sábado, 5 de janeiro de 2013

Multiplicação sem milagre


Crescimento dos neopentecostais não é fruto de maior religiosidade, mas de valores contemporâneos, como o individualismo

Orivaldo Pimentel Lopes Júnior



Manhã de domingo, periferia de Natal. Os fiéis da Igreja Pentecostal Santuário da Fé, apesar da chuva fina, montam algumas mesas de plástico na calçada, sob a marquise na frente da igreja. Sobre as mesas, uma variedade de frutas, pãezinhos, sucos, café. Do fundo vem o som animado de uma música gospel, e os participantes se servem enquanto dançam, riem e convidam os passantes a participar do encontro.
Naquele mesmo bairro de Felipe Camarão funcionam outras 86 igrejas evangélicas. Dez anos atrás, eram 33. Trata-se de uma tendência nacional: enquanto nos últimos 50 anos a população brasileira cresceu 63,2%, o número de evangélicos quase dobrou de tamanho (aumentou 93,3%). A razão pode estar na criatividade e na ousadia evangelística das igrejas neopentecostais,como a Santuário da Fé. Ou na sensação de segurança que os membros da vizinha Metodista Pentecostal celebram ao cantar com vibração: “Solta o cabo da nau/ E navega com fé em Jesus/ Pois com ele seguro serás”. Entretanto, fatores como criatividade ou a produção de uma sensação de segurança apenas descrevem a realidade, mas, isoladamente, não têm força para explicar os elementos imponderáveis dos fenômenos humanos que estão por trás da mudança do quadro religioso no Brasil.
O povo brasileiro sempre foi muito religioso. Nos últimos censos, mais surpreendente do que o crescimento dos evangélicos é o aumento daqueles que se declaram sem religião. Em 1960, estes eram apenas 0,5% da população. Em 2010, o percentual chegou a 8%. Esse aumento paulatino e significativo do número de pessoas avessas à adesão formal a uma religião instituída parece indicar que a religiosidade brasileira está diminuindo, pelo menos em sua face institucional. Curioso, pois não é a impressão que se tem ao ligar a TV ou observar as ruas das grandes cidades.
Ocorre que, até os anos 1960, praticamente todos os brasileiros se diziam católicos. Era uma identidade tão natural quanto o fato de falar português ou comer feijão com arroz. A hierarquia católica assentou-se tranquilamente sobre este fato, e cuidava apenas de manter os símbolos cristãos à disposição nos centros das cidades, nas escolas, nos lares e nas repartições públicas. Em uma geração, ou meio século, o quadro mudou. Antes meros 4% da população, os evangélicos no Brasil já são 22,2%. No caminho inverso, o catolicismo recuou.
Em 1872, os católicos brasileiros chegavam a 99,7% da população. Um dos marcos do protestantismo no país ocorreu em 1910, quando surgiram simultaneamente, em Sorocaba, São Paulo e Belém do Pará, as duas maiores igrejas pentecostais brasileiras: Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus. A partir desse momento, junto com as protestantes de migração (que já estavam aqui desde o início do século XIX) e as protestantes de missão (vindas na segunda metade daquele século), passam a ameaçar o monopólio religioso do catolicismo. Mas não se rompeu um traço cultural instituído por séculos com um punhado de igrejas espalhadas pelo vasto território brasileiro. Era uma presença incômoda de fato, mas só era incômoda porque era exótica. Não ser católico era uma agressão ao instituído, pois negava a brasilidade, traía a família e introduzia a desordem.
Ao longo do século XX, a identificação automática com uma religião passa a ser questionada. Quebrada a estrutura de coerção cultural, mais recentemente as pessoas passaram a se sentir livres para dizer “Sou sem religião”. Ou para optar por outras formas de pregação. Resultado: em 2010, os católicos não passavam de 64,6%.
