sábado, 27 de janeiro de 2018

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Especial expulsão dos jesuítas - Cortados pela raiz

Pombal não é o único culpado. Interesses ingleses contribuíram para a expulsão da Companhia de Jesus


Tiago C. P. dos Reis Miranda


Existe ainda uma certa tendência para explicar a expulsão dos jesuítas com base em aspectos da biografia do todo-poderoso marquês de Pombal. O primeiro desses aspectos é a sua passagem como diplomata pelo Reino Unido (1739-1744), onde teria ficado “infeccionado” pela heresia anglicana. O segundo teria a ver com certas características de personalidade, que se traduziriam numa espécie de impulso persecutório, decididamente voltado contra os missionários logo no início do seu longo período de maior influência na governação (1756-1777). 

Mas nem tudo se explica por fatores pessoais, nem os fatores pessoais dispensam também sua história. Sabe-se, por exemplo, que a ascensão de Sebastião de Carvalho ao posto de secretário de Estado, em 1750, contou com o apoio de jesuítas próximos da Corte. Durante algum tempo essa relação resultou, inclusive, numa maior influência dos sacerdotes sobre os negócios do Reino e do Ultramar – onde, na época, se iniciavam os trabalhos para a delimitação das fronteiras ao sul do Brasil, fixadas com o Tratado de Madri.

Para entender o processo de expulsão da Companhia de Jesus dos domínios portugueses, é preciso considerar o complicado equilíbrio entre as diversas potências europeias em meados da década de 1750. Multiplica-se então uma série de contatos e acordos diplomáticos, com resultados surpreendentes. De uma hora para a outra, a França, a Áustria e a Rússia se aliam contra a Inglaterra, a Prússia e o Estado de Hanover. Nesse primeiro momento, Parma, Espanha e as duas Sicílias mantêm-se neutras. O mesmo acontece com as Províncias Unidas (Países Baixos), literalmente entaladas entre os dois lados. De uma forma geral, a sensação é de perigo iminente. O início das hostilidades em campo europeu ocorre em maio de 1756, com a invasão de Minorca (no Mediterrâneo) pelos franceses. No fim do verão, Frederico II, rei da Prússia, ataca a Saxônia.

Portugal acompanha as notícias das tropas e as perspectivas de novas batalhas em posição de angustiante fragilidade. Porque, além de ter o Exército e a Marinha extremamente mal equipados e quase sem treino de guerra efetiva, vê a cabeça do império ainda sujeita aos últimos rescaldos do grande terremoto de 1º de novembro de 1755. Os arquivos do reino estão praticamente desfeitos. O rei e a Corte, vivendo em barracas. Tudo é muito precário, diante da ameaça de ter de escolher um aliado europeu ou fazer frente a uma possível invasão estrangeira. Ao mesmo tempo, sucedem-se diversas disputas internas pelo governo, que acabam levando à mudança de dois secretários de Estado e vários ministros das legações diplomáticas, com uma clara derrota política da alta nobreza e dos simpatizantes da Companhia de Jesus. 

Do Brasil chegavam informes com impressões nada favoráveis sobre a atuação dos religiosos. Em relatos como o do general Gomes Freire de Andrade, comissário para as Partes do Sul, e o do governador do Maranhão e do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, os padres eram acusados de não colaborar com as missões demarcatórias nas fronteiras, de incitar o desacato aos representantes da Coroa e pretender a constituição de um Estado à parte. A custosa campanha pelos territórios de sete populosas missões a leste do Rio Uruguai daria lugar a uma violenta batalha de panfletos, que ganharia escala europeia, tendo os jesuítas como personagens centrais.

Com a Europa em polvorosa, o que em princípio interessava a Lisboa era manter a neutralidade que D. João V adotara depois do desfecho da Guerra da Sucessão Espanhola (1701-1713). Neutralidade algo enganosa, por repousar sobre os princípios do Tratado de Methuen (1703), que previa uma espécie de troca de tecidos britânicos por vinhos portugueses. De qualquer modo, ao longo dos anos, com os proventos do ouro das Minas Gerais, tinha sido possível a Portugal o exercício de alguma firmeza na sua relação com a Inglaterra. E logo no início do segundo semestre de 1756, alarmado com o quadro existente, o ministério de D. José chegou a ensaiar uma mudança estratégica, remetendo uma embaixada a Versalhes. Seu objetivo era tentar estabelecer com a França um tratado comercial e uma aliança militar defensiva que dissuadisse qualquer aventura de outras potências.

A iniciativa esbarrou no ambiente encontrado na Corte francesa. Os secretários de Luís XV andavam exultantes com os sucessos das primeiras campanhas e pareciam mais empenhados em conseguir integrar a Coroa espanhola à sua rede de alianças continentais. Além disso, tanto no seio da família real como no círculo mais próximo da favorita do rei, Madame de Pompadour, ocorria uma notória ascensão de partidários da Companhia de Jesus, que desenvolviam contatos com o suspeito infante D. Pedro, irmão mais novo do rei português, e sua tia D. Maria Bárbara. A tentativa de garantir maior segurança para os domínios de D. José tinha de ser relançada em outras bases. E elas viriam a ser bases britânicas.

Em meados de 1757, Martinho de Melo e Castro, enviado extraordinário na Corte de Saint James, foi instruído a alertar o ministério britânico e os negociantes da Bolsa de Londres sobre os perigos que poderiam advir de uma conjugação de interesses entre os jesuítas e as Coroas ligadas à dinastia dos Bourbon (especialmente França e Espanha). Logo nos meses seguintes, multiplicaram-se as trocas de ideias a esse respeito com o secretário de Estado William Pitt e o próprio monarca, Jorge II. Daí em diante, todas as medidas tomadas contra a Companhia de Jesus passaram a ser acolhidas pelos ingleses com enorme entusiasmo. O fluxo de panfletos portugueses antijesuíticos em direção à Inglaterra atendeu a uma forte e generalizada demanda local.

Tamanho interesse pelo assunto tinha razão de ser. Estava viva na memória dos britânicos a aguerrida campanha missionária jesuítica em seu território, e era enorme a importância simbólica das sucessivas derrotas que lhe tinham sido impostas pelo Anglicanismo. Entre elas, a mais celebrada era a de 1605, quando se evitara a explosão de uma grande quantidade de pólvora acondicionada debaixo das Casas do Parlamento com a intenção de matar o monarca, Jaime I, e todos os membros da Assembleia. Reza o processo que o complô fora inspirado pelas doutrinas dos sacerdotes da Companhia, que aceitavam o assassinato de soberanos desde que fossem despóticos ou ilegítimos. Poucas entidades invocavam de modo tão claro, para os ingleses da época, a traição, a perfídia e a maldade.

As acusações portuguesas contra os jesuítas foram o cardápio de um jantar oferecido por Lord Mansfield, responsável pelo sistema de Justiça da Inglaterra e do País de Gales, ao enviado português Martinho de Melo e Castro, em maio de 1758. Durante o encontro, o dono da casa quis saber se esses padres continuavam a ser tolerados nos territórios do Maranhão e do Paraguai. Algo surpreso, Martinho de Melo e Castro confessou não ter recebido qualquer informação que o levasse a pensar o contrário. O britânico foi taxativo: “Estou certo de que jamais deixarão o país em sossego. Semelhante casta de gente é como as ervas de ruim qualidade: se não se lhes arrancam as raízes, por mais que se lhes corte a rama, sempre produzem, e ordinariamente com mais força, que a antecedente”.

Cerca de um ano depois, o mesmo Martinho de Melo e Castro receberia o encargo de comunicar oficialmente ao rei Jorge II a intenção de expulsar todos os padres jesuítas dos domínios portugueses, com um expresso pedido de apoio militar à Inglaterra, para o caso de alguma outra potência se opor à medida. As instruções enviadas acumulavam uma longa série de argumentos, adiantando, inclusive, que se o assunto não fosse tratado com celeridade, brevemente “nem haveria Brasil para Portugal, nem em Portugal e no Brasil comércio que fosse de alguma consequência para Inglaterra”. Mas nem era preciso apresentar essa ameaça com todas as letras. Confiante nas novas feições que a guerra assumia na Europa e, sobretudo, no Canadá e na Índia – onde a França colhia insucessos –, Jorge II assegurou seu apoio irrestrito à decisão d’el-rei D. José, e ainda decidiu sugerir que os sacerdotes aprisionados fossem mantidos sob cerrada vigilância, para que as suas calúnias não engrossassem o caudal dos libelos antiportugueses.

No mais, o rei da Inglaterra podia dormir tranquilo: pelo menos a médio prazo, as “ervas daninhas” que seu povo tanto combatera estavam feridas de morte.

Tiago C. P. dos Reis Miranda é pesquisador do Centro de História de Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa, autor da tese de doutoramento “A Inocência da Razão: António Freire de Andrade Encerrabodes (1699-1783)” (USP, 1998) e da dissertação “‘Ervas de Ruim Qualidade’: a expulsão da Companhia de Jesus e a aliança anglo-portuguesa (1750-1763)” (USP, 1991).

Saiba Mais - Bibliografia

AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e a sua época, [1ª ed., 1909], prefácio de Francisco José Calazans Falcon. São Paulo: Alameda, 2004.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José. Na sombra de Pombal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006.
NOVAIS, Fernando A. “Política de neutralidade”, in Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), 2ª ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1983.


Especial expulsão dos jesuítas - Bons negócios


Empreendedores de sucesso, os jesuítas acumularam um enorme patrimônio no Brasil


Paulo de Assunção




“Desnaturalizados, proscritos e exterminados” do território português e de todas as terras de além-mar. Foi com estes termos que o rei D. José I determinou o banimento dos religiosos da Companhia de Jesus na lei promulgada em 3 de setembro de 1759. A decisão rompia com mais de dois séculos de união entre os jesuítas e a Coroa portuguesa, marcados por uma tumultuada relação de interesses. 

