Qaeda.

Os combatentes do EI - cujas táticas brutais chocaram o mundo - criaram uma "guerra dentro da guerra", enfrentando tanto os rebeldes da oposição moderada síria quanto os jihadistas da Frente Nusra.

Também combatem o Exército curdo, um dos grupos que os Estados Unidos estão apoiando no norte da Síria.

Desde 2014, os EUA, junto com o Reino Unido e a França, realizam bombardeios aéreos no país, mas procuram evitar atacar as forças do governo sírio.

Já a Rússia lançou em 2015 uma campanha aérea com o fim de "estabilizar" o governo após uma série de derrotas para a oposição. A intervenção russa possibilitou vitórias significativas das forças aéreas sírias.

Os rebeldes moderados têm requisitado armas antiaéreas ao Ocidente para responder ao poderio do governo sírio. Mas Washington e seus aliados têm procurado controlar o fluxo de armas por medo de que acabem indo parar nas mãos de grupos jihadistas.

4. Qual é o envolvimento das potências internacionais?

Os Estados Unidos culpam Assad pela maior parte das atrocidades cometidas no conflito e exigem que ele deixe o poder como pré-condição para a paz.

Já a Rússia apoia a permanência de Assad no poder, o que é crucial para defender os interesses de Moscou no país.

O Irã, de maioria xiita, é o aliado mais próximo de Bashar al-Assad. A Síria é o principal ponto de trânsito de armamentos que Teerã envia para o movimento Hezbollah no Líbano - a milícia também enviou milhares de combatentes para apoiar as forças sírias.

Estima-se que os iranianos já tenham desembolsado bilhões de dólares para fortalecer as forças sírias, provendo assessores militares, armas, crédito e petróleo.

Contrapondo-se à influência do Irã, a Arábia Saudita, principal rival de Teerã na região, tem enviado importante ajuda militar para os rebeldes, inclusive para grupos radicais.

Outro aliado importante dos rebeldes sírios, a Turquia tem buscado limitar o apoio dos EUA às forças curdas, que acusam de apoiar rebeldes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão).

Os rebeldes da oposição síria têm ainda atraído apoio em várias medidas de outras potências regionais, como Catar e Jordânia.

5. Por que a guerra está durando tanto?

Um fator chave é a intervenção de potências regionais e internacionais.

Seu apoio militar, financeiro e político tanto para o governo quanto para a oposição tem contribuído diretamente para a continuidade e intensificação dos enfrentamentos, e transformado a Síria em campo para uma guerra indireta.

A intervenção externa também é responsabilizada por fomentar o sectarismo no que costumava ser um Estado até então secular (imparcial em relação às questões religiosas).

As divisões entre a maioria sunita e a minoria alauita no poder alimentou atrocidades de ambas as partes, não apenas causando a perda de vidas, mas a destruição de comunidades, afastando a esperança de uma solução pacífica.

A escalada de terror causada por grupos jihadistas como o EI - que aproveitou a fragilidade do país para tomar o controle de vastas partes de território no norte e leste - acrescentou outra dimensão ao conflito.

6. Qual é o impacto da guerra?

O enviado da ONU para a Síria, Steffan de Mistura, estimou que a guerra já matou 400 mil pessoas.

Para a organização Observatório Sírio de Direitos Humanos, sediada em Londres, até setembro a cifra de mortos passava de 300 mil.

Já o Centro Sírio para Pesquisa de Políticas, outro grupo de estudos, calcula que o conflito já tenha causado a morte de 470 mil pessoas.

Segundo a ONU, até fevereiro de 2016 mais de 4,8 milhões de pessoas haviam fugido do país - a maioria mulheres e crianças.

O êxodo de refugiados, um dos maiores da história recente, colocou sob pressão os países vizinhos - Líbano, Jordânia e Turquia.

Cerca de 10% deles buscam asilo na Europa, provocando divisões entre os países do bloco europeu sobre como dividir essas responsabilidades.

E as estatísticas terríveis não param por aí.

A ONU disse que são necessários US$ 3,2 bilhões para prover ajuda humanitária a 13,5 milhões de pessoas - incluindo seis milhões de crianças - no país.

Cerca de 500 mil pessoas vivem sob o cerco de forças de segurança ou rebeldes.

Além disso, 70% da população não tem acesso a água potável, uma em cada três pessoas não consegue suprir as necessidades alimentares básicas, mais de 2 milhões de crianças não vão à escola e uma em cada cinco indivíduos vive na pobreza.

7. O que a comunidade internacional faz para pôr fim ao conflito?

 

Como nenhuma das partes é capaz de impor uma derrota decisiva à outra, a comunidade internacional há muito concluiu que a única forma de pôr fim à guerra é por meio de uma solução política.

O Conselho de Segurança da ONU pediu a implementação do Comunicado de Genebra, adotado em 2012 na cidade suíça, que contempla um governo de transição com amplos poderes executivos "baseado no consentimento mútuo".

Porém, as negociações de paz de 2014, conhecidas como Genebra 2, foram interrompidas. A ONU responsabilizou o governo sírio por se recusar a discutir as demandas da oposição.

Um ano depois, a ascensão do grupo autodenominado Estado Islâmico deu novo ímpeto à busca por uma solução pacífica.

Em janeiro deste ano, Estados Unidos e Rússia conseguiram convencer as partes em conflito a participar de "conversas de aproximação" em Genebra para implementar o plano da ONU.

Mas as negociações foram suspensas ainda na fase preparatória, depois que as forças de segurança sírias lançaram uma ofensiva contra a cidade de Aleppo, no norte do país.

Este ano, as duas superpotências mundiais conseguiram negociar uma interrupção das hostilidades, com a qual os enfrentamentos foram suspensos.

A última trégua parcial, em meados de setembro, fracassou dias depois de entrar em vigor, após um ataque letal contra um comboio de ajuda humanitária, no qual morreram 20 civis.

Os EUA culparam a Rússia pelo bombardeio - Moscou negou as acusações.

Uma nova tentativa de salvar o cessar-fogo fracassou nesta semana em Nova York.

Na quinta-feira, o governo sírio anunciou uma nova ofensiva militar em Aleppo para recuperar áreas controladas por rebeldes.

Após o anúncio, a cidade foi alvo de bombardeios ainda mais intensos que os vistos no país nos últimos meses.

Fonte: BBC Brasil

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Anos Jango - Documentário

O Governo Jango

O governo de João Goulart representa um dos períodos mais efervescentes da história política e social. Foi o último governante da chamada República Populista e antecedeu a Ditadura Militar brasileira.