O interessante é constatar que o catolicismo “praticante”, responsável pela ocupação dos templos, tem aumentado. A histórica adesão automática a essa religião fez surgir no país a categoria de “católico não praticante”. São estes que, livres para escolher, se afastam de uma opção da qual já não eram próximos. Afinal, se os 123.280.172 católicos no Brasil se reunissem em templos e capelas, numa média de 123 pessoas em cada um deles, o território nacional precisaria ter um milhão de templos. Porém, só para se ter uma ideia, no mesmo bairro de Natal onde está a Igreja Pentecostal Santuário da Fé, para dar conta dos quase 40.000 moradores que se declaram católicos, deveria haver 350 locais de culto. Mas só existem dois templos e duas pequenas capelas.
Quem são os evangélicos brasileiros?A maioria é pentecostal – entre60% e 80%. Convencionou-se classificá-los em três subgrupos: os da primeira onda são aqueles surgidos na primeira metade do século XX – como Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil; os da Cura Divina, ou segunda onda, surgiram nos anos 1950 – como Deus é Amor e Brasil para Cristo; e os neopentecostais se consolidaram entre as décadas de1970 e 1980 – como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus.
O termo neopentecostal, apesar de consagrado, dá margem a certas confusões. Nem todas as centenas de novas denominações pentecostais que surgem são neopentecostais. O “neo” se refere à forma de ser pentecostal, e não ao tempo em que surgiu a Igreja. Devido ao sucesso, ao profissionalismo de sua aplicação e, especialmente, à crise da modernidade, práticas neopentecostais, como “declaração” de vitória e prosperidade, cânticos triunfalistas, segmentação de “mercado”, especialização litúrgica em torno de determinados temas como casamento, trabalho e doenças, estão presentes em qualquer tipo de igreja evangélica, e até mesmo em algumas católicas.
Enquanto não foi quebrado o monopólio do catolicismo, o Brasil permaneceu à margem daquilo que se convencionou chamar de modernidade ocidental. Racionalidade econômica, ordenação jurídica do Estado laico e democrático, universalização do ensino, mudanças na estrutura agrária, entre outros elementos que caracterizam a modernidade, só ocorreram paralelamente às mudanças culturais próprias do fim do monopólio religioso católico. A insistência pioneira do protestantismo e do pentecostalismo em quebrar esse monopólio permitiu o florescimento de um modo alternativo de se pensar a sociedade. Contudo, em menos de um século a nação caminhou para uma modernidade globalizada e consumista, na qual a religiosidade das soluções mágicas e imediatas encontrou larga aceitação.
Resultado: a religião que mais cresce no Brasil de hoje é aquela que resolve os problemas individuais e distribui benefícios simbólicos imediatos ou celestiais, mas que tem pouco a dizer à sociedade. Seus efeitos políticos ainda são, em sua maioria, eleitoreiros e corporativistas. As atividades sociais que ela promove não obtêm impacto significativo na coletividade. Compõe a paisagem, mas não chega a imprimir uma nova mentalidade.
Novembro de 2009, periferia de Natal. O pastor Edmilson de Melo, do Ministério Pentecostal Unidos por Cristo, é assassinado durante uma vigília de oração em uma duna da região – uma das mais violentas da cidade. O assunto não despertará a atenção dos membros da Igreja Metodista Pentecostal, no mesmo bairro. Nem da sua vizinha, a Igreja Pentecostal Santuário da Fé, ocupada em promover seu apetitoso café da manhã para atrair mais fiéis.