No decorrer de sua permanência em terras brasileiras, o poder espiritual dos jesuítas também se transformou em poder material. O acúmulo de propriedades foi prática constante e crescente entre aqueles religiosos, fosse por meio de compra ou de herança testamentária. Além das igrejas, de colégios e orfanatos, seus bens incluíam prédios, fazendas e engenhos, ocupando boa parte do tempo dos missionários em atividades administrativas e empreendedoras. Precisavam se preocupar com o pagamento de salários e débitos, custos de produção, taxas de rentabilidade e gerenciamento da mão de obra escrava. Possuíam grandes fazendas no Rio de Janeiro, no Espírito Santo, no Pará e no Maranhão. Mas a maior concentração de bens estava no Nordeste, por conta da exploração da cana-de-açúcar, base da economia colonial no período. 

Eram tantas as propriedades em seu nome que os jesuítas constantemente se envolviam em litígios e conflitos com os donos de terrenos vizinhos. Reclamava-se de que eram minuciosos demais nas disputas pelos limites de suas propriedades, hábito agravado pelo incômodo discurso em defesa da liberdade dos índios.

Ao concentrar influência religiosa, política e econômica, a ordem angariou inimizades e passou a ser vista como uma ameaça pelos governantes locais. Tanto que o ato de sua expulsão alegava o objetivo de preservar a autoridade real e a soberania do Estado lusitano. Segundo a Coroa, era uma ação em defesa da segurança da coletividade, para “conservar a tranquilidade e interesses dos fiéis vassalos”. A lei que os mandou embora foi recebida como boa notícia por muitos. Ainda mais porque transferia para a Coroa portuguesa as muitas riquezas que estavam em seu poder.

O rei determinava o confisco geral de todos os bens, rendas ordinárias, pensões e qualquer outra atividade dos religiosos em toda a extensão das terras coloniais. Assim que eles se retiraram, começou o trabalho de inventariar e descrever todas as suas propriedades. Seus próprios livros e rol de contas, onde registravam em detalhes as transações financeiras, ajudaram nesse trabalho. Relatórios quantificavam a produção das fazendas, o montante obtido com as vendas, as mercadorias compradas, os valores gastos com a manutenção da propriedade e para o andamento dos negócios – como a reposição dos instrumentos de produção, o tratamento das doenças dos escravos e os fretes dos produtos que iam da Colônia para o reino e vice-versa. As terras jesuíticas fabricavam pães de açúcar, arroz, fumo, especiarias e muitos outros produtos. Eles também criavam gado, principalmente nas propriedades do Rio de Janeiro, onde alguns rebanhos chegaram a ter de duas mil a três mil cabeças.

O resultado das atividades econômicas dos inacianos, bem como as doações em dinheiro feitas por fiéis, gerou ainda recursos para a aquisição de imóveis no meio urbano. No Recife, o Colégio Jesuítico era proprietário de cerca de 30 “prédios rústicos”, sítios localizados nas adjacências da cidade. Depois de inventariados, esses imóveis foram vendidos em hastas (ofertas públicas), gerando uma receita de quase 9,5 contos de réis – valor extremamente elevado para a época, equivalente ao patrimônio das famílias mais abastadas.

No caso do confisco dos bens do Colégio do Recife, realizado entre 1759 e 1763, só com a venda de bens móveis foram arrecadados mais de três contos de réis – entre botica, mobiliário, gado das fazendas, ferragens, roupas, livros das bibliotecas, couros, açúcar, escravos e miudezas. Passou-se então à venda dos bens imóveis do Colégio: o engenho de açúcar de Nossa Senhora da Luz, a Fazenda de Nossa Senhora do Rosário da Barreta, outras fazendas de criação de gado e prédios rústicos e urbanos renderam à Coroa aproximadamente 60 contos de réis.

As posses do Colégio da Bahia também se estendiam para além de Salvador. Entre as propriedades estavam os engenhos de açúcar de Pitanga e de Cotegipe, ambos com fábricas, casas, escravatura, gado e terras, e mais sítios e fazendas em diferentes localidades, além de 50 casas e lojas espalhadas pela região. Patrimônio significativo que se formara com o decorrer dos anos e que fornecia recursos polpudos aos jesuítas: somente dos aluguéis das casas na cidade, eles obtinham quase nove contos de réis. 

À medida que os bens dos jesuítas eram conhecidos, confirmava-se o descompasso entre os interesses do Estado português e os dos religiosos, que nos últimos anos assumira contornos mais evidentes. Verificando o declínio da produção açucareira e as inconstâncias do mercado europeu, os jesuítas vinham direcionando suas ações para outros investimentos que permitissem retorno mais seguro e estável – como os empréstimos de dinheiro a particulares e o aluguel de suas propriedades. O arrendamento de terras e as casas de aluguel compunham a maior parte da renda dos inacianos no momento da expulsão. 

Não se pode dizer que os engenhos fossem mau negócio. Apesar das flutuações da indústria açucareira, a atividade dava lucro, ainda mais por contar com privilégios e favorecimentos reais, como isenções de impostos. Mas, ao se afastarem da base econômica da Colônia, o que os jesuítas priorizavam para suas riquezas era uma rentabilidade maior, mais fácil e mais rápida. Comparados aos proprietários de engenhos, os religiosos adotavam práticas administrativas bem mais eficazes. 

O sumário dos rendimentos obtidos com a venda de seus bens demonstra que a ordem havia administrado seu patrimônio de maneira eficiente desde o século XVII, permitindo que ele crescesse significativamente. A diversidade dos bens e dos investimentos é prova de que se adaptaram às economias regionais, sempre fiéis à sua missão: quanto maior a rentabilidade, maior a glória de Deus. 

Paulo de Assunção é professor da Universidade São Judas Tadeu e da Anhanguera Educacional-Faenac e autor de Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos (Edusp, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia

COUTO, Jorge. O colégio jesuítico do Recife e o destino do seu patrimônio (1759-1777). Tese de Mestrado em História Moderna de Portugal apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990.

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos - Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial 1550-1835. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

LEITE, Serafim, S.J.  História da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa/Rio de Janeiro: Portugália/INL, 1938-1949.


A campanha civilista de 1910

Campanha animada


Civil ou militar? Brasileiros se mobilizaram para escolher o presidente em 1910


Vera Lúcia Bogéa Borges



Num tempo em que ainda não existiam tribunais eleitorais no Brasil, a escolha dos representantes do povo era tramada nos bastidores. A visão consagrada pela História é de que as eleições na Primeira República (1889-1930) eram mera formalidade: vencia quem as oligarquias estaduais, principalmente as de São Paulo e Minas Gerais, queriam que vencesse. No entanto, a eleição presidencial de março de 1910 rompeu essa harmonia política e mobilizou de verdade os brasileiros ao opor dois candidatos antagônicos: o marechal Hermes da Fonseca e o intelectual Rui Barbosa.

Quem andasse pelas ruas das principais cidades do país em 1909 e no início de 1910 não poderia ignorar que uma eleição presidencial se aproximava. Os meetings, hoje conhecidos como comícios, reuniam adeptos de uma e outra candidatura em teatros e outros locais públicos. Era programa popular entre os que tinham direito ao voto – que não eram muitos – acompanhar discursos dos candidatos ou dos seus cabos eleitorais.

Quem lesse jornais ou mesmo revistas de comportamento também estaria informado sobre o passo a passo pré-eleitoral. O assunto transbordou das colunas políticas e passou a ocupar outros espaços na imprensa, como mostra uma nota da revista carioca Fon-Fon, termômetro dos hábitos e costumes do início do século XX. Cheio de humor, o texto trata da “febre dos meetings”, na época em que o barão do Rio Branco ainda era apontado como possível candidato: 

“Os partidários do marechal Hermes e do barão do Rio Branco não descansam! É meeting sobre meeting, quase todos os dias e à tardinha, na hora da gente ir tranquilamente para casa. Esses meetings, entretanto, têm servido de capa a muito chefe de família bilontra, que aproveita os mesmos para chegar ao lar conjugal muito depois do assado ficar estorricado. (...) A pátria desse freqüentador de meetings usa naturalmente o cabelo oxigenado e anda sans dessous (sem roupa íntima) Crédulas esposas em guarda!”, dizia a revista.

E não era só no Rio de Janeiro que a campanha se desenrolava. Pela primeira vez na curta história republicana do Brasil, um candidato promoveu excursões eleitorais. Hermes da Fonseca também visitou o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Em dezembro de 1909, Rui Barbosa foi recebido por multidões empolgadas no estado de São Paulo, onde contava com o apoio do governador (na época chamado de presidente de estado) Albuquerque Lins, candidato a vice em sua chapa. No mês seguinte, mobilizou a população na Bahia, sua terra natal, assim como fez em fevereiro de 1910 em Minas Gerais – apesar de o Partido Republicano Mineiro apoiar oficialmente Hermes da Fonseca, que tinha o presidente do estado, Venceslau Brás, em sua chapa como vice. Na capital federal, o Rio de Janeiro, não foi diferente: aplausos e mais aplausos.

O embrião de todo esse embate político surgiu no governo de Afonso Pena, que assumira a Presidência da República em 1906. Fortalecido pelo equilíbrio das finanças do país – resultado dos empréstimos obtidos no exterior pelos estados produtores de café –, ele se sentiu em condições de influenciar sua sucessão como nenhum presidente tinha feito antes. 

Sua primeira opção para sucedê-lo foi outro mineiro, João Pinheiro, que se destacou na administração do estado. Mas a morte de Pinheiro em outubro de 1908 sepultou os planos do presidente. A segunda alternativa foi Davi Campista, o então jovem ministro das Finanças responsável pela bem-sucedida política econômica. Diante dessa possibilidade, os políticos experientes, entre eles Rui Barbosa, manifestaram-se contra esse nome com o argumento de que não enxergavam nele experiência, maturidade e nem autoridade para o cargo.

Com o impasse, surgiu outro presidenciável, apoiado pelos militares. Era o então ministro da Guerra, Hermes da Fonseca, militar de carreira que nunca havia ocupado cargo eletivo e sobrinho do primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca. O poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado deu-lhe apoio e justificou: “Não temos arbítrio da escolha, aceitamos o Marechal Hermes, homem sério e bem intencionado e que dirigiremos à nossa vontade”. Nem com a morte de Afonso Pena, em junho de 1909, a candidatura perdeu força. O vice Nilo Peçanha, que assumiu o governo, manteve o apoio ao marechal.