O Documentário Jango nos leva para uma viagem à esse período. Dirigido por Sílvio Tendler, ele é rico em imagens da época, com entrevistas de vários dos envolvidos e nos mostra o caminhar e a disputa entre as esquerdas e da direita da década de 60, assim como os efeitos da Guerra Fria em nosso país.


domingo, 5 de junho de 2016

O perigo da história única - Chimamanda Adichie

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história  “
Chimamanda Adichie




sábado, 21 de maio de 2016

De braços dados e cruzados

Antes mesmo dos direitos trabalhistas, o movimento libertário esteve no centro da organização das primeiras grandes greves do país

Carlos Augusto Addor

No Brasil da Primeira República (1889-1930), os trabalhadores urbanos viviam num verdadeiro “inferno social”. Homens, mulheres e crianças passavam 12, 14 ou até mesmo 16 horas diárias, ao longo de seis dias por semana, no interior de fábricas insalubres e perigosas. Álvaro Corrêa, antigo operário têxtil e gráfico em fábricas do Rio de Janeiro e de Juiz de Fora nas primeiras décadas do século XX, contou ter visto “moças serem esbofeteadas e saírem chorando sem um protesto para não perder o emprego”. As mulheres eram também vítimas frequentes de tentativas de abuso sexual. As crianças eram espancadas por quaisquer deslizes no trabalho. No interior da Fábrica de Tecidos Penteado, na capital paulista, um caso ocorrido em 1922 é exemplar e assustador. Um menino chamado Daniel, exausto após longa jornada de trabalho, adormeceu e perdeu o horário de saída. A segurança do prédio era feita, à noite, por um vigia acompanhado de cães ferozes. Daniel foi dilacerado pelas feras, morrendo no hospital depois de longa e dolorosa agonia.

Embora em 1919 tivesse sido promulgada no Brasil uma primeira lei sobre acidentes de trabalho, ao longo da Primeira República essa lei, na prática, permaneceu letra morta. O Estado não se propunha a intervir de forma normativa sobre o mundo do trabalho, garantindo aos empresários a possibilidade de superexplorar os trabalhadores. Junte a isso o fato de que nas três primeiras décadas da República chegaram ao Brasil cerca de 4 milhões de europeus, em sua maioria italianos, espanhóis e portugueses. Isso criou uma situação boa para os patrões, péssima para os operários. Sobrava mão de obra, aumentava o desemprego.

Esses imigrantes, ao lado dos brasileiros, teriam papel decisivo no processo de formação da classe operária. Num primeiro momento, afloraram rivalidades, disputas e conflitos interétnicos. Entretanto, ao longo do tempo, o partilhar do duro e sofrido cotidiano fabril levou os trabalhadores a minimizarem suas diferenças e a priorizarem interesses comuns. Aos poucos, forma-se uma identidade (e uma consciência) de classe.

As ideias anarquistas vieram com os imigrantes, o que levou setores do patronato e membros do aparelho de Estado a formularem a imagem da “planta exótica”: uma ideologia estrangeira que não encontraria terreno fértil para se desenvolver no Brasil. Essa imagem seria usada de forma recorrente para tentar desqualificar o anarquismo, à medida que ele conquistava adesão crescente. Também era utilizada para justificar processos de deportação de trabalhadores estrangeiros que “perturbassem a ordem pública ou a paz social”, ou seja, que participassem de greves, comícios e outras manifestações públicas. A Lei Adolfo Gordo, promulgada em 1904 e regulamentada em 1907, fundamentou juridicamente o processo de expulsão de centenas de militantes estrangeiros e brasileiros, enviados para rincões remotos como os seringais do Acre e, nos anos 1920, para a colônia penal de Clevelândia, no Amapá.

Apesar da perseguição, o anarquismo ampliava sua presença nos sindicatos operários e no debate político e intelectual, denunciando, através de uma imprensa bastante vigorosa, as condições de vida impostas aos trabalhadores. Em 1903, no Rio de Janeiro, e em 1907, em São Paulo, duas greves mobilizaram trabalhadores de vários setores, cujas principais reivindicações eram “os três oitos” – jornada de oito horas de trabalho, propiciando oito horas de repouso e oito horas livres. Ao fim das greves, algumas categorias profissionais com maior poder de barganha conseguiram a redução da jornada, se não para oito, ao menos para nove horas.

Em abril de 1906, foi realizado no Rio de Janeiro o Primeiro Congresso Operário Brasileiro, com clara influência anarquista. Uma de suas resoluções, efetivada em 1908, era a criação da Confederação Operária Brasileira (COB) que, por sua vez, lançou o jornal A Voz do Trabalhador, um dos mais importantes periódicos da imprensa operária na Primeira República, ao lado de A PlebeGuerra SocialA Terra LivreNa Barricada, Spartacus, A Voz do Povo A Lanterna – este último ainda enfatizava o caráter anticlerical do anarquismo.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial levou o movimento anarquista a reafirmar seu caráter internacionalista, pacifista e antimilitarista. Em São Paulo, o movimento pôs em circulação cartões-postais com a expressão “Papai, não vás à guerra”, ecoando o lema “Não mandes teus filhos à guerra”, que anarquistas divulgavam na Europa. Intelectuais libertários, como o paulista Edgard Leuenroth (1881-1968) e o baiano Fábio Luz (1864-1938), escrevem e publicam artigos e manifestos propondo transformar a guerra imperialista em guerra revolucionária. O jornal libertário paulistano La Propaganda conclama os pacifistas a “declarar guerra à guerra”. Em outubro de 1915, a COB organiza no Rio de Janeiro o Congresso Internacional da Paz, do qual participam delegados de sindicatos e federações operárias do Brasil, da Argentina, de Portugal e da Espanha. Dias depois, militantes promovem na sede do COB o Congresso Anarquista Sul-Americano, com a presença de delegados da Argentina e do Uruguai.

Os efeitos da guerra mundial sobre a economia brasileira são terríveis: redução do comércio externo, retração da atividade fabril, desemprego, carências generalizadas. Mas uma notícia vinda do Oriente anima trabalhadores e militantes anarquistas, socialistas e comunistas: em 1917, pela primeira vez uma revolução que se diz socialista, feita em nome dos operários e dos camponeses russos, chega ao poder. Cria um clima de euforia revolucionária e alimenta expectativas de que o capitalismo estaria agonizante. Durante os anos seguintes, os anarquistas ainda acreditam numa suposta dimensão libertária da Revolução Russa que, por meio da “revolução social”, completaria o processo iniciado com a Revolução Francesa (1789), a “revolução política”. Os massacres dos marinheiros de Kronstadt e dos camponeses ucranianos liderados pelo anarquista Nestor Makhno, ambos em 1921, enterram essas ilusões.

Em 1917, grandes greves envolveram dezenas de milhares de trabalhadores em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na capital paulista, onde militantes anarquistas vinham há anos desenvolvendo atividades de propaganda libertária, o assassinato do jovem sapateiro espanhol José Martinez pela polícia, num conflito de rua, transformou uma greve já bem ampla em greve geral, que paralisou a cidade por alguns dias. Durante a greve formou-se o Comitê de Defesa Proletária, composto por cinco militantes anarquistas e um socialista, para negociar um acordo com os patrões. Algumas demandas, como reajustes salariais e redução de jornada de trabalho, foram parcialmente atendidas e o acordo foi ratificado por três grandes comícios públicos. Foi a primeira greve geral parcialmente vitoriosa na história brasileira, contribuindo para a autoestima da classe operária. No entanto, muitos patrões não cumpriram o acordo e as autoridades públicas não honraram sua palavra: vários líderes foram perseguidos e presos, e alguns estrangeiros deportados.