Orivaldo Pimentel Lopes Júnioré professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de “Protestantismo, Democracia e Violência”, no livro Novas Perspectivas sobre o Protestantismo Brasileiro (Edições Paulinas, 2009).

Saiba Mais - Bibliografia
BURITY, Joanildo A. Redes, parcerias e participação religiosa nas políticas sociais no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, tempo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. São Paulo: Vozes e Umesp, 1997.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.
Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/multiplicacao-sem-milagre

Jeitinho evangelizador


Seja em programas de TV ou no boca a boca, estratégias missionárias brasileiras são um sucesso, inclusive no exterior

Eduardo Refkalefsky


Se igreja fosse um produto da balança comercial, o Brasil estaria com superávit. Nas últimas décadas, foi invertida a tendência histórica, iniciada com a colonização, de receber mais missionários do que enviá-los para o exterior. Agora são os nossos evangelizadores que conquistam o mundo.
A expansão das Igrejas brasileiras no exterior segue as mesmas estratégias ligadas ao seu crescimento dentro do país. O caminho mais visível é aquele que envolve alto investimento midiático e a construção de megatemplos. A Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, é o melhor exemplo. O uso intensivo da mídia – especialmente o rádio e a TV – e a importância dada às instalações físicas demandam grande volume de capital, bem como uma estrutura de comando rigidamente centralizada. Em relação à hierarquia, essas igrejas se definem como “apostólicas”, cujo poder está na mão do clero, que foi “escolhido por Deus”. Em seus templos no exterior, o poder fica concentrado nas mãos de pastores e, se houver, bispos.
Mas existe outra forma de evangelização extremamente bem-sucedida. É uma estratégia sutil – quase invisível para quem tem pouco conhecimento do meio –, mas que se mostra igualmente eficaz, ou talvez mais, pois gera vínculos duradouros entre os convertidos e as organizações religiosas. Trata-se da “estratégia missionária”, associada aos protestantes tradicionais ou históricos. A palavra “missão” é o centro de todas as suas ações, que não utiliza meios de comunicação e, às vezes, nem mesmo templos. No lugar de uma estrutura centralizada e altos investimentos de capital, concentra-se no papel de missionários isolados, que muitas vezes vão para o exterior só com a própria família.
Enquanto a Igreja Universal é o modelo da estratégia midiática, a Igreja Batista simboliza a estratégia missionária. A constante evangelização (proclamação do Evangelho) faz parte do ideário batista que chegou inicialmente ao Brasil após a Guerra Civil americana, por volta de 1870. Não é comum encontrar nomes como “Igreja Batista de Copacabana”, mas “Primeira Igreja Batista de Copacabana” (“PIB”). Ou seja, pastores e missionários fundam uma igreja já pensando na segunda (“SIB”) ou mesmo na terceira (“TIB”). Estratégias semelhantes são utilizadas pela Congregação Cristã do Brasil (fundada em 1910) e pela Assembleia de Deus (1911), entre outras: foco na comunicação boca a boca e na evangelização pessoal. Em vez de megatemplos, várias igrejas pequenas espalhadas em comunidades na periferia e no interior – ou, às vezes, apenas núcleos missionários ou subcongregações sem templos. Ilustrativa dessa forma de evangelizar é a imagem de um pastor com terno velho, mas bem conservado, Bíblia na mão, indo de bicicleta para o culto em uma pequena igreja.
O objetivo prioritário desses missionários (quando não o exclusivo) é a conversão do evangelizado. Ele se torna membro de uma comunidade de fiéis, o que só se completa com a participação em atividades de ministérios (por exemplo, encontro de casais) ou de evangelização, seja no território nacional ou no exterior. A estrutura congregacional descentralizada permite maior delegação de poder, o que possibilita ao convertido se tornar, ele também, agente evangelizador. A participação e o compromisso costumam ser cobrados pelos próprios fiéis nessas igrejas. Aqueles que só comparecem ao templo uma vez por semana, por exemplo, são pejorativamente tachados de “domingueiros”.