Os críticos do candidato oficial reclamavam de sua pouca experiência política. Argumentavam que a ascensão de um presidente militar seria uma marca negativa para o governo do Brasil dentro e fora do país, o que poderia dificultar a concessão de créditos. Estados Unidos e Europa olhariam o Brasil com a mesma desconfiança com que viam muitas repúblicas hispano-americanas chefiadas por militares na época. Às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial, o mundo se tornava mais bélico e a oposição civil versus militar era comum em vários países.    

E foi justamente o fato de ser um civil opondo-se a um militar o grande atrativo de Rui Barbosa e sua candidatura inovadora. Batizada de Campanha Civilista, ela se baseou na reputação construída em mais de 30 anos de vida pública de Rui. Quando foi escolhido candidato, em agosto de 1909, ele ocupava o cargo de senador e presidia a Academia Brasileira de Letras. Apenas dois anos antes, tinha experimentado seu maior momento de glória ao ser aclamado por sua atuação na Conferência de Haia (Holanda), que elaborou um dos mais importantes tratados internacionais sobre crimes de guerra [ver artigo em RHBN 24, de setembro de 2007]. 

Com a definição das duas candidaturas, estava quebrada a aparente harmonia política típica da Primeira República. Essa harmonia era marcada por práticas como a “política dos governadores”, espécie de pacto estabelecido pelo presidente Campos Sales (1898-1902), que garantia ao governo central o apoio dos estados onde os fazendeiros detinham o poder.

Dentro desse jogo, a função das eleições não era promover a alternância de poder e nem revelar a vontade popular, mas sim solucionar os eventuais conflitos políticos dentro dos estados e controlar a multidão para a manutenção da ordem vigente. Entre os meios utilizados para isso estava o “voto de cabresto”: eleitores escolhiam os candidatos determinados pelos “coronéis”, ou grandes proprietários rurais locais.

Fraudes ocorriam na seção eleitoral, como a elaboração de atas falsas de votação, preparadas antes do dia do pleito. Outro mecanismo se chamava “degola”. Por meio dela, o candidato eleito não era diplomado pelo Poder Legislativo e, portanto, ficava impedido de tomar posse. Qualquer suspeita de fraude ou rasura em ata, por exemplo, eram pretextos para o uso desse mecanismo.

Com todas essas maneiras de burlar a votação sendo amplamente utilizadas, era mesmo difícil que uma eleição tivesse um resultado que não interessasse ao grupo com maior apoio entre as elites. Embora as campanhas tenham se diferenciado das anteriores, dando um sopro de juventude à República Velha, o resultado mais uma vez confirmou a vitória do candidato governista. Em julho de 1910, o Congresso Nacional reconheceu a vitória da chapa do marechal Hermes da Fonseca e de Venceslau Brás.

Hermes da Fonseca teve contados a seu favor mais de 403 mil votos, enquanto Rui Barbosa teve cerca de 150 mil, isto é, 37% dos votos. Mais importante do que o resultado foi o fato de existir participação popular com luta política através dos jornais, uma vez que houve rompimento do consenso oligárquico. Apesar do resultado final que confirmou a vitória do candidato governista, a eleição de 1910 mostrou como a Primeira República era complexa e intensa. Esta eleição não foi apenas um rito de passagem para constar, para oferecer uma capa de legitimidade à República. Nela houve uma verdadeira disputa desde o lançamento da candidatura Hermes (maio de 1909) até o dia do pleito (1° de março de 1910), constituindo-se, assim, no mais longo processo eleitoral até então. 

O consenso oligárquico se rompeu, os grandes periódicos se dividiram entre um lado e outro e a população urbana participou ativamente das diversas atividades de campanha (recepções de chegada e partida das excursões eleitorais, meetings, etc). As ideias e as propostas apresentadas na sucessão presidencial apontam mais na direção de uma verdadeira disputa do que de uma simples armação para ficar tudo na mesma. Desse modo, a eleição de 1910 não se resume à campanha civilista. Este é apenas um dos lados da disputa.

Vera Lúcia Bogéa Borges é professora de História do Colégio Pedro II e autora de Morte na República: os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915). ( Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Editora Livre Expressão, 2004). 

Saiba Mais - Bibliografia


BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1967. Tomo I, volume XXXVII. 
LUSTOSA, Isabel. História de presidentes: a República no Catete (1897-1960). Rio de Janeiro: Agir, 2008. 
VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. Teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

Saiba Mais - Internet

Cronologia da campanha civilista:
Casa de Rui Barbosa/Rui Barbosa/Cronologia/Civilismo
http://www.casaruibarbosa.gov.br

Seminário promovido pela Casa de Rui Barbosa sobre a Campanha Civilista (3-4/11/2009): Revista de História/Observatório/Primeiros palanques 
www.rhbn.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2718


O cortiço

Quase real


Em O cortiço, Aluísio Azevedo apresenta ricos e pobres sem idealizações


Ligia Vassallo




Não é de hoje que a cidade do Rio de Janeiro é dividida entre ricos e pobres, morro e asfalto. Basta ler o romance O cortiço (1890), obra-prima de Aluísio Azevedo (1857-1913), um dos principais escritores da literatura brasileira, para se perceber que os contrastes sociais já faziam parte do dia a dia dos cariocas desde o século XIX. Ambientada nas vésperas da Abolição e da Proclamação da República, a obra revela um efervescente ambiente urbano, construído com base na observação do cotidiano e sob a influência da literatura francesa, especialmente do livro L’assommoir [A taberna], de 1877, do francês Émile Zola (1840-1902), criador, na Europa, da corrente naturalista, da qual Azevedo é seguidor. 

Na história contada pelo autor brasileiro, um muro separa dois núcleos que estão em permanente conflito. De um lado fica o sobrado da abastada família do comerciante Miranda. Na outra ponta, um agitado cortiço, com seus moradores pobres capitaneados pelo vendeiro português João Romão, amante da escrava Bertoleza. Nesse cenário, a “gente graúda” é composta de ricos estrangeiros da elite social: ingleses financistas, franceses do comércio de luxo da Rua do Ouvidor e portugueses atacadistas, como Miranda e João Romão (este na segunda fase da vida), protagonistas da história e concorrentes. Já a “gente miúda” é formada por pessoas com os mais variados matizes de pele, brasileiras e estrangeiras, identificadas quase sempre com estereótipos negativos, como barulho e sujeira.  

O cortiço é o primeiro romance brasileiro em que determinados tipos sociais são representados sem artifícios ou idealizações. Figuras como a do imigrante italiano, a do capoeira e as dos trabalhadores das ruas aparecem em situações bem reais, compatíveis com suas atividades e modos de viver de cada grupo naquele momento, em imagens sempre integradas à expansão da própria capital carioca. Os bandos de capoeiristas são apresentados com suas práticas e rixas, bem como os vendedores ambulantes, com destaque para o leiteiro, acompanhado de sua vaca, seguida por um bezerro amordaçado. Também são vistos os açougueiros com seus tabuleiros de carne fresca e outros mais. 

Ao mesmo tempo em que contrapõe os grupos sociais, a narrativa transforma a cidade no abrigo dessas diferenças entre ricos e pobres. Aliás, o modo como o ambiente urbano do período é retratado torna a história atraente e inteligível até para os leitores atuais. 
Nesse percurso, o Centro do Rio de Janeiro, com seu comércio elegante, é o local onde residem os profissionais bem-sucedidos, embora outros arrabaldes já estivessem crescendo para receber a elite. Miranda, por exemplo, transfere sua moradia da Rua do Hospício (hoje Rua Buenos Aires) para o bairro de Botafogo, um dos lugares mais procurados pelas famílias mais ricas durante o Segundo Reinado (1840-1889). Repleta de jardins, chácaras e mansões luxuosas, a região abrigava – e ainda abriga – o Palácio do Catete, construído em 1862 pelo barão de Nova Friburgo, e o Palácio Guanabara, que foi residência da herdeira do trono, a princesa Isabel.

Os palacetes exigiam empregados e fornecedores, que acabavam se instalando nas áreas menos valorizadas da região, como as imediações do Cemitério São João Batista, inaugurado em 1852. Em geral, essas pessoas ocupavam as infectas habitações coletivas para populações de baixa renda, anteriores às atuais favelas. Conhecidas como casas de cômodos, cortiços ou avenidas, eram verdadeiras colmeias humanas que concentravam cerca de 10% da população do Rio de Janeiro por volta de 1888. João Romão era dono de uma dessas áreas residenciais. Começou com uma casinha de duas portas em Botafogo que, aos poucos, atingiu 95 moradas da “Estalagem de São Romão”. Mais tarde, construiu a “Avenida São Romão”, formada por prédios de dois pavimentos que abrigavam centenas de casas pequenas. E ainda se tornou proprietário de lavanderias, pedreira, hortas, jardins, da casa de pasto mais famosa do bairro, de bazar variado e armazém com gêneros importados da Europa. 

O cortiço ocupava um enorme quadrilátero, cuja frente murada dava para a rua e era ocupada pela loja comercial e pelos aposentos do dono do estabelecimento. Em direção aos fundos do terreno, encontravam-se as moradias à esquerda e, mais além, uma imensa pedreira com seus profissionais, ferramentas e ruídos. No pátio interno ficavam as bicas de água e as tinas para lavar roupa. Não raro havia desentendimentos entre moradores e provocações entre a gente do cortiço e os vizinhos do sobrado. Naquela área vazia, todos eram obrigados a conviver e a disputar seu lugar, tanto para o trabalho quanto para o prazer ou a simples sobrevivência. Mas acabavam por se unir à força diante de um perigo maior, como um incêndio, a presença da polícia e a entrada de inimigos vindos de outros cortiços rivais.  