No ano seguinte, outras duas greves tiveram grande efeito simbólico. Em agosto, pararam os trabalhadores da Companhia Cantareira e Viação Fluminense, que operava as barcas entre Rio de Janeiro e Niterói e os bondes desta última. O movimento se radicalizou. Num conflito entre operários e policiais na rua da Conceição, em Niterói, alguns soldados do Exército tomaram partido dos grevistas. Um cabo e um soldado morreram no confronto, e ganharam homenagens de delegações operárias. O episódio foi associado à experiência russa de confraternização entre conselhos de operários (soviets) e soldados, estimulando a imaginação dos libertários brasileiros: sonhavam com a formação do “Soviet do Rio”. Em novembro, a greve de dezenas de milhares de tecelões, metalúrgicos e operários da construção civil, no Rio, articula-se com uma tentativa de insurreição planejada por militantes anarquistas – rapidamente delatada e reprimida. Seus principais líderes, José Oiticica, Astrojildo Pereira e Agripino Nazaré, são presos. Oiticica é “deportado” para Alagoas e Agripino para a Bahia. A greve operária, pacífica e até certo ponto independente da atividade dos anarquistas, também foi duramente reprimida pela polícia. Respaldados pelo governo, os patrões endureceram sua posição: não mais reconheceriam a União dos Operários em Fábricas de Tecidos (Uoft), uma das organizadoras do movimento, como entidade representativa dos têxteis, por estar “dominada por elementos anarquistas estranhos à classe”.

Mesmo derrotadas em sua maioria, essas greves colocaram a causa operária, pela primeira vez, em destaque na grande imprensa. Não seria mais possível continuar com o discurso de que não havia razão para greves no Brasil. Contudo, reconhecer a legitimidade de reivindicações operárias não significa aceitar o anarquismo. Em 19 de novembro de 1918, o jornal A Razão, que se dizia um órgão defensor da “causa das classes que trabalham”, publica o artigo “O joio e o trigo”. O “trigo” seriam os trabalhadores brasileiros, honrados, dóceis, laboriosos. E o “joio”, os anarquistas estrangeiros, “apátridas, homens sem Deus, sem honra, sem família, ingratos com a terra que os acolheu, mazorqueiros (desordeiros), arruaceiros que vivem a pregar a subversão social e política, a revolução que lhes entregue o poder”. Uma das poucas vozes a sair em defesa do anarquismo é a do escritor Lima Barreto, em especial nas crônicas “Da minha cela” e “Sobre o Maximalismo”.

No início da década de 1920, as divergências entre anarquistas e comunistas se aprofundam. Astrojildo Pereira, ex-anarquista, adere ao bolchevismo e participa da fundação do Partido Comunista do Brasil (1922). Torna-se um dos mais ácidos críticos do anarquismo, segundo ele, uma proposta “utópica”, sem condições políticas para elaborar um projeto consistente de revolução socialista. A verdade viria unicamente de Moscou. Essa visão comunista sobre o anarquismo iria se consolidar nas décadas seguintes. José Oiticica e Fábio Luz, entre outros anarquistas, contestam duramente Astrojildo. Para eles, qualquer ditadura, mesmo aquelas que se dizem “de esquerda” ou “do proletariado”, deve ser combatida e ter suas arbitrariedades denunciadas. “Como anarquistas revolucionários (...) não podemos concordar que à ditadura do capitalismo, origem de toda a tirania, se oponha a ditadura de outra classe, embora essa classe seja o proletariado”, afirma o jornal A Plebe em 1922.

O estado de sítio promulgado em 1922 para auxiliar o governo no combate aos primeiros levantes militares que marcarão toda a década incide fortemente sobre o movimento operário: sindicatos são fechados, lideranças presas e deportadas, jornais empastelados. Além de uma repressão mais dura, o governo republicano começa a cooptar ou assimilar setores da classe trabalhadora através da elaboração de leis, como a das férias, um código para o trabalho infantil e um projeto de aposentadoria e pensões. É um período de transição entre o liberalismo ortodoxo vigente nas primeiras décadas do século e a construção, ao longo das décadas de 1930 e 1940, do Estado autoritário e centralista, do qual o sindicalismo corporativista será peça estratégica. Fechavam-se os espaços ao anarquismo na vida operária do Brasil.

 

Carlos Augusto Addor é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Um Homem vale um Homem: Memória, história e anarquismo na obra de Edgar Rodrigues(Achiamé, 2012).

 

Saiba mais

 

REIS, Daniel Aarão & DEMICINIS, Rafael (orgs.). História do Anarquismo no Brasil Vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad X / Eduff, 2006.

RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Editora Unesp, 2000.

Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/de-bracos-dados-e-cruzados

Os Bandeirantes : No mato sem cachorro

Atravessar sertões inóspitos, em guerra contra os índios, era um verdadeiro martírio para bandeirantes descalços, mal equipados e famintos

Glória Kok

Altivos, imponentes, longas botas, chapéu e armas vistosas. Esqueça a imagem típica dos bandeirantes difundida pelos livros didáticos. A realidade era bem outra: as tropas caminhavam descalças por extensos territórios, sujeitas a todo tipo de desconforto, à mercê dos ataques de índios e de animais, fustigadas pela fome.

Antes de virar herói – invenção da elite no início da República, para enaltecer a capacidade de liderança dos paulistas –, o bandeirante foi o protagonista de uma colonização árdua e violenta, que durante mais de dois séculos desenvolveu uma cultura própria, bem distante dos padrões europeus.

Desde o século XVI até as primeiras décadas do XVIII, expedições partiram em busca de metais preciosos e de índios para serem vendidos como escravos nas plantações que abasteciam a Colônia. Essas incursões ganharam o nome de “bandeiras” – possivelmente por causa do costume tupiniquim de levantar uma bandeira em sinal de guerra.

O sucesso das empreitadas dependia do “cabo da tropa”, ou “capitão do arraial”, sertanista experiente que tinha poder absoluto sobre seus subordinados. O cabo reunia na tropa seus filhos (mesmo ainda adolescentes), parentes e agregados para auxiliá-lo no comando, fazendo das bandeiras um negócio eminentemente familiar. 

O capelão era outra figura obrigatória, encarregado de dar assistência espiritual à tropa. Grupos maiores contavam também com o alferes-mor, responsável pela partilha dos índios capturados, e o escrivão. Mulheres índias ou mestiças (temericó) acompanhavam os bandeirantes pelo sertão na condição de escravas.

No entanto, a maioria dos integrantes eram escravos indígenas, geralmente guaranis ou carijós, que formavam tropas auxiliares encarregadas de combater e capturar índios no sertão. Vale dizer que, em meados do século XVII, 83% da população da vila de São Paulo era formada por índios. Os mamelucos, descendentes de pai branco e mãe índia, muitas vezes atuavam como guias e intérpretes, pois falavam a “língua geral” (tupi) e transitavam entre o mundo indígena e o português. Serviam também de “isca” para as capturas: vestidos com batinas pretas e cabelos cortados em tonsuras, passavam-se por jesuítas e assim escravizavam os índios sem maiores resistências.  

Conhecimentos herdados pelos mamelucos eram cruciais para a sobrevivência no sertão: orientação e observação dos movimentos do Sol, dos astros e dos rastros, técnicas de caça e pesca, construção de embarcações e mareagem pelos rios, sistemas de comunicação por meio do fogo e da sinalização com gravetos, além da classificação da flora e da fauna, fundamental para a seleção de alimentos, bebidas e medicamentos. 