A estratégia midiática, por sua vez, concede pouco ou nenhum poder ao fiel. Ele apenas assiste aos cultos e deposita suas contribuições em ofertas e dízimos. Por mais que a conversão seja desejada e de fato ocorra, a Universal foi pioneira – e logo copiada por outras Igrejas – em abrir espaço para diversos tipos de vínculos entre os fiéis e a instituição. Aceita em seus cultos, principalmente naqueles com um fim específico (prosperidade, emprego, saúde), a presença de católicos, espíritas, umbandistas e praticantes do candomblé. Não exige necessariamente a conversão, no que se adequa ao mundo contemporâneo: o indivíduo recebe influência de diversas instituições produtoras de sentido, sejam formais ou informais (Igrejas, Estado, escola, família, amigos) e faz a sua síntese individual e particular.
Esse modelo proliferou a partir da década de 1960, com o crescente questionamento das bases do mundo moderno, como a fé no progresso e na ciência. Quando os indivíduos já não aceitam mais os antigos discursos para dar sentido à vida, novas explicações para a realidade ganham espaço e possibilidade de alcançar um público cada vez mais amplo. E a organização religiosa, que acolhe desde o fiel que se torna obreiro, participando diariamente dos trabalhos da igreja, até o pedestre atraído pelo cartaz “Pare de sofrer!” (muito usado na Universal), consegue dar conta da complexidade social do mundo de hoje.
No Brasil, a grande presença da Igreja Universal nos meios de comunicação – em especial após a compra da Rede Record de televisão, em 1989 – provoca em muitos a impressão de que ela seja a maior organização evangélica do país, ou de que sua estratégia de crescimento seja a mais bem-sucedida. Nenhuma dessas teses é verdadeira: de acordo com o IBGE, as maiores Igrejas evangélicas do Brasil são, pela ordem, Assembleia de Deus, Igreja Batista e Congregação Cristã (todas com estratégia de crescimento radicalmente diferente da estratégia da Universal). Embora passe despercebida pela classe média urbana, incluindo muitos jornalistas e acadêmicos, a estratégia missionária tradicional, do boca a boca, também tem grande penetração.
Mídia e capital de um lado, evangelização “formiguinha” de outro. Essas duas formas são mais complementares do que opostas, e ambas explicam o sucesso das igrejas evangélicas brasileiras no exterior. Cabe perguntar: junto com as igrejas, estamos exportando uma cultura religiosa própria? Será que a singularidade da cultura brasileira representa um papel importante nesse crescimento?
O Brasil é o único caso de uma miscigenação em larga escala de três etnias, como foi apontado por diversos autores, entre eles Gilberto Freyre (1900-1987) e Darcy Ribeiro (1922-1977). No plano religioso, o equivalente da miscigenação é o sincretismo, principal elemento daquilo  que o sociólogo José Bittencourt Filho chamou de “Matriz Religiosa Brasileira”. Algumas de suas características: o uso da religião para fins práticos e cotidianos (como passar em um concurso); uma moral “franciscana” (termo de Gilberto Freyre para um ideal de mundo simples, pré-racional, anticultura letrada e antimercantil); e a religiosidade entendida como sentimento individual em relação ao sagrado, à parte das religiões institucionalizadas (o que explica, por exemplo, a expressão “católico não praticante”).
Igualmente complexas e contraditórias, essas características parecem se adequar a um momento em que o mundo passa por grandes transformações, relacionadas, sobretudo, ao processo de globalização. A cultura brasileira, caracterizada pela convivência e síntese de opostos, parece ser a resposta ao choque de visões de mundo que ocorre na atualidade. E não apenas com as igrejas evangélicas, mas também com outras experiências religiosas ou místicas, como as mães de santo que têm entre seus clientes corretoras da Bolsa de Nova York, o fenômeno esotérico Paulo Coelho e o sucesso de novelas da TV Globo que têm como base o romance espírita kardecista.