Ainda que vizinhos, ricos e pobres não sobreviviam da mesma maneira. Quem morava no cortiço trabalhava todos os dias em atividades pesadas – na pedreira, na tina de roupa, na loja. Quando doentes e acidentados, buscavam cuidados médicos em hospitais como o da Misericórdia ou em alguma irmandade católica. No romance, nota-se isto por meio do personagem Jerônimo. Este imigrante português, de início um ajuizadíssimo trabalhador na pedreira de João Romão, acabou decaindo moralmente e certa vez meteu-se numa luta corpo a corpo com o capoeira Firmo na disputa pela vizinha Rita Baiana. Foi quando recebeu uma navalhada, da qual convalesceu na irmandade de São Francisco. Já Bertoleza só conseguia realizar seus abortos com as ervas da lavadeira Paula, mais conhecida como Bruxa. 

Como suas moradas eram minúsculas, quase tudo acontecia ao ar livre: tarefas profissionais, comilanças de domingo, pequenos prazeres, brigas. Sem transportes coletivos, a opção era morar perto do trabalho, considerado uma “obrigação”, e se locomover a pé pela cidade. Depois de recuperado, Jerônimo e seus comparsas assassinam o capoeirista rival e cruzam várias ruas do bairro para fugir da cena do crime. Passaram pelas ruas Sorocaba, Bambina, São Clemente e a Travessa da Passagem, alcançaram a Praia de Botafogo e rumaram para o Centro da cidade. No caminho, ainda atravessaram os bairros do Catete, da Glória e da Lapa.

Bem diferente era a vida da gente abastada do sobrado. Sempre com ótima saúde, todos gozavam de folgas permanentes. Miranda dirigia um estabelecimento comercial e já havia conseguido seu título de barão. João Romão, depois que se tornou capitalista, deixou a administração do escritório para circular nos meios financeiros, especular na Bolsa e fazer grandes transações comerciais. Com a casa sempre cheia de agregados, hóspedes, afilhados, protegidos e criados, a intensa vida social se passava em ambientes fechados, das pequenas reuniões às grandes recepções. Dispondo de carruagens ou de bonde para chegar à elegante Rua do Ouvidor ou ao Largo da Carioca, as mulheres também se divertiam com visitas e compras, enquanto os homens preferiam sair com as “cocotas” de luxo, às vezes estrangeiras, como a francesa Léonie. 

Os dois grupos contrastavam ainda na organização da família. Nas camadas populares, as uniões, multirraciais ou não, acabavam e recomeçavam sem muitas formalidades. O parceiro simplesmente ia embora. Ou, então, bastava gostar de alguém para não só morar junto como, se fosse o caso, também realizar um casamento oficial – situação do casal formado pelo policial negro Alexandre e a lavadeira branca Augusta.  A simples união informal foi a escolha de Rita Baiana: ao se cansar do capoeirista Firmo, simplesmente o abandonou e passou a viver com Jerônimo, que também abandonou a esposa, Piedade.

Já entre a elite branca, os rituais eram seguidos à risca: enxoval, noivado, casamento. O matrimônio era decidido exclusivamente pelos homens, como acontece com João Romão depois que sobe na vida, pois ele decide seu casamento com a filha de Miranda em negociações com o pai dela, sem se preocupar em consultá-la. A união matrimonial estava fundada em interesses econômicos e patrimoniais, sendo, portanto, indissolúvel. O que importava era manter as aparências, mesmo em caso de adultério. É o caso de Miranda, que fingia ignorar os casos de traição de sua esposa com seus empregados para não se separar dela, porque isto o obrigaria a devolver o dinheiro do dote de casamento. Para evitar o falatório, prefere mudar para um bairro mais distante da sua loja.

O uso do espaço urbano pelos personagens de O cortiço permite reconhecer a obra de Aluísio Azevedo como um romance especificamente carioca. A preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo, fornece um painel da cidade e da sociedade em momento de intensa transformação. Pouco a pouco, os contrastes entre casa-grande e senzala foram dando lugar às diferenças entre sobrado e cortiço. Com sua detalhada pesquisa, Azevedo acabou produzindo um verdadeiro documentário sobre a cidade do Rio de Janeiro, um passeio através do trabalho, da moradia e do lazer de seus habitantes. Da elite ao povo.  

LIGIA VASSALLO É PROFESSORA DA UFRJ E AUTORA DE “TRABALHO E LAZER N’O CORTIÇO”. IN REVISTA DA BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE, N° 57. SÃO PAULO: 1999, PP. 107-115

Saiba Mais - Bibliografia

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1983.  
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos, um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
CANDIDO, Antonio. “De cortiço a cortiço”. In O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. pp. 123-152.
COUTINHO, Afrânio (org). A literatura no Brasil, volume 3. Realismo, Naturalismo, Parnasianismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editorial Sul-Americana, 1962. 
LOBO, Eulália. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, 1987.
ROCHA, Oswaldo Porto e CARVALHO, Lia de Aquino. A era das demolições, habitações populares. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1990.


Aleijadinho

Nas pistas do barroco


Aleijadinho deixou marcas nas ruas, nas igrejas e no imaginário dos católicos


Vivi Fernandes de Lima


Um risco na madeira pode passar despercebido para muitos desavisados. Mas quando ele inscreve as letras “AFL” na peça de um altar mineiro, causa surpresa. Foi assim que restauradores que trabalhavam na Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Nova Lima, reagiram quando se depararam com uma novidade que estava escondida desde o século XVIII: as iniciais de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, no fundo da parte interna do sacrário de um retábulo (altar lateral). A coordenadora do projeto de restauração realizado pela Escola de Belas Artes da UFMG, Bethania Veloso, explica o motivo da surpresa: “Eu nunca soube de inscrições desse tipo na obra de Aleijadinho”.


A descoberta é mais um elemento que aguça a curiosidade de quem contempla a obra, mas, infelizmente, não poderá ser observada pelos visitantes. “É uma inscrição feita na parte interna de um trabalho de Aleijadinho, ou seja, não foi feita para ser vista pelo público”, afirma Bethania. A recuperação, finalizada na última semana de novembro, inclui três retábulos de oito metros de altura e o altar-mor, com 15 metros. Trata-se de um dos maiores conjuntos de esculturas em madeira de Aleijadinho, o mestre do barroco brasileiro. Enquanto visitam a igreja, fiéis contemplam as imagens, chegando a tocá-las, como quem faz um contato direto com Deus. A cena não é um caso isolado; ela é repetida em outras cidades que têm obras de Antônio Francisco Lisboa, como Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, Congonhas, Santa Rita Durão, Barão de Cocais, Caeté, Sabará, São João Del Rei, Catas Altas, Santa Luzia e Raposos. 

Em Ouro Preto, o pintor e pesquisador José Efigênio Pinto Coelho é capaz de sintetizar a importância da obra do artífice em sua vida: “Aleijadinho fez a cara do meu Deus”. Mais do que confirmar a combinação entre arte e religiosidade, seu depoimento mostra o quanto a obra de seu conterrâneo famoso faz parte da cultura da cidade. “É para aquele Cristo com olhos puxados que eu ajoelho e rezo. Quando fui à Europa, vi que o meu Deus não tem a cara das esculturas que estão naquelas igrejas. Não tenho fé naquele barbudão europeu com cara de visigodo. O meu Deus tem cara de barroco mineiro”, confessa Efigênio. 

O pintor pesquisa o legado de Aleijadinho há mais de 40 anos. Ainda criança, como a maioria dos meninos ouropretanos, sabia da importância do artista pelo valor que turistas davam a suas peças. Hoje não é diferente: a popularidade do escultor continua movimentando as cidades históricas mineiras. Ouro Preto, onde a atenção dos visitantes se divide entre Aleijadinho e inconfidentes, recebe cerca de 500 mil turistas por ano. Em Congonhas, onde estão os 12 profetas e os Passos da Paixão, a média é de 64 mil. Este número deve aumentar em 2012, ano previsto para a inauguração do Memorial Congonhas – Centro de Referência do Barroco e Estudos da Pedra, projeto lançado em novembro pelo Iphan, pela prefeitura e pela Unesco. 

O artista barroco é uma referência para estrangeiros e moradores, em especial para artesãos e guias de turismo. Gabriel William Lopes Silva, o Biel, 23 anos, faz esculturas em cedro. Nas paredes de seu ateliê, em Mariana, estão peças que remetem às de Aleijadinho. “Tenho que ter sempre esses anjinhos. Os turistas procuram muito”, diz o artesão, que cobra R$ 1.200 por três anjos emoldurados. Na mesma cidade, o guia de turismo Márcio Bento Alves, 53 anos, exerce a profissão desde os 10 anos. Criou seus cinco filhos com o que recebe de turistas que vão à cidade procurando pelas obras de Aleijadinho. Na alta temporada, chega a tirar uma renda mensal em torno de R$ 3.500,00.

A feira de artesanato de Ouro Preto tem movimento todos os dias. Miniaturas de igrejas, anjos e porta-retratos são feitos em pedra-sabão, matéria-prima popularizada por Aleijadinho. Enquanto atendem os fregueses, os artesãos manuseiam o formão com desenvoltura, um ofício que é passado de geração em geração. Para o prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, a tradição do entalhe na madeira e na pedra-sabão pode ser associada à raiz barroca de Minas Gerais. “O artista mineiro tem sempre alguma referência barroca que alimenta seu trabalho. Aqui, especialmente nesse universo da arte em pedra-sabão, Aleijadinho é uma baliza”, diz o prefeito.

Em pedra ou em cedro, a produção do artífice resultou em projetos arquitetônicos, esculturas devocionais e ornamentos que apresentam o que os pesquisadores chamam de estilemas, ou seja, sinais que se repetem nas obras. Olhos amendoados, cabelos cacheados, nariz estreito, fino e longo e boca entreaberta são algumas dessas marcas. O pesquisador Márcio Jardim, autor de Aleijadinho – Catálogo geral da obra, relaciona a existência de 27 sinais. 
                O desenvolvimento artístico do escultor pode ser classificado em fases diferentes de sua vida. Jardim divide suas etapas produtivas em cinco: mocidade (1755 a 1760), maturidade inicial (1761 a 1770), maturidade média (1771 a 1780), maturidade plena (1781 a 1790) e máxima, ou fase de Congonhas (1791 a 1812). Já Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, professora de História e Teoria da Arte da UFRJ e conselheira consultiva do Iphan, faz a divisão em três etapas: as obras iniciais integrariam o período entre 1760 e 1774, a maturidade iria até cerca de 1790 e uma terceira fase, até 1812. 