Os bandeirantes utilizavam vários tipos de armas: espadas, adagas, lanças, facas, terçados e alfanjes, além das de fogo (espingardas, bacamartes, mosquetes, arcabuzes, pistolas e escopetas). Na hora do combate, contudo, preferiam recorrer aos arcos e flechas indígenas, pois as armas de fogo geralmente enferrujavam e eram de difícil manejo no calor das batalhas. Para se defender das flechas inimigas, usavam gibão de couro de anta recheado de algodão.

Um meio eficiente de seduzir os índios era oferecer-lhes suprimentos como anzóis, contas, facas, espelhos, tesouras e aguardentes de cana. O escambo, prática tradicional das sociedades indígenas, foi empregado na primeira etapa das bandeiras com o intuito de transformar, por meio “amigável”, os nativos em escravos.  

Já no final do século XVI, a crescente demanda de mão-de-obra das grandes fazendas agrícolas do planalto motiva expedições para sertões mais distantes. A primeira bandeira de grande porte saiu de São Paulo em 1628, sob o comando do famoso Antônio Raposo Tavares (1598-1658), com cerca de 900 paulistas e dois mil guerreiros tupis. Raposo se estabeleceu num arraial na entrada do território de Guairá, e dali comandou violentos ataques às aldeias e missões espanholas daquela região, e também em Tape (atual Rio Grande do Sul) e Itatim (atual Mato Grosso do Sul), nas proximidades da bacia do Rio da Prata. Conta o jesuíta Ruiz de Montoya que os paulistas destruíram onze missões com populações de três mil a cinco mil índios – o que resulta num total de 33 mil a 55 mil índios capturados. Para Luiz Felipe de Alencastro, na zona de Guairá e Tape as bandeiras capturaram aproximadamente 100 mil indígenas, em uma das “operações escravistas mais predatórias da história moderna”. 

Em 1641, a Batalha no Rio Mbororé, afluente do Uruguai, marcou o fim das expedições paulistas às missões espanholas. A bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros, com 350 bandeirantes e 600 índios tupis em 130 canoas, foi surpreendida e derrotada, numa batalha de seis dias, por 300 índios guaranis em 70 canoas, armados com arcabuzes e arcos da Missão de São Francisco Xavier (atual Argentina). Depois dessa derrota, os bandeirantes mudaram de rumo e passaram a capturar índios na região Centro-Oeste.

Suas condições de vida eram precárias. Os mantimentos eram apenas cabaças de sal e pães de “farinha de guerra”, feitos de mandioca ou de milho. Completavam seu sustento por meio da caça e da pesca, e incorporavam ao cardápio alimentos improvisados: frutas silvestres, pinhão, raízes, tubérculos, palmitos, mel-de-pau, ovos de jabuti e os “paus de digestão”, ou seja, grelos de samambaia e suas variações. Outra fonte de alimento eram as roças indígenas de milho, feijão e mandioca, geralmente saqueadas e destruídas como prova da supremacia dos bandeirantes. 

Apesar disso, a fome era quase sempre uma companheira de viagem. Da tropa do capitão Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera, perdida numa grande chapada, morreram vítimas da fome mais de 40 pessoas. Luís Barbalho Bezerra, comandante da bandeira formada para combater os holandeses na Bahia, relatou em seu regresso que a fome foi tanta que os paulistas comeram os poucos cavalos que havia, além de couros, raízes de bananeiras e muitas imundícies. Depois de oito meses de cativeiro entre os índios paiaguás do Rio Paraguai, João Martins Claro, paulista, e Manuel Furtado, do Rio de Janeiro, fugiram nus, sem nada de ferro, e sobreviveram durante alguns meses do ano de 1731 comendo somente frutas, cocos, raízes e gafanhotos. 

Aliás, o governador da capitania de São Paulo, D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, impressionou-se com o rotineiro costume entre a gente paulista de comer “bichos imundos e coisas asquerosas”, como o içá torrado (formiga saúva fêmea). Também o bicho-de-taquara, apreciado pelos índios como um manjar, foi largamente consumido pela população colonial. Uns comparavam-no aos miolos de boi, outros, à manteiga fresca. Para matar a sede, apelava-se para as raízes vegetais, como a de umbuzeiro, mandacarus, cipós, taquaruçus e gravatás. 

Animais selvagens e peçonhentos causavam sérios estragos nas tropas. Jararacas, cascavéis, corais e sucuris infundiam verdadeiro horror aos sertanistas. A onça pintada (jaguar) e a onça parda (suçuarana) atacavam viajantes inexperientes, que se descuidavam pelos caminhos do sertão. O maior martírio, entretanto, era resistir às investidas dos mosquitos, responsáveis por incontáveis noites de insônia. Bichos-de-pé, formigas e carrapatos infestavam o cotidiano dos bandeirantes. A rotina tornava-se ainda mais miserável pelo constante temor de um súbito ataque indígena. A ponto de os integrantes da bandeira do alferes José Peixoto da Silva Braga se virem obrigados a dormir em ilhas, enterrados na areia. 

As bandeiras foram a principal atividade da economia de São Paulo até a década de 1690, quando foi descoberto o ouro na atual região de Minas Gerais. Usurparam os territórios indígenas, capturaram milhares de índios, arrasaram aldeias, destruíram etnias e favoreceram a difusão de epidemias. Muitos bandeirantes não voltaram ao planalto – como os primeiros povoadores de Minas Gerais, os que seguiram para o vale do São Francisco e os que foram combater os tapuias (índios não-tupis) e quilombolas no Nordeste.  

Na história da São Paulo colonial, índios de várias etnias, na condição de escravos, contribuíram para a formação de uma sociedade baseada em saberes, técnicas e práticas nativas. A língua geral, por exemplo, foi falada pela maioria da população de São Paulo até 1759, quando acabou proibida pelas autoridades portuguesas. Mas a consolidação de uma elite paulista, enriquecida pela agricultura e pelo comércio a partir do século XVIII, marginalizou as populações indígenas e rompeu com os padrões culturais dos ameríndios. Nesse processo de conquista, os paulistas tornaram-se grandes proprietários de terras, e estas ficaram sujeitas, em definitivo, à soberania da Coroa portuguesa. A verdadeira história dos bandeirantes ia ficando para trás, assim como seu rastro de destruição.

Glória Kok é pesquisadora do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI), na UNICAMP, e autora do livro O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século XVIII (Hucitec, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia:

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras, 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 
KOK, Glória. O sertão itinerante: expedições da capitania de São Paulo no século XVIII. São Paulo: Fapesp, Hucitec, 2004.
MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. Introdução de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra. Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.


Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/no-mato-sem-cachorro

Samurais – Os guerreiros da honra

Nos tempos do Japão feudal, os samurais defendiam seus territórios com a própria vida se preciso fosse.

Muito retratada em livros, pinturas e superproduções cinematográficas, a imagem do samurai chegou ao século 21 envolta em uma aura mítica e por vezes até romântica. Uma imagem, no entanto, bem distante da realidade vivida por esses guerreiros na época do Japão feudal. Filmes, como O Último Samurai (dirigido por Edward Zwick e estrelado por Tom Cruise e Ken Watanabe), e a dificuldade do mundo ocidental em compreender a complexa cultura e tradições japonesas contribuem para formar uma visão estereotipada desses bravos combatentes: enquanto uns acham que eles são personagens legendários, outros sustentam que são fanáticos sedentos de sangue. Heróis? Bandidos? Admirados? Temidos? Afinal, quem são e como viveram esses lendários combatentes do antigo Japão?