Eduardo Refkalefskyé professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de “Estratégias de Comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil e dos Televangelistas nos EUA: um estudo comparado” (UFRJ, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia
BITTENCOURT FILHO, José. A Matriz Religiosa BrasileiraPetrópolis/Rio de Janeiro: Vozes/Koinonia, 2003.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa de. Protestantes, pentecostais e ecumênicos.São Bernardo do Campo: Umesp, 1997.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiroSão Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/jeitinho-evangelizador

Deus é voto


Depois de quase um século sem se fazer notar, a mistura de religião com política hoje é essencial para o debate democrático

Ricardo Mariano


Em sua reta final, a eleição deste ano para a prefeitura de São Paulo se transformou em debate religioso. A discussão em torno da descriminalização do aborto e a distribuição de kits informativos contra a homofobia, criados pelo Ministério da Educação, tornaram-se armas eleitorais importantes e forçaram os candidatos José Serra e Fernando Haddad a pisar em ovos para não se arriscarem a perder votos nem dos religiosos nem dos progressistas. Na disputa do primeiro turno, a candidatura do apresentador da Rede Record Celso Russomanno, filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB) – ambos, rede televisiva e partido, são da Igreja Universal do Reino de Deus – foi criticada por instrumentalizar eleitoralmente a religião e por estar a serviço de um conglomerado religioso e empresarial.
Até o final da década de 1970, os pentecostais, de modo geral, eram vistos como apolíticos, sendo inclusive acusados de alienados. Já no contexto da redemocratização, em meados dos anos 1980, muitos dirigentes pentecostais estavam dispostos a participar da redação da nova Constituição e adotaram o lema “irmão vota em irmão”, lançando e apoiando candidaturas de religiosos. Alegavam que era preciso eleger seus próprios representantes parlamentares para defender sua liberdade religiosa, evangelizar a política, proteger a família, a moral cristã e os interesses de suas Igrejas, assim como para combater propostas antibíblicas e moralmente condenáveis, como a união civil de homossexuais, a descriminalização do aborto e do consumo de drogas, entre outras.
A mobilização surtiu efeito: os pentecostais saltaram de dois deputados federais em 1982 para 18 em 1986, sendo 13 da Assembleia de Deus. Feito considerável, dado que só cinco deputados federais tinham sido eleitos por eles entre 1910 e 1982. Nesse período, a representação parlamentar dos evangélicos no Congresso Nacional – iniciada com a eleição do metodista Guaracy Silveira para a Assembleia Constituinte de 1934 – foi dominada por presbiterianos (36 deputados), batistas (25), luteranos (15), congregacionais (9) e metodistas (9). A partir de 1986, os pentecostais assumiram o protagonismo político entre os evangélicos. As outras denominações protestantes, somadas, elegeram 14 deputados naquele ano.
Nas eleições posteriores, as diversas igrejas evangélicas alcançaram 23 deputados federais em 1990, 30 em 1994, 49 em 1998, 59 em 2002, 48 em 2006 e 73 em 2010. A redução do número de representantes nos pleitos de 1990 e 2006 decorreu de escândalos envolvendo corrupção e troca de favores que atingiram principalmente deputados da Assembleia de Deus e da Igreja Universal. Mas, entre 1986 e 2010, o número de evangélicos na Câmara Federal mais que dobrou, acompanhando a vertiginosa expansão demográfica dos evangélicos, liderada pelos pentecostais.
Em 2005, Edir Macedo, fundador da Universal do Reino de Deus, criou um partido político, o PRB, pelo qual reelegeu em 2010 o senador Marcelo Crivella, bispo licenciado da Universal e seu sobrinho, desde março deste ano titular do Ministério da Pesca.
Cerca de metade dos deputados pentecostais é composta de pastores, cantores gospel e parentes de líderes de igrejas, tele-evangelistas e donos de emissoras de rádio e TV. Ainda assim, para serem eleitos, esses candidatos dependem fortemente do apoio eleitoral de pastores e líderes denominacionais. Essa dependência reforça o caráter corporativista e moralista de seus mandatos e seu compromisso de atuarem como despachantes de igreja.
A maioria dos parlamentares evangélicos no Congresso Nacional – 30 dos quais eleitos pelo Partido Social Cristão (PSC), pelo PRB e pelo Partido da República (PR) – é filiada à Frente Parlamentar Evangélica (FPE), criada em 2003. A FPE apresenta grande heterogeneidade partidária e denominacional e não tem poder para uniformizar a atuação parlamentar de seus membros. Por isso, sua coesão ocorre apenas em casos que envolvem a defesa da moral cristã tradicional e de interesses materiais e institucionais de suas Igrejas. Em defesa da moral e dos bons costumes, a FPE une forças com deputados ligados a grupos católicos conservadores para lutar, por exemplo, contra o Projeto de Lei nº 122/2006, que criminaliza a homofobia, por considerá-lo um atentado contra a liberdade religiosa e de expressão. A Frente também se opõe radicalmente à descriminalização do uso privado de drogas, à legalização da eutanásia e de casas de prostituição e à interrupção da gravidez até a 12ª semana mediante atestado de médico ou psicólogo.
Hoje, o ativismo eleitoral e partidário dos pentecostais, a despeito de suas inclinações sectárias e fundamentalistas e de seu caráter moralista, é um dado da democracia e da cultura política brasileira. Viva e despudoradamente, essa prática tem sido estimulada por candidatos e partidos de todos os quadrantes ideológicos em busca de votos. Apesar disso, muitos crentes se opõem individualmente à manipulação eleitoral dos fiéis e à mistura entre religião e política; não se deixam transformar automaticamente em peças de currais eleitorais cegamente obedientes à orientação pastoral. A Congregação Cristã no Brasil e a Igreja Deus é Amor, por exemplo, abrigam 12% dos pentecostais e permanecem apolíticas. Denominações protestantes tradicionais, em geral, também não lançam nem apoiam candidatos oficialmente. Mas esta não é a postura da maioria dos pentecostais e neopentecostais, justamente as vertentes evangélicas que mais crescem no país.
Ricardo Marianoé professor da PUC do Rio Grande do Sul e autor de Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Loyola, 1999).