A diferença de pontos de vista entre pesquisadores dedicados ao tema é uma amostra do quanto é difícil reconhecer a autoria das obras. Assim como outros artífices de sua geração, Antônio Francisco Lisboa não assinava seus trabalhos. Myriam Andrade garante que atribuições a Aleijadinho e a outros artistas de épocas passadas exige conhecimentos específicos – análises técnicas, iconográfica e formal – que são dados nos cursos universitários de História da Arte. “Mas também é necessária muita prática para treinamento do olhar, o que só se consegue ao longo dos anos”, diz a especialista, co-autora de O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo de esculturas devocionais, entre outros títulos sobre o mesmo tema.

Márcio Jardim enumera 425 obras em seus estudos. Para 2010, ele planeja lançar outro livro com mais 45 trabalhos que considera serem do mestre barroco, incluindo peças de 10 novas coleções particulares. Como a maioria das encomendas feitas a Aleijadinho não era acompanhada de recibo – ou, pelo menos, nem todos foram encontrados –, a responsabilidade dos pesquisadores aumenta. Mas esse não é o único “porém”: há quem duvide da documentação existente. “Quando há um recibo de pagamento emitido pela irmandade, por exemplo, normalmente ninguém discute. Mas esse registro pode não ser suficiente, porque naquela época, assim como hoje, havia ‘terceirização’ nas empreitadas”, diz Jardim.

Se o reconhecimento das obras já indica contradições mesmo quando há escritos da época, a vida de Aleijadinho não fica atrás nesse universo de interrogações. A começar pela data de nascimento: seu batismo, realizado na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto, apresenta o ano de 1730, mas a certidão de óbito diz que foi em 1738. A paternidade também destoa: é o nome de Manoel Francisco da Costa que aparece no batismo, e não o do arquiteto Manuel Francisco Lisboa, que é popularmente reconhecido como o pai. Quanto à doença, em 1964, a Associação Médica de Minas Gerais chegou a discutir a enfermidade do artífice. Hanseníase, escorbuto, acidente vascular cerebral e sífilis foram alguns dos diagnósticos apontados. E se ele era mesmo tão doente, como conseguiu se locomover por diversas cidades mineiras? Para isso contava com escravos – “artigos” de luxo – que o carregavam. Então, por que será que ele morreu pobre? Para responder a essas perguntas, pesquisadores se embrenharam em leituras e observações de suas obras que resultaram em diversos livros. Hoje, as grandes livrarias têm em média 15 títulos sobre Aleijadinho. 

O primeiro escrito que tentou responder a essas questões foi a biografia Traços biográficos relativos ao finado Antonio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho, assinada por Rodrigo José Ferreira Bretas (1814-1866), em 1858. Publicado no Correio Oficial de Minas, de Ouro Preto, o texto foi também o ponto de partida para esclarecer a autoria das obras atribuídas a Aleijadinho. Rodrigo Melo Franco de Andrade, primeiro diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, atual Iphan) e neto de Bretas, escreveu em 1938 sobre o tema, recorrendo a esse estudo. Seu artigo já aponta, no primeiro parágrafo, a existência de questionamentos sobre o artista: “Quando Rodrigo Bretas escrevia sobre Aleijadinho (…) não suspeitava que a autoria das obras que ele atribuía a Antônio Francisco Lisboa viesse a ser algum dia controvertida. Caso lhe ocorresse essa possibilidade, não lhe teria sido muito difícil comprovar as suas asserções, pois abundavam certamente àquele tempo os meios de que precisasse no sentido de documentá-las”.

O artigo de Melo Franco foi uma das iniciativas do Sphan para comprovar as atribuições dadas a Aleijadinho. A instituição – que também tinha Lúcio Costa como incentivador – mobilizou-se enviando assistentes técnicos às cidades mineiras. Os profissionais vasculharam arquivos de irmandades, igrejas e Câmaras, encontrando documentos como recibos, contratos de serviços, despesas com obras, comprovando em vários casos a autoria do artista. Numa coisa todos os pesquisadores concordam: Aleijadinho tinha uma oficina, e como todo grande artista, tinha auxiliares.

O texto de Bretas se tornou alvo de questionamentos por ocasião da criação do Sphan. O primeiro “tiro” saiu do historiador mineiro Augusto de Lima Júnior (1889-1970) – autor de diversas obras, entre elas O Aleijadinho e a arte colonial –, que combatia as iniciativas de Melo Franco para a preservação das obras e proteção dos documentos históricos referentes a Aleijadinho. Os bastidores das discussões entre os dois intelectuais são confirmados pelo prefeito de Ouro Preto, Ângelo Oswaldo, que chegou a dirigir o Iphan de 1985 a 1987. Segundo ele, o desentendimento foi de natureza ideológica, com alguns traços de personalismo da parte de Lima Júnior. “Ele gostaria de ter sido diretor do Iphan. Por isso começou a atribuir a valorização de Aleijadinho a uma mera arrogância de Melo Franco, que queria valorizar a memória do avô, Rodrigo Bretas. Mas Melo Franco foi um homem de profunda acuidade na leitura de obras de arte e documentação histórica”.

O reconhecimento do artífice como gênio nacional ganhou força com o Modernismo, que buscava as raízes da cultura brasileira. O fato de Aleijadinho ter sido mulato – filho de pai português e mãe escrava – foi, para Mário de Andrade, um dos motivos apontados para o seu esquecimento. “A minha convicção é que o grande arquiteto mineiro foi o maior gênio artístico que o Brasil produziu até hoje. Mas por muitas fatalidades e muita incúria, o nome dele permanece vago na consciência nacional dos brasileiros”, dizia o modernista em artigo publicado em 1928. 

O dito popular “santo de casa não faz milagre” também estava presente nos argumentos de Mário de Andrade: “Só nos compreendemos quando os estranhos nos aceitam”. De fato, depois que o francês Germain Bazin publicou o livro O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil, em 1963, aumentou o interesse de colecionadores pelas obras do artista. Guiomar de Grammont, professora de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e autora do livro Aleijadinho e o aeroplano – o paraíso barroco e a construção do herói colonial, confirma esse fato: “Depois de Germain Bazin, a figura de Aleijadinho se tornou tão conhecida no mundo que todas as cidades mineiras e museus de arte colonial passaram a ter interesse em possuir uma obra desse artista”.

O livro de Guiomar foi resultado de cinco anos de pesquisa para a tese de doutorado em Literatura defendida na USP em 2002. “A maior parte dos historiadores tomou como verdade absoluta a primeira biografia (de Bretas), escrita para um concurso instituído no século XIX pelo IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro). Analisei os documentos e a biografia separadamente, tomando-a como um documento literário, dentro da concepção romântica do século XIX. A vida que o personagem teria tido, porém, segundo os documentos históricos, é muito mais simples e prosaica”, diz a autora.

Suas constatações provocaram incômodos a historiadores de arte colonial, como a própria escritora ressalta: “Eles haviam passado a vida toda estudando o tema a partir de conceitos como originalidade, estilo e autoria, que o livro mostra serem apenas concepções históricas, passíveis de mudança no tempo e no espaço, e não essências universais”. 

Frederico Birchal de Magalhães Gomes não é historiador, e sim engenheiro aposentado. Mas como cresceu nas cidades de Ouro Preto e Mariana, ficou surpreso com o estudo de Guiomar, que afirma ser a biografia de Bretas “um texto para agradar ao IHGB”, contendo aspectos fantasiosos. “O Iphan republicou a biografia acrescida de 83 notas que basicamente comprovam a veracidade da maioria das informações de Bretas. Foi esta pesquisa que deu grande credibilidade à obra, mostrando que ele foi um pesquisador consciencioso na consulta aos documentos disponíveis da época”, diz Gomes.

A autora considera um absurdo Aleijadinho ter executado todas as obras que lhe foram atribuídas: “Como sempre, é no texto de Rodrigo Ferreira Bretas que o exagero principia”. Com relação a essa questão, Márcio Jardim é enfático: “É preciso levar em conta que Aleijadinho viveu 84 anos e era mulato. Ele não tinha acesso a serviço público. Se ele ficasse um dia sem trabalhar, não recebia por aquele dia. Também não havia aposentadoria, ele tinha que trabalhar o tempo todo. Ele e seus auxiliares”.

As polêmicas em torno da vida e da obra de Aleijadinho não param nestas páginas. Cada olhar para uma escultura pode gerar novas perguntas. Por que será que aquele anjo do frontispício da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto é careca? Turistas, moradores e esta repórter perguntam, mas os livros não respondem. Ainda.

Para amenizar as polêmicas, é possível recorrer àquele que parece ter sido o ponto de partida de todas essas discussões, o texto de Bretas: “Desde que um indivíduo qualquer se torna célebre e admirável em qualquer gênero, há quem, amante do maravilhoso, exagere indefinidamente o que nele há de extraordinário, e das exagerações que se vão sucedendo e acumulando chega-se a compor finalmente uma entidade verdadeiramente ideal. É isto o que, pode-se dizê-lo, até certo ponto aconteceu a Antônio Francisco”.

Saiba Mais - Bibliografia
BANDEIRA, Manuel. Guia de Ouro Preto. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.

Saiba Mais - Internet
Reprodução da primeira biografia de Aleijadinho, escrita por Rodrigo José Ferreira Bretãs, em www.siaapm.cultura.mg.gov.br


As perseguidas


Ora lascivas, ora virtuosas, as mulheres foram estereotipadas nos romances filosóficos do século XVIII


Renato Sena Marques


Seres tomados por paixões, as mulheres não raciocinavam com a cabeça, e sim com a genitália. Pelo menos era nisso que acreditava o filósofo Denis Diderot (1713-1784), que ainda emendava: as mulheres estariam tão submetidas a seus impulsos que suas almas – se é que mulher possuía alguma – estariam em suas vaginas. Em seus escritos, ele chamava a genitália feminina, “carinhosamente”, de “joia”: “Acho que a joia leva uma mulher a fazer mil coisas sem que ela perceba. Já reparei, mais de uma vez, que uma mulher que pensava estar seguindo sua cabeça, na verdade estava obedecendo à sua joia. Um grande filósofo situava a alma masculina no cérebro. Se eu atribuísse às mulheres uma alma, sei onde a situaria.”  