Ao contrário do que a ficção retrata, não havia nada de romântico na vida dos samurais. Eles surgiram como um produto das circunstâncias históricas do Japão, de uma longa evolução social e política que culminou nos séculos 17 e 18. Com extensão territorial limitada e dividido em feudos, o pequeno arquipélago era um campo de constantes batalhas pela posse de terras nos séculos 10 e 11. Essas disputas medievais e a necessidade de defender as propriedades do daymiô (senhor feudal) e, no século 13, as próprias fronteiras do país ameaçado pelos mongóis, favoreceram o aparecimento dos samurais. Essa classe social guerreira mudaria para sempre a trajetória do Japão, ajudando a unificar o país e a fazer dele uma nação.

A origem dos samurais, na realidade, remonta aos séculos 4 a.C. e 3 a.C., quando começaram a surgir elites armadas nos grupos tribais que formaram pequenas entidades sociais. Esses grupos foram se convertendo, um a um, em grandes clãs submetidos às autoridades provinciais do império. A relação conflituosa entre esses clãs abriu portas para a formação de milícias que deveriam proteger os interesses dos vários senhores feudais, e os do próprio império. Os membros dessas elites guerreiras eram conhecidos como bushi, termo que significa “aquele que serve” e que com o tempo acabou se tornando sinônimo de guerreiro.

A ascensão dos samurais como uma classe social começou no período Heian (nome da então capital do país, a atual Kyoto), com a derrota do governo aristocrático Taira, na Guerra Genpei, no fim do século 12, quando o clã de Minamoto no Yoritomo vence o conflito e recebe o título de xogum: um título de distinção militar concedido pelo imperador, equivalente a comandante do exército.

A partir daí, e ao longo de mais de 400 anos, o imperador era o legítimo governante, mas era o xogum quem governava de fato o Japão. Quem era agraciado pelo imperador com esse título tinha autoridade civil, militar, diplomática e judiciária. Vale lembrar que durante todo esse período o Japão teve três xogunatos. O primeiro foi o estabelecido em 1192 por Minamoto no Yoritomo, conhecido como xogunato Kamakura. Já o segundo é conhecido como Ashikaga e foi fundado em 1338 por Ashikaga Takauji, enquanto o terceiro foi o de Tokugawa Ieyasu.

Em 1600, Tokugawa venceu a batalha Sekigahara, na província de Mino, tida (não sem razão) como uma das maiores de todas: em apenas seis horas de confronto, morreram em torno de 35 mil homens só do lado derrotado. Mas o massacre durou três dias e foi uma verdadeira carnificina, especialmente se for considerado que naquela época as lutas aconteciam olho no olho, homem contra homem, espada contra espada. Pouco a pouco, Tokugawa ia vencendo os clãs rivais. Como recompensa, o imperador lhe concedeu o título de xogum.

As principais armas dos samurais eram a katana, uma espada curva, que somente era usada com outra espada: a wakizashi, uma arma mais curta com a lâmina mais larga. As duas espadas juntas são referidas como daí-shô, cujo uso era um privilégio exclusivo deles

Tokugawa, então, passou a ser o senhor absoluto do Japão, dando início ao período Edo (1603-1868), assim chamado numa referência ao nome da cidade de onde ele tomava as decisões políticas (a atual Tóquio). Ao assumir, tornou hereditário o xogunato, criando assim a dinastia dos Tokugawa. Por sua vez, o imperador viveu na antiga capital, Heian. Esse foi um longo período que contribuiu para configurar a imagem estereotipada do país: sedutoras gueixas, casas de chá, imponentes lutadores de sumô e arrogantes samurais.

Como consequência de o xogunato tornar-se hereditário, desde o berço a criança nascida em uma família de samurai era educada em um regime de autodisciplina e de exercícios contínuos. Em geral, o treinamento das artes marciais começava por volta dos 5 anos. Os filhos de famílias ricas (a riqueza era medida em unidades de arroz, o koku) frequentavam academias, onde aprendiam literatura, artes e habilidades militares. O tipo e a frequência dos treinamentos de um samurai dependiam da riqueza de sua família. Nas de menor poder aquisitivo, os filhos eram enviados às escolas dos vilarejos para receber instrução básica e o seu treinamento normalmente era feito pelos pais, tios ou irmãos mais velhos.

 

Cada prega do hakama (calça) simboliza uma das sete virtudes que um samurai deveria ter: a honestidade, a lealdade, a coragem, a perseverança, a benevolência, a compaixão e a sinceridade.

A sociedade feudal japonesa

Na sociedade japonesa do século 16, os samurais formavam uma casta a serviço da alta nobreza, os daymiô, que exerciam o poder por meio de uma rede de ligações pessoais e familiares. Ao lado de sua família mais direta, os daymiô ocupavam o topo da hierarquia feudal. Abaixo deles, vinham os fudai (aquelas famílias que sempre estiveram a serviço daquela família principal) e, finalmente, os vassalos, que muitas vezes haviam sido antigos senhores que, derrotados, haviam jurado fidelidade, a fim de manter sua propriedade.

Por conta dessa estrutura, a rede de fidelidade dos “súditos” se ampliava e o poder do daymiô se fortalecia. Paralelamente a essa organização política, havia outra que inicialmente era estritamente militar e representava os samurais. Exímios praticantes de artes marciais e dotados de total controle sobre seu corpo e sua mente, os samurais, com o tempo, foram se tornando tão poderosos que ultrapassaram os limites dos feudos e acumularam influência política e militar.

Existiam muitas categorias de samurais. Abaixo deles, havia os sotsu (as tropas de infantaria), que, por sua vez, eram divididos em outras categorias. Exceto os de mais alto escalão, todos eles zelavam pelas propriedades do daymiô. Também de todos eles era esperado que respondessem de imediato ao chamado de guerra do seu senhor e que estivessem sempre prontos a combater, apresentando o seu equipamento em conformidade com a sua posição e a sua riqueza.

Na base da pirâmide estavam os ashigaru, que

eram a maioria dos combatentes. Eles eram os

arqueiros da infantaria, mosqueteiros e lanceiros e,

algumas vezes, mensageiros, porta-bandeiras, criados.

Por muito tempo, essa categoria representou a porta de

acesso à classe dos samurais.

Essa hierarquia social prevaleceu durante todo o

período Edo, no qual aparentemente nada mudou,

mas a prolongada paz desses anos acabou modificando

radicalmente a natureza dos samurais. Como não existiam

mais guerras, eles não tinham razão para lutar. Agora,

suas habilidades marciais só podiam ser testemunhadas

em duelos particulares.

Diante das novas condições, os samurais começaram a

ampliar sua formação intelectual e técnica e a integrar-se

na sociedade civil, na qual executavam tarefas educativas

ou administrativas. Administravam, especialmente, as

propriedades do daymiô a quem serviam, durante o longo

tempo em que ele era obrigado a permanecer na corte

do xogum, praticamente recluso.

Anos mais tarde, a burguesia em ascensão (chonin)

foi capturar o prestígio social que os samurais continuavam

a ter no país, num processo que poderia ser classificado

como uma fusão e que foi de fundamental importância para

a expansão e sobrevivência dos valores dos samurais na

sociedade japonesa até os dias atuais.

Independentemente de ser rica ou pobre, a criança ganhava uma katana (espada longa semelhante a um sabre) de madeira em uma cerimônia formal, rito que se repetiria na adolescência, desta vez com uma espada de verdade. A katana era uma das principais armas dos samurais – acreditavam que ela carregava a alma do guerreiro, devendo portanto ser muito bem cuidada e não ser exposta sem uma razão. Seu uso pelos civis havia sido proibido por um decreto de 1590. Portá-la era um privilégio dos guerreiros. Aprendizados à parte, o garoto, antes e acima de tudo, era educado para servir. Servir com lealdade ao seu senhor, a quem daria a vida se preciso fosse.

Desse modo, os samurais cresciam imbuídos do princípio da restituição do débito. A lealdade e a honra também eram levadas muito a sério por eles: lutavam até a morte para proteger a propriedade de seu senhor ou praticavam o harakiri (cortar o ventre com sua própria espada), caso o desonrassem. Da luta às relações sociais, todas as normas de vida e de conduta às quais o samurai tinha de se submeter estavam previstas no bushidô (o termo vem de bushi, guerreiro, e de do, caminho, e significa caminho do guerreiro), um inflexível código que colocava a honra acima de tudo.
Embora já estivesse definido no século 8, o bushidô somente foi instituído no século 17 e alcançou sua própria perfeição com a difusão dos princípios do confucionismo. O código tinha como meta aperfeiçoar o caráter por meio de rígidas regras de disciplina e comportamento e incluía a divulgação de vários princípios: gi (a atitude do justo), yu (habilidade), rei (o comportamento justo), makoto (sinceridade), meiyo (honra e glória) e chigi (lealdade).

Escrito por Taira Shigésuké, sábio confuciano e militar japonês da segunda metade do século 17, o texto de abertura do bushidô dá uma boa ideia do que era a vida de um samurai: “A primeira preocupação de quem pretende tornar-se guerreiro é ter a morte sempre presente no seu espírito, dia e noite, desde a manhã do primeiro dia do ano até à noite do Ano- Novo.” Traduzindo: viver é estar preparado para a morte, é saber morrer – um samurai não podia praticar o harakiri nem morrer de qualquer jeito.

Ao contrário, se tivesse de morrer, ele não deveria resistir. Logo cedo, o jovem aprendia a se desapegar dos bens materiais e a desprezar a dor e a morte. Por isso, tinha de morrer com honra, sem demonstrar qualquer sinal de sofrimento até cair inerte, suportando a dor sem fraquejar. Contam que a morte dele deveria ser igual a de uma da carpa que, no momento que está para ser trucidada sobre a mesa, simplesmente se rende à morte sem a menor resistência.

 

 

O harakiri, suicídio ritual

A honra era tão importante para os samurais que era bastante

comum eles se suicidarem em face de um fracasso, ou se

tivessem violado o bushidô. Esse ato vinculado à honra

acabou se tornando um ritual, tomando a forma do

seppuku (também conhecido por sua expressão

mais popular, harakiri), que nada mais era do

que o modo de o samurai restaurar a honra do

seu daymiô e de sua família e cumprir a sua

obrigação de lealdade, ainda que tivesse

falhado como guerreiro.

Antes de cometer o seppuku, o guerreiro se

vestia com roupa apropriada. Depois, se ajoelhava

enquanto lhe entregavam uma faca embrulhada em

papel (posteriormente, foi substituída por um leque).

Com ela, o samurai cortava seu ventre da esquerda

para a direita, finalizando com outro corte para cima. Este

ritual, porém, não era um ato solitário: poucos samurais

acabavam sentindo na pele a dolorosa e lenta morte por

desentranhamento, pois outro samurai ficava em pé

atrás do suicida e o decapitava logo após o harakiri,

evitando que qualquer dor fosse sentida.

Não era só. Havia ainda a vingança. Mais que uma obrigação, ela era um dever do guerreiro. Se a honra de seu senhor fosse manchada ou se ele fosse morto, o samurai era obrigado a encontrar e matar os responsáveis. Um dos mais famosos contos sobre a vingança dos samurais é “Os 47 Ronin” (samurais sem um senhor para servir). Sob o governo Tsunayoshi, o quinto xogum Tokugawa (1646-1709), o senhor de Asano, foi condenado a praticar o harakiri instigado por um alto funcionário do xogum, chamado Kira. O código ético dos samurais previa que ele teria de ser vingado pelos seus homens. Comandados pelo oficial Oishi, os 47 ronin juraram vingança.

Por algum tempo, parecia que nada ia acontecer. Oishi levava uma vida depravada e os ronin pareciam ter esquecido o juramento, o que lhes custou o desprezo do povo. Mas foi exatamente esse falso esquecimento que fez com que Kira baixasse a guarda. Dois anos depois, em uma noite de inverno, o grupo invadiu o seu castelo e o assassinou. Presos, os ronin foram condenados a praticar o harakiri. O motivo da pena não foi porque eles cumpriram o seu dever de vingança, pois isso era o esperado, mas porque atacaram o castelo secretamente, o que era tido como uma desonra.

A longa trajetória dos samurais se estendeu até 1876, quando o uso das espadas foi proibido e a classe samurai, extinta. Apesar disso, o espírito desses incansáveis guerreiros, cujo estilo de vida aliava conduta irrepreensível, árduo treinamento e aperfeiçoamento constante, sobreviveu. Até hoje, os valores e as virtudes dos samurais fazem parte da identidade nacional do Japão. Ou melhor, ultrapassaram as fronteiras do país e as barreiras do tempo, e ainda agora o carisma desses míticos heróis continua encantando o mundo.

 

 

informações

www.niten.org.br

Fonte:http://www.revistaplaneta.com.br/samurais-os-guerreiros-da-honra/

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Quando todos os europeus eram negros

Maior estudo genético de europeus da pré-história revela um passado complexo e violento no qual populações inteiras foram forçadas a emigrar ou desaparecer para sempre.

O estudo genético de restos mortais de europeus que morreram há milhares de anos, abriu uma janela única para a pré-história do continente. O trabalho abrange grande parte do Paleolítico Superior, de 45.000 até 7.000 anos atrás, e revela vários episódios até agora desconhecidos.

“O que vemos é uma história das populações tão complexa quanto a dos últimos 7.000 anos, com muitos momentos em que populações substituem outras, imigração em uma escala dramática e em um momento no qual o clima estava mudando radicalmente”, resumiu David Reich, geneticista da Universidade de Harvard e principal autor do estudo, publicado na revista Nature.

O estudo analisou o DNA de 51 euroasiáticos, uma amostra 10 vezes maior que qualquer estudo anterior. Abarca desde os humanos modernos mais antigos registrados aos caçadores-coletores que viveram pouco antes da revolução neolítica que trouxe consigo a agricultura ao continente.

“O que vemos é uma história das populações tão complexa quanto a dos últimos 7.000 anos, com muitos momentos em que populações substituem outras, imigração em uma escala dramática e em um momento no qual o clima estava mudando radicalmente”, resumiu David Reich, geneticista da Universidade de Harvard e principal autor do estudo, publicado na revista Nature.