Diderot não foi o único a pensar na mulher desta forma. Boa parte dos “romances filosóficos” concebia suas personagens femininas como “emocionalmente desequilibradas” e “irascíveis em suas paixões”, mais propensas a caírem, inclusive, em um desregramento sexual. A origem desses romances, no século XVIII, está relacionada ao Iluminismo. Alguns filósofos da chamada “Época das Luzes” tentaram responder a perguntas sobre uma possível natureza feminina. Afinal, o que se vê nas mulheres que não é possível ver nos homens? Existe uma superioridade masculina com relação ao controle dos sentimentos? Quais seriam, então, os “atributos” de uma “mulher virtuosa”? Em diferentes oportunidades, os pensadores responderam a suas inquietações por meio dos chamados “romances filosóficos”.

Além de Diderot, Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778) e Crebillon Fils (1707-1777) fizeram dos romances importantes veículos para a divulgação das ideias e dos ideais iluministas, que criticavam a sociedade hierarquizada e a Igreja Católica. Talvez tenha sido esse um dos motivos que levaram os romances a ser tão perseguidos pela censura portuguesa no século XVIII.

Mas as Luzes – e, consequentemente, os romances – não se preocuparam apenas em avaliar e ironizar o trono e o clero. É certo que entre os temas mais abordados pelas narrativas também apareceu, de forma recorrente, a questão do feminino. Não teria sido fortuito, por exemplo, o fato de que vários romances, logo em seus títulos, já fizessem menção ao “belo sexo”. Foi o caso dos romances Teresa Filósofa (1749), de Jean-Baptiste de Boyer, o marquês d’Argens (1704-1771), A Religiosa (1760), de Denis Diderot, Júlia ou A Nova Heloísa (1761), de Rousseau, e A Princesa de Babilônia (1768), de Voltaire.

Duas fases marcaram as opiniões dos “romances filosóficos” sobre as mulheres. Em uma fase inicial – na primeira metade do século XVIII –, as mulheres foram descritas de forma bastante pejorativa, quase sempre relacionadas a “paixões”. Mas as mulheres não eram descritas como possuidoras de uma paixão que, bem moderada, incentivava as pessoas a cumprir seus objetivos. Não! Elas eram associadas a uma “má paixão”, descontrolada, sem limites. Em suma: uma paixão que transformava os seres humanos em criaturas quase irracionais.

Essa imagem lasciva da mulher teve importantes consequências na caracterização das personagens dos romances. Em geral, as heroínas da primeira metade do século XVIII possuíam características físicas e psicológicas – juventude, beleza e voluptuosidade – que as inclinavam “naturalmente” a viver suas paixões. Jovens, as personagens representavam uma dupla imagem: a da mulher a ser deflorada e a da menina que começava a ser impelida ao sexo por seus próprios sentidos – situação vivida, por exemplo, pela personagem Teresa, do romance Teresa Filósofa. Bonitas, elas seriam sempre desejadas e convidadas a viver suas paixões. Manon Lescaut, a sensual protagonista de A História do Cavalheiro Des Grieux e Manon Lescaut (1731), escrita pelo abade Prévost (1697-1763), é um exemplo lapidar. Voluptuosas, as mulheres estariam constantemente com suas paixões afloradas, como Fatmé, coadjuvante de Cartas Persas,romance de Montesquieu publicado em 1721 e proibido pela censura portuguesa em 1771.

Nessa obra, as “mulheres orientais” são descritas por Montesquieu como seres tão desejosos de sexo que, para não se “perderem”, deveriam ser trancafiadas e vigiadas, dia e noite, por eunucos. Vistas como lúbricas ao extremo, estas infelizes prisioneiras não conseguiam suportar – literalmente – a ausência do falo masculino. Somente por meio dele suas “paixões” poderiam ser temporariamente saciadas. Fatmé, ao longo de todo o romance, ilustrou bem este discurso. Presa em um serralho e distante de Usbek, seu “senhor”, ela lamentava não poder saciar os desejos que tanto a castigavam. Sofrendo com os ataques de suas paixões, Fatmé oscilava entre a resignação – a fidelidade a Usbek – e o desespero – o anseio incontrolável por sexo. Até que, no limite de sua resistência, desabafa, com rara franqueza, em carta a Usbek: “Como é infeliz a mulher que tem desejos tão violentos quando está privada do único meio de saciá-los; quando abandonada a si mesma, nada tendo que a possa distrair, ela tem de habituar-se aos suspiros e viver no furor de uma paixão irritada”.  

"Le Déjeuner", de François Boucher, as mulheres são retratadas como mães e figuras sacralizadas no ambiente familiar. Matrimônio e maternidade exigiam postura mais equilibrada das mulheres.

Se havia interesse pela juventude e pela voluptuosidade, o mesmo não se pode dizer sobre personagens que viessem a representar os papéis de esposas e mães. Pouquíssimas obras, entre 1721 a 1760, apresentavam esse perfil. A razão parece óbvia: maternidade e matrimônio exigiam uma postura mais equilibrada das mulheres. E, definitivamente, os romances da primeira metade do século XVIII não viam, nem queriam ver, o feminino de tal forma. Interessavam-se mais pelas mulheres apaixonadas. Afinal, na opinião manifestada em alguns romances, eram as que melhor representavam a tão discutida e controvertida “natureza feminina”. Além disso, tais personagens seriam, segundo os escritores do período, mais interessantes para o público leitor. Sendo loucas em suas paixões, a possibilidade de as heroínas se envolverem em cenas lascivas seria bastante considerável. E entre ver esposas cuidando de seus afazeres domésticos e bisbilhotar belas jovens se entregando ao sexo, havia os que preferiam esta última opção.

Uma alternativa que agradava aos leitores deveria desagradar, e muito, aos censores portugueses. Basta lembrar que boa parte dos romances proibidos foi de obras escritas e publicadas na primeira metade do século XVIII. Boa parte, mas não a totalidade. A censura portuguesa também proibiu um número considerável de obras lançadas após 1750. Dentre elas estava Júlia ou A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, proibida pelo Edital da Real Mesa Censória em 24 de setembro de 1770. Uma proibição que – pensando especificamente no feminino – chega a surpreender. Sob vários aspectos, a obra proibida de Rousseau se alinhava às opiniões de uma moral religiosa que era apregoada às mulheres e que os tribunais censórios portugueses tanto defendiam. Muito antes de corromper e ridicularizar valores como a virgindade, o casamento, a fidelidade conjugal, o “dever” da mulher de ser obediente ao homem – primeiro ao pai, depois ao marido – e o zelo materno, temas caros à religião católica, A Nova Heloísa osdefendeu de forma explícita.

Romance epistolar, com narrativa desenvolvida a partir de cartas trocadas entre os personagens, A Nova Heloísamarcou outro momento dos “romances filosóficos”, com novas opiniões sobre o feminino. Nele, as mulheres não foram descritas apenas pelo ângulo das “paixões”. O “belo sexo” passava a ser relacionado também a uma ideia de virtude, que estava estreitamente ligada a três pilares: à virgindade na juventude – afinal, “o amor nas moças é indecente e escandaloso e apenas um esposo autorizaria um amante” –, ao matrimônio e à maternidade. Segundo Rousseau, quando adulta, a mulher deveria saber qual é o seu lugar. A “mulher virtuosa” seria a esposa casta e submissa e a mãe que prepara os filhos para serem educados pelos homens: “Mas há um longo caminho dos seis anos aos 20; meu filho não será sempre criança e, à medida que sua razão comece a nascer, a intenção de seu pai é de realmente a deixar exercer. Quanto a mim, minha missão não vai até lá. Alimento crianças e não tenho a presunção de querer formar homens. Espero, disse, olhando seu marido, que mãos mais dignas se encarregarão desse trabalho. Sou mulher e mãe, sei manter-me em meu lugar. Ainda uma vez, a função de que estou encarregada não é a de educar meus filhos, mas de prepará-los para serem educados”.

Essas opiniões novamente se refletiram na caracterização das próprias personagens. Se nos romances anteriores à obra de Rousseau as heroínas não foram pensadas para viver a maternidade e o matrimônio, e sim para deixarem transparecer “os efeitos das paixões”, na Nova Heloísa a situação se inverte. Neste romance, as personagens estão envolvidas com suas futuras obrigações de mãe e esposa durante quase toda a narrativa.

De Montesquieu a Rousseau, os “romances filosóficos” estiveram longe de propagandear uma emancipação feminina. Suas personagens bem demonstraram isso. Apaixonadas ou virtuosas, as mulheres foram sempre vistas nas obras como seres inferiores aos homens, tanto em sua capacidade psicológica quanto nos seus direitos perante a sociedade. A situação era bem difícil: se ousassem expor seus sentimentos, seriam encaradas como escravas de suas paixões. Se optassem por não abraçar a maternidade e o matrimônio, estariam se afastando da virtude. Mas, apesar de tanta resistência, as mulheres, mesmo vivendo em tal contexto, conquistaram importantes avanços. E continuam conquistando. Apaixonadas e virtuosas.     

Renato Sena Marques é autor da dissertação “O Discurso Iluminista sobre as Mulheres: paixões, “funções” e virtudes femininas em personagens de romances”(UFJF, 2011).  

 

SAIBA MAIS - Bibliografia

 

BADINTER, Elisabeth. Émilie, Émilie – A ambição feminina no século XVIII (Paz e Terra, 2003).

CASNABET, Michèle Crampe. “A mulher no pensamento filosófico do século XVIII”. (Tradução de Maria Carvalho Torres). In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle (orgs). História das mulheres no Ocidente,vol. 3. Porto: Edições Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1990.