MAIS INFORMAÇÕES

Genoma mostra cruzamento da nossa espécie com NeandertaisArqueólogos encontram desenho mais antigo da humanidadeO triunfo do homem-macaco

O estudo analisou o DNA de 51 euroasiáticos, uma amostra 10 vezes maior que qualquer estudo anterior. Abarca desde os humanos modernos mais antigos registrados aos caçadores-coletores que viveram pouco antes da revolução neolítica que trouxe consigo a agricultura ao continente.

A primeira conclusão do estudo é que, embora os neandertais e os humanos modernos (os Homo sapiens) se cruzaram e tiveram filhos férteis, a percentagem de DNA dessa outra espécie que carregamos diminuiu rapidamente, passando de 6 % para os 2% de hoje. Isto implica certa incompatibilidade evolutiva que já tinha sido destacada por outros estudos recentes.

Embora os primeiros sapiens tenham chegado à Europa há cerca de 45.000 anos, sua marca genética desapareceu completamente nas populações atuais. As primeiras populações que possuem algum parentesco com os europeus de hoje remontam a uns 37.000 anos atrás. Os autores do trabalho identificam essa população com o período aurignaciano.

“Estão associados a esta cultura os primeiros exemplos de arte e música, assim como as pinturas da caverna de Chauvet na França ou as flautas de ossos”, diz Manuel González Morales, pesquisador da Universidade da Cantábria e coautor do trabalho.

Naquela época, a Europa vivia a última idade do gelo, com geleiras avançando do norte da Europa e empurrando povos inteiros à migração ou ao extermínio. Segundo dados do trabalho, há 33.000 anos outro grupo substitui quase totalmente o anterior e é associado com o período gravetiano, caracterizado por pinturas com as mãos em negativo e as redondas estatuetas das Vênus paleolíticas esculpidas em osso, explica González.

Inesperadamente, há cerca de 19.000 anos, reaparecem os descendentes do período aurignaciano. Os restos humanos encontrados na Cantábria mostram agora que os habitantes desta região estavam diretamente relacionados com eles.

Uma das possíveis explicações é que aquele povo migrou para refúgios quentes do sul da Europa, em particular a Península Ibérica. Depois do momento mais frio da última idade do gelo esta população volta a se expandir para o norte da Europa, recuperando o território perdido e substituindo seus habitantes.

Última onda

Mais uma vez, cerca de 14.000 anos atrás, outra população vinda das terras do Oriente Médio desembarca no continente e passa a ser dominante, substituindo boa parte das anteriores. Esta última onda, que não era conhecida até agora, foi identificada pelos restos de um caçador e coletor encontrado em Villabruna, Itália e que deu nome a esta população.

A marca genética deste grupo se perpetuou durante milênios, já que, por exemplo, o caçador coletor de La Braña (Leão), que viveu há 7.000 anos estava relacionado com este grupo.

Os genes do homem de La Braña mostram que tinha pele escura e olhos azuis. De acordo com González, até a chegada de seus ancestrais à Europa cerca de 14.000 anos atrás, todos os europeus tinham a pele escura e os olhos castanhos. “O trabalho mostra que os primeiros indivíduos com genes de pele clara viveram há uns 13.000 anos”, explica o pesquisador da Universidade da Cantábria. Depois, com a chegada dos primeiros agricultores do Oriente Médio começa o Neolítico e a pele branca se torna muito mais comum. Em outras palavras, os europeus foram negros durante a maior parte de sua história.

Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/04/ciencia/1462380282_766551.html?id_externo_rsoc=FB_CM

domingo, 8 de maio de 2016

Mães escravas, mães “de cor”*

As mães escravas, na sua grande maioria amantes passageiras, não tinham
seus nomes lembrados e, estando ausentes da documentação da época colonial, não permitem que sondemos se foram lembradas em vida por seus senhores. Quanto a seus filhos,
não se sabe tampouco se, em algum momento, foram recompensados ou, se concebidos sob coerção e violência, coube-lhes apenas o esquecimento por terem nascido escravos.

O que se pode supor é que tais maternidades se engendravam a contragosto, por apavorado constrangimento; mas é possível também que existissem certas
retribuições por serviços sexuais. Os benefícios de tantos sacrifícios eram bem
poucos. Mais além do sofrimento imposto pela condição mesma do escravismo, as gratificações simbólicas que uma mãe negra poderia auferir equivalem a um triste esgar: o status de ser concubina de um homem branco, os filhos de pele mais clara
e, por fim, a possibilidade mais concreta de liberdade. Luís Mott cita o caso da escrava Maria do Egito, mulata de trinta anos, pertencente a Evaristo José Santana que assim respondeu ao libelo da devassa efetuada no sul da Bahia em 1813: “sob promessa de se libertar deixou-se levar de sua virgindade por amor único de gozar esse bem
maior […] a Liberdade”. Passada a carta de alforria, seu senhor “a teve por barregã
por mais de 14 anos”. Para cada concubina libertada, várias mulheres eram violentadas.

A maternidade de escravas acentuava o caráter de exploração física que sofreram tais mulheres. Seu sexo era utilizado para o desfrute e o prazer, mas também para a reprodução, pois os filhos de escravas não deixavam de significar um investimento para os seus senhores. Ao queixar-se ao juiz ordinário em 1799,
porque seu marido fugira com quatro escravos, Maria Leite de Almeida dá a medida do que a mãe escrava podia significar no contexto colonial. Depois de explicar que o cônjuge a ameaçara “com uma faca de ponta para me tirar a vida, por causa de andar concubinado com uma escrava de que já tem um filho”, ela afirmava: “o excesso que faz o suplicado para lhe entregarem os escravos, dizendo que não tem quem o sirva quando nem ele nem seus progenitores nunca possuíram um escravo, e se lhe
derem a mãe de seu filho, ficará tão satisfeito que nem se lembrará que é casado”.

Estas eram as relações feitas de prazer e serviços e que, quem sabe, incluíam afeto
por ocasião das gestações.
A partir do século XIX, mães negras foram alvo de uma política natalista à base
de um discurso para fazê-las desejar a maternidade. J. M. Imbert, médico francês que escreve aos fazendeiros brasileiros sobre como tratar esses “indispensáveis ao trabalho da terra”, sugeria um prêmio para aquelas que “levassem com felicidade a
cabo sua gravidez”, repetindo as admoestações de Fénelon e Raynal, cujas diretrizes encontraram receptividade entre os planteurs antilhanos no século XVIII.

No quadro de solidão e abandono em que vivia grande parte das mulheres na
Colônia, os filhos eram o que, muitas vezes, de mais valor sobrava para as mulheres que tentavam escapar de uniões incertas. Uma senhora da freguesia de Santo Amaro,
São Paulo, fora depositada em casa de seus parentes “apenas com seu filho menorde ano e meio chamado Salvador, e unicamente com a roupa ordinária e caseira do
corpo”

A solidão habitava não apenas o interior de lares, mas também pairava como uma
ameaça de maridos coléricos que, não satisfeitos em terem abandonado suas esposas,
queriam interromper seus vínculos com a comunidade, e, para tanto, atacavam a
sua reputação. Foi o caso sucedido em Guaratinguetá, 1775, em que Ana Maria da
Assunção alegava sobre o marido, que embora sempre com ele tivesse feito

vida marital e dele tem três filhos e sempre o amou e serviu com afeto e obrigação,
[…] o dito réu não só dá má vida e maltrata a dita autora, mas também a desacredita
publicamente, dizendo que os filhos que dela tem não são seus filhos, culpando outras
pessoas injustamente e sendo a autora honesta e grave e gente branca e incapaz de cometer semelhantes calúnias.