MATOS, Luiz F. Franklin. “Livre gozo e Livre exame. Ensaios sobre a obra Les Bijoux Indiscrets, de Diderot”. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

RIBEIRO, Renato Janine. “Literatura e Erotismo no Século XVIII francês. O caso de Teresa Filósofa”. In: NOVAES, Adauto (org). Libertinos Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

VILLALTA, Luiz Carlos. “Bibliotecasprivadas epráticasdeleituranoBrasilcolonial”. In: www. caminhosdoromance.iel.unicamp.br

Todos contra o Paraguai

A guerra mais sangrenta da América do Sul teve um roteiro digno de uma odisseia. Resultado: dezenas de milhares de vítimas


Leslie Bethell

Tudo começou no Uruguai, com uma rebelião dos colorados (liberais) em abril de 1863, encabeçada pelo general Venâncio Flores, pela derrubada do governo dos blancos (conservadores) eleito em 1860. O conflito desencadeou a sequência dos acontecimentos que levaram à Guerra do Paraguai.

A Argentina e o Brasil apoiaram a rebelião colorada – era a primeira vez que os dois países estavam do mesmo lado num conflito uruguaio. O presidente argentino, Bartolomeu Mitre, um liberal eleito em outubro de 1862, tomou essa posição porque os colorados tinham lhe dado apoio na guerra civil de seu país em 1861 e porque os blancos constituíam um foco possível de oposição federalista residual nas províncias litorâneas à república argentina, recém-unificada. Para o Império do Brasil, a questão principal era proteger os interesses dos brasileiros que viviam e tinham propriedades no Uruguai, ameaçados pela rigidez das autoridades daquele Estado sobre o comércio da fronteira e as taxas aduaneiras. Foi nesse contexto que o governo blanco se voltou para o Paraguai como único aliado possível.

Na litografia, a partida das primeiras brigadas do Exército brasileiro de Ouro Preto para Mato Grosso. Era a resposta à ofensiva paraguaia na região, no final de 1864.

Na litografia, a partida das primeiras brigadas do Exército brasileiro de Ouro Preto para Mato Grosso. Era a resposta à ofensiva paraguaia na região, no final de 1864.

Mas o Paraguai temia e desconfiava de seus vizinhos muito maiores, muito mais povoados e potencialmente predatórios: as Províncias Unidas do Rio da Prata e o Brasil. Ambos tinham relutado em aceitar a independência paraguaia e demoraram a reconhecê-la: o Brasil em 1844, as Províncias Unidas em 1852. Ambos tinham reivindicações territoriais contra o Paraguai: o Brasil, no extremo nordeste do país, na divisa com Mato Grosso, região valiosa pela erva-mate nativa; a Argentina, no leste do Rio Paraná (Misiones), mas também a oeste do Rio Paraguai (o Chaco). E havia ainda atritos com ambos quanto à livre navegação no sistema fluvial Paraguai-Paraná.

O presidente do Paraguai, Francisco Solano López, a quem o governo uruguaio procurara para obter apoio em julho de 1863, tinha chegado ao poder em outubro de 1862, após a morte de seu pai, o ditador Carlos Antonio, que governara o país desde 1844. De início, ele hesitou em fazer uma aliança formal com os blancos, seus aliados naturais, contra os colorados no Uruguai, agora que estes tinham o apoio do Brasil e da Argentina. Mas, no segundo semestre de 1863, Solano López viu a oportunidade de mostrar sua presença na região e de desempenhar um papel compatível com o novo poder econômico e militar do Paraguai. No começo de 1864, ele começou a mobilização para uma possível guerra.

Quando o Brasil lançou um ultimato ao governo uruguaio em agosto do mesmo ano, ameaçando retaliar os supostos abusos sofridos por súditos brasileiros, Solano López reagiu com um ultimato alertando o Brasil contra a intervenção militar. Ignorando o alerta, soldados brasileiros invadiram o Uruguai em 16 de outubro. Em 12 de novembro, após a captura de um vapor mercante brasileiro que saía de Asunción para Corumbá, levando o presidente de Mato Grosso a bordo, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Paraguai. Em 13 de dezembro, Solano López tomou a grave decisão de declarar guerra ao Brasil e invadiu Mato Grosso. Quando a Argentina negou autorização ao Exército paraguaio para atravessar Misiones – território disputado e quase despovoado – a fim de invadir o Rio Grande do Sul, Solano López também declarou-lhe guerra, em 18 de março de 1865, e no mês seguinte invadiu a província argentina de Corrientes.

A decisão de Solano López de declarar guerra primeiro ao Brasil e depois à Argentina, e de invadir os dois territórios, mostrou-se um grave erro de cálculo, que traria consequências trágicas para o povo do Paraguai. O mínimo que se pode dizer é que Solano López fez uma tremenda aposta – e perdeu. Ele superestimou o poderio econômico e militar do Paraguai. Subestimou o poderio militar potencial, se não efetivo, do Brasil, e sua disposição de lutar. E errou ao pensar que a Argentina ficaria neutra numa guerra entre o Paraguai e o Brasil em disputa pelo Uruguai.

A aquarela de José Washt Rodrigues, da década de 1920, retrata voluntários da pátria. Calcula-se que o Brasil mobilizou cerca de 140.000 homens durante a guerra.

A aquarela de José Washt Rodrigues, da década de 1920, retrata voluntários da pátria. Calcula-se que o Brasil mobilizou cerca de 140.000 homens durante a guerra.

A imprudência de Solano López resultou exatamente naquilo que mais ameaçava a segurança e até a existência do Paraguai: a união de seus dois vizinhos poderosos – na verdade, como Flores finalmente conseguira tomar o poder em Montevidéu em fevereiro de 1865, a união de seus três vizinhos – numa aliança em guerra contra ele. O Brasil e a Argentina não tinham qualquer atrito com o Paraguai que pudesse justificar uma guerra. Nenhum dos dois queria nem planejava uma guerra contra o Paraguai. Não havia pressão nem apoio público à guerra; de fato, a guerra geralmente era impopular nos dois países. Ao mesmo tempo, porém, não fizeram nenhum grande esforço para evitá-la. A necessidade de se defenderem contra a agressão paraguaia, por mais justificada ou provocada que fosse, oferecia ao Brasil e à Argentina a oportunidade não só de acertarem suas diferenças com o Paraguai no que se referia ao território e à navegação fluvial, como também de punir e enfraquecer, talvez destruir, uma incipiente potência possivelmente expansionista e problemática na região.

Os objetivos originais da guerra, tal como foram expostos no Tratado da Tríplice Aliança assinado pelo Brasil, pela Argentina e pelo Uruguai em 1o de maio de 1865, eram: a derrubada da ditadura de Solano López; livre navegação dos rios Paraguai e Paraná; anexação do território reivindicado pelo Brasil no nordeste do Paraguai e pela Argentina no leste e no oeste do Paraguai — esta última cláusula se manteve secreta até ser revelada pela Inglaterra em 1866. Com o desenrolar do conflito, tornou-se, em particular para o Brasil, uma guerra pela civilização e pela democracia contra a barbárie e a tirania: isso apesar do estranho fato de que o Brasil, após a libertação dos escravos nos Estados Unidos durante a Guerra Civil, agora era o único Estado independente de todas as Américas com a economia e a sociedade em bases escravistas, além de ser a única monarquia remanescente.

A Guerra do Paraguai não era inevitável. E nem era necessária. Mas só poderia ter sido evitada se o Brasil tivesse se mostrado menos categórico na defesa dos interesses de seus súditos no Uruguai, principalmente, se não tivesse feito uma intervenção militar em favor deles, se a Argentina tivesse se mantido neutra no conflito subsequente entre o Paraguai e o Brasil, e, sobretudo, se o Paraguai tivesse se conduzido com mais prudência, reconhecendo as realidades políticas da região e tentando defender seus interesses por meio da diplomacia, e não pelas armas. A guerra, que se estendeu por mais de cinco anos, foi a mais sangrenta da história da América Latina, e, na verdade, afora a Guerra da Crimeia (1854-1856), foi a mais sangrenta de todo o mundo entre o fim das Guerras Napoleônicas, em 1815, e a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Custou de 150.000 a 200.000 vidas (na maioria, paraguaios e brasileiros), no campo de batalha e por privações e doenças decorrentes da guerra.

Diante da enorme disparidade entre os dois lados, em termos de tamanho, riqueza e população, a Guerra do Paraguai deveria se afigurar desde o início uma luta desigual. Mas, militarmente, havia um maior equilíbrio. De fato, no início da guerra, e pelo menos durante o primeiro ano, o Paraguai provavelmente teve superioridade militar em termos numéricos. E provavelmente seu Exército era mais equipado e treinado do que os exércitos vizinhos. Além disso, como as forças paraguaias tinham sido expulsas do território argentino, a Argentina reduziu tanto sua contribuição para o esforço de guerra dos aliados que, no final da guerra, havia apenas cerca de 4.000 soldados argentinos em solo paraguaio. O Uruguai, por sua vez, teve presença apenas simbólica no teatro de operações durante todo o conflito. O Brasil, por outro lado, aumentou seu Exército regular – que tinha entre 17.000 e 20.000 – para 60.000 a 70.000 homens no primeiro ano das hostilidades, com recrutamento obrigatório, transferências da Guarda Nacional, alistamento de escravos de propriedade do Estado e alguns de propriedade particular (libertados em troca dos serviços na guerra) e a formação dos corpos de Voluntários da Pátria. Calcula-se que o Brasil mobilizou durante a guerra cerca de 140.000 homens. E, ao contrário do Paraguai, que dispunha apenas de seus próprios estaleiros e arsenais, o Brasil tinha acesso a armas, munições e navios de guerra, tanto fabricados e montados no país quanto comprados no exterior, principalmente na Europa, além de empréstimos obtidos na City de Londres para ajudar nesses pagamentos. Por fim, o Brasil tinha a Marinha mais forte e poderosa da região.