As “semelhantes calúnias” indicam o alto índice de ilegitimidade encontrado
entre mulheres de cor e evidentes nas listas de população e nos processos eclesiásticos. Invocados por Ana Maria da Anunciação, que se dizia “grave e honesta”, portanto gente branca, os filhos de parceiros ocasionais estigmatizavam-se como coisa de gente-que-não-era-branca. E, portanto, nem grave nem honesta. Preconceitos sociais e raciais traçavam a geografia de limites entre maternidades de segmentos
diversos, despertando um certo estranhamento no olhar de mulheres que viviam o mesmo processo biológico, mas avaliavam-se pelas práticas e pelo cenário em queasuas maternidades eram vivenciadas.

 

Texto de Mary del Priore. Baseado em “Ao Sul do Corpo”, Editora José Olympio, 1993.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Educação étnico-racial: reflexões iniciais

Márcio Ramos

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história  “

Chimamanda Adichie

A escola ainda é um dos locais fundamentais na formação do sujeito. Geralmente é no momento de chegada à escola que o mundo da criança se amplia e ela percebe o quão diferente as pessoas são, que ela que ela terá que lidar com essa realidade e estabelecer laços para se acomodar minimamente nesse novo mundo. A escola contribuirá para a formação dessa criança através de uma outra narrativa, diferente da que ela tinha acesso em seu grupo familiar e social.

É importante que essa narrativa que a escola constrói e transmite aos alunos que aqui chegam, dê conta da multiplicidade da experiência humana. Não se pode mais conceber uma educação que se baseie em uma interpretação única de mundo, ou que apenas reforce a visão das famílias sobre a realidade. A escola precisa ampliar o olhar de cada educando, dando-lhes asas, no dizer de Rubem Alves.

Neste contexto, uma educação étnico-racial é necessária. Principalmente em nosso país, formado por mais de 50 % de negros, marcado por mais de 300 anos de escravidão e que ainda não deu conta de resolver o grave problema do racismo e a inclusão social dos negros. Nos negamos a enfrentar a questão e adotamos o mito da democracia racial para manter uma aparência de paz social. Mas a necessidade da criação de uma lei que determina o ensino da história e cultura afro-brasileia nos mostra o quanto o problema ainda permanece.

Para se efetivar a implementação da Lei 10639 em sala de aula, algumas reflexões são necessárias. Penso que existem duas ações necessárias e complementares neste processo. A primeira linha de ação diz respeito ao nosso conhecimento sobre a África e sua relação com o Brasil e a discussão da temática com nossos alunos. O outro aspecto diz respeito à forma como lidamos com nossos alunos negros em sala de aula e como incentivarmos o respeito à diversidade e o combate ao racismo.

Sejamos realistas, o nosso conhecimento sobre os povos não europeus é muito precário. Os povos do “Oriente” e africanos aparecem em nossa cosmovisão como exóticos,estranhos, os “outros”. A maior parte das informações que temos tem origem nos programas de TV e de filmes, que caricaturizam a história e a cultura desses povos. É necessário um grande esforço para desnaturalizarmos essa visão, para conseguirmos ir além dessa narrativa hegemônica a que estamos submetidos.

O primeiro erro é pensar a África como um país. Sim, muitas vezes nos referimos à África como um país, esquecendo que o continente africano é formado por mais de 50 países, que são distintos entre si, tanto do ponto de vista geográfico, como político, econômico e cultural. Essas diferenças se dão pelo tamanho do continente e por sua história. Precisamos discutir com nossos alunos sobre essa diversidade e não tratar toda a África como algo uniforme. É necessário combatermos a visão midiática de que a África é uma região só de guerras civis, epidemias e pobreza. Apesar das dificuldades enfrentadas pela maior parte do continente, essa não é a realidade de todos os países africanos. Países como Seicheles e Maurícia possuem IDH maior do que o Brasil. Grande parte dos países conquistaram sua independência a pouco mais de 50 anos, estão se constituindo enquanto Nação e logicamente enfrentam dificuldades nesse processo.

Precisamos mostrar a nossos alunos que todos nós temos uma origem africana. Os primeiros homens viveram na África e lá se desenvolveram grandes civilizações, como o Egito Antigo. Muitas vezes falamos do Egito como se ele não fosse africano, e o cinema e novelas reforçam essa visão ao retratar os egípcios como brancos. Perceber as contribuições técnicas e culturais é importante para resignificarmos a imagem e o papel do negro na história. Os professores podem mostrar a técnica altamente desenvolvida pelos africanos na construção das pirâmides, seus conhecimentos medicinais e metalúrgicos.

A obrigatoriedade legal de se estudar história e cultura africana, assim como a indígena, pode nos proporcionar a oportunidade de tratar esses povos em sua humanidade. Ou seja, às vezes sempre partimos da discussão sobre a escravidão e podemos reforçar a imagem dos negros como escravo. Quando discutimos sobre escravidão, negro parece ser sinônimo de escravo. Por isso é preciso um cuidado muito grande na seleção e análise de imagens e textos para o trabalho escolar. Temos que problematizar a experiência histórica desses seres humanos, seus desejos, suas lutas, sua resistência.

Discutir e tratar as religiões de origem africana como parte da herança cultural da humanidade é essencial. Mostrar como as religiões tradicionais africanas valorizam a ancestralidade como força definidora da identidade de cada um pode levar nossos alunos a valorizar a história e origem de seu grupo familiar e social, combatendo esse imediatismo contemporâneo. Às vezes temos dificuldades em discutir as religiões de matriz africana devido ao forte preconceito presente em nossa sociedade. Mas porque não dar o mesmo valor a essas manifestações culturais assim como dado a mitologia grega?

Um detalhe importante sobre as religiões existentes na África é que, ao lado das religiões tradicionais, temos a presença do islamismo, principalmente no norte do continente, assim como das religiões cristãs. Homogeneizar a experiencia religiosa africana é empobrecer nosso conhecimento sobre ela.

Da mesma forma que o conhecimento sobre a África e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira são importantes para permitir a formação de identidade dos alunos, a forma como lidamos com as questões suscitadas nos conflitos do dia a dia na escola, também é definidora de uma boa educação étnico-racial. Não podemos jogar para debaixo do tapete situações de discriminação e racismo.

Não podemos apenas realizar comemorações esporádicas e especificas como o Dia da Consciência Negra e não enfrentar nossa dificuldade em lidar com a questão racial. Não basta o tema estar no currículo oficial da escola, se no currículo oculto negamos a esse sujeito sua humanidade. Continuar o debate e construir ações para uma educação que respeite a diversidade e as várias narrativas existenciais  é o desafio que temos pela frente e toda a comunidade escolar precisa se apropriar desta importante discussão.