A guerra pode ser dividida em três fases. A primeira começou com as ofensivas paraguaias a Mato Grosso em dezembro de 1864 e a Corrientes em abril de 1865. Em maio de 1865, o Exército paraguaio finalmente atravessou Misiones e invadiu o Rio Grande do Sul. De início a invasão teve sucesso, mas depois foi contida pelas forças aliadas. No dia 14 de setembro, o comandante paraguaio, coronel Estigarribia, se rendeu aos aliados em Uruguaiana. O Exército paraguaio então se retirou, atravessando o Rio Paraná, e se preparou para defender a fronteira sul do país. Enquanto isso, em 11 de junho, na Batalha do Riachuelo, no Rio Paraná, a única grande batalha naval da guerra, a Marinha brasileira tinha destruído a Marinha paraguaia e criado um bloqueio cerrado ao Paraguai, que se manteve até o fim da guerra.

A segunda e principal fase do conflito começou quando os aliados finalmente invadiram o Paraguai, em abril de 1866, e instalaram seu quartel-general no Tuiuti, na confluência dos rios Paraná e Paraguai. Em 24 de maio, repeliram uma investida paraguaia e venceram a primeira grande batalha em terra. Mas os exércitos aliados demoraram mais de três meses até começarem a subir o Rio Paraguai. Em 12 de setembro, Solano López propôs concessões, inclusive territoriais, para terminar a guerra, desde que lhe fosse poupada a vida e o Paraguai não fosse totalmente desmembrado ou ocupado em caráter permanente, mas sua proposta foi rejeitada. Dez dias depois, em Curupaiti, ao sul de Humaitá, no Rio Paraguai, os aliados sofreram sua pior derrota. Não retomaram o avanço até julho de 1867, quando se iniciou uma movimentação para cercar a grande fortaleza fluvial de Humaitá, que bloqueou o acesso ao Rio Paraguai e à capital, Asunción. Mesmo assim, passou-se mais de um ano antes que os aliados ocupassem Humaitá (5 de agosto de 1868), e mais cinco meses para a  derrota decisiva e praticamente a destruição do Exército paraguaio na Batalha de Lomas Valentinas, em 27 de dezembro. As tropas aliadas (na maioria brasileiras), sob o comando do marechal Luís Alves de Lima e Silva, o marquês de Caxias, comandante-chefe brasileiro desde outubro de 1866 e comandante-chefe das forças aliadas desde janeiro de 1868, finalmente entraram em Asunción em 1o de janeiro de 1869 e terminaram a guerra. Pelo menos, assim pensavam os aliados.

Mas houve uma terceira fase: Solano López formou um novo exército na Cordilheira a leste de Asunción e começou uma campanha de guerrilha. Foi derrotado e seus soldados massacrados na última grande batalha em Campo Grande ou Acosta Nu, no nordeste de Asunción, em agosto de 1869. Mesmo assim, López conseguiu escapar com vida. Com sua companheira irlandesa Eliza Alicia Lynch, ele foi perseguido no norte por tropas brasileiras por mais seis meses, até finalmente ser acuado e morto em Cerro Corá, no extremo nordeste do Paraguai, em 1o de março de 1870. Em 27 de julho, foi assinado um tratado de paz preliminar.

Por que demorou tanto até os Aliados vencerem a guerra, apesar de sua esmagadora superioridade naval e, pelo menos depois de Tuiuti, também terrestre? Passaram-se quase quatro anos antes que os aliados chegassem à capital paraguaia. E mesmo então, a guerra se arrastou por mais de um ano. Uma explicação se encontra no lado dos aliados, ou melhor, no lado brasileiro, já que o Brasil ficou praticamente sozinho na guerra após o primeiro ano. Os governos brasileiros enfrentavam enormes problemas logísticos, primeiro para organizar, depois para transportar as tropas por milhares de quilômetros por via terrestre, marítima e fluvial, e, finalmente, para abastecê-las. E vencer as excelentes defesas terrestres e fluviais do Paraguai não foi tarefa fácil. Mas também é verdade que os comandantes brasileiros demonstraram um alto grau de incompetência estratégica e tática. Por outro lado, as tropas paraguaias e, na verdade, o próprio povo paraguaio, mantiveram-se leais a Solano López, combatendo com uma tenacidade extraordinária e, no final, quando estava em jogo a sobrevivência nacional, com grande heroísmo.

Para o Paraguai, a guerra foi quase uma calamidade total. O país sobreviveu como Estado independente, mas sob a ocupação e tutela brasileira no período posterior ao fim da guerra. Somente em julho de 1876, finalmente se retiraram 2.000 soldados e seis navios de guerra brasileiros. A consequência extrema da completa derrota, que seria o desmembramento integral do país, foi evitada, mas o território paraguaio foi reduzido em 40%, e o que restou do Exército foi desarmado. Embora o número de baixas tenha sido muito exagerado – chegou-se a se falar em 50% da população do Paraguai antes do conflito –, e as estimativas recentes e mais modestas estejam na ordem de 15% a 20% da população, o que corresponde a cerca de 50.000 a 80.000 mortes no campo de batalha e por doenças (sarampo, varíola, febre amarela e cólera), os percentuais são enormes pelos critérios de qualquer guerra moderna. A economia do Paraguai ficou arruinada, a infraestrutura e a base manufatureira foram destruídas e o início de um desenvolvimento externo sofreu o retrocesso de uma geração. Por fim, os vencedores impuseram ao país uma indenização enorme, embora nunca tenham cobrado e depois tenham cancelado.

A Argentina sofreu baixas estimadas – possivelmente com exagero – em 18.000 mortes em campo de batalha, mais 5.000 em distúrbios internos desencadeados pela guerra e 12.000 em epidemias de cólera. O território anexado ficou aquém de suas pretensões. De qualquer forma, eliminou-se da política da região platina a perspectiva de um Paraguai cada vez mais forte e potencialmente expansionista. E, num balanço geral, a guerra contribuiu positivamente para a consolidação nacional do país: Buenos Aires foi aceita como capital inconteste de uma república argentina unida, e a identidade nacional se fortaleceu consideravelmente.

O Brasil, que depois do primeiro ano da guerra combateu praticamente sozinho, sofreu baixas de pelo menos 50.000 mortos em combate e muitos outros por doenças, embora num total inferior aos 100.000 às vezes citados. O custo financeiro da guerra sacrificou tremendamente as finanças públicas do país. E a guerra teve profundo impacto na sociedade e na vida política. A Guerra do Paraguai foi um divisor de águas na história do Império, ao mesmo tempo seu apogeu e o início de sua decadência.

Mas o Brasil tinha alcançado todos os seus objetivos. Pelo tratado assinado com o Paraguai em janeiro de 1872, o país obteve todo o território reivindicado entre o Rio Apa e o Rio Branco. Assegurou-se a livre navegação dos rios Paraguai e Paraná, importante para Mato Grosso e o oeste paulista. E o próprio Paraguai, ainda mais que o Uruguai, agora estava sob seu firme controle e sua influência. Assim se consolidava, por ora, a indiscutível hegemonia do Império brasileiro na região.

Leslie Bethell é professor emerito de História da América Latina na Universidade de Londres e editor da coleção Cambridge History of Latin America (12 volumes, Cambridge University Press, 1984-2008)  

[Artigo resumido e adaptado do capítulo “O Brasil no mundo” do livro A Construção Nacional 1830-89 (Objetiva, 2012)].

 

Jogo de interesses?

Existe um mito de que o Brasil e a Argentina, na Guerra do Paraguai ou Guerra da Tríplice Aliança, foram instrumentos do capitalismo britânico, “Estados satélites”, “neocolônias”, instigados e manipulados por uma Grã-Bretanha “imperialista”, o “indispensável quarto Aliado”, para entrarem em guerra contra o Paraguai. Este seria um sólido mito nascido nos anos 1970 e 1980, nos textos de historiadores latino-americanos tanto da esquerda marxista quando da direita nacionalista. O alegado objetivo da Inglaterra era minar e destruir o modelo de desenvolvimento econômico conduzido pelo Estado, que representava uma ameaça ao avanço de seu modelo capitalista liberal na região. Mais especificamente, seu objetivo era abrir a única economia da América Latina que continuava fechada aos produtos manufaturados e aos capitais ingleses, e assegurar à Inglaterra novas fontes de matérias-primas, em especial o algodão, já que o abastecimento dos Estados Unidos tinha sido afetado pela guerra civil.

Há pouca ou nenhuma prova concreta consistente que possa sustentar essa tese. O governo britânico não tinha praticamente nenhum interesse no Paraguai e nenhuma vontade de piorar as disputas existentes no Rio da Prata, e muito menos de promover a guerra, que iria apenas ameaçar vidas e propriedades inglesas e o comércio britânico. E, mesmo que quisesse, a Inglaterra não exercia o grau de controle sobre o Brasil ou sobre a Argentina que seria necessário para manobrá-los e levá-los à guerra contra o Paraguai. As autoridades britânicas, em sua maioria, estavam a favor dos aliados, mas a Inglaterra se manteve oficialmente neutra durante a guerra e utilizou de modo sistemático sua influência a favor da paz. É verdade que fabricantes britânicos vendiam armas e munições aos beligerantes – isto é, na prática, ao Brasil e à Argentina, visto que o Paraguai logo caiu sob bloqueio brasileiro. Mas eram negócios, oportunidades de os empresários na Inglaterra, na França e na Bélgica lucrarem com uma guerra. Também é verdade que o empréstimo de sete milhões de libras dos Rothschild ao governo brasileiro em setembro de 1865 foi utilizado para comprar navios de guerra, e neste sentido a Inglaterra deu uma contribuição importante para a vitória dos aliados sobre o Paraguai. Mas não houve qualquer outro empréstimo ao Brasil durante toda a guerra, e os empréstimos ingleses representaram apenas 15% do total de despesas do Brasil com a Guerra do Paraguai. A principal responsabilidade pela guerra coube ao Brasil, à Argentina, em menor grau ao Uruguai e, sobretudo – infelizmente –, ao próprio Paraguai.

 

Saiba Mais - Bibliografia

BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. Brasília: Editora UnB, 2008.

DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

FERREIRA, Gabriela Nunes. O rio da Prata e a consolidação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 2006