Saiba Mais - Bibliografia
BAPTISTA, Saulo. Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: um estudo sobre cultura políticaEstado e atorescoletivos religiosos no Brasil. São Bernardo: Instituto Metodista Izabela Hendrix/Annablume, 2009.
BURITY, Joanildo A.; MACHADO, M. D. C. Os votos de Deus: Evangélicospolítica e eleições no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2005.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Política e religiãoA participação dos evangélicos nas eleições. Rio de Janeiro: FGV, 2006.

Saiba Mais - Internet
OLÉ, Observatório da Laicidade do Estado:
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/deus-e-voto

Nós contra o mundo


Pentecostais ajudam na inserção social dos mais pobres, mas criam uma guerra espiritual: fora da igreja só existe o Diabo

Marcos Alvito
Os cultos evangélicos se adaptam às condições mais simples da população. (Acervo Centro de Estudos do Movimento Pentecostal / CPAD - RJ)

Daqui a 20 minutos,quando você terminar de ler este artigo, haverá mais 350 pessoas convertidas à fé evangélica mundo afora. Trata-se de uma “onda evangélica” que avança inclusive nas grandes metrópoles do Ocidente, como Londres e Paris, onde esses religiosos estão cada vez mais presentes nos bairros de imigrantes. E, como sabemos, no Brasil.
Seja onde for, a corrente que puxa essa multiplicação de fiéis é representada pelas igrejas pentecostais. No Brasil, elas se concentram nas áreas pobres dos centros urbanos, onde ainda se encontram altos índices de analfabetismo (cerca de 8,6%, embora esteja decrescendo também entre eles) e onde a renda per capita é de até um salário-mínimo. Quase um terço dos pentecostais vive em situação de pobreza aguda, com renda familiar per capita igual ou inferior a meio salário-mínimo. Multiplicam-se, sobretudo, nessas regiões onde grassam com mais força o desemprego, a violência, o estigma da pobreza cotidianamente realimentado pelos meios de comunicação, o preconceito racial ou étnico, a inexistência ou deficiência dos equipamentos públicos, o sistema escolar deteriorado e a precariedade das moradias.
Estão nas áreas urbanas das grandes metrópoles dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo e no Nordeste, mas também têm forte presença nas regiões Norte e Centro-Oeste. Os fiéis estão entre os mais jovens de todas as religiões (média de 27 anos de idade) e são, na maioria, mulheres: quase 20% mais numerosas que os homens. Quanto à cor declarada pelos próprios fiéis, quase 60% dos pentecostais são negros (8,5%) e pardos (48,9%), o que corresponde a um número 13% acima da média nacional.
A visão de mundo compartilhada pelos pentecostais é bastante peculiar. Há uma oposição binária entre o “mundo” e a “igreja”. O “mundo” é o espaço do pecado, da violência, do vício da bebida ou da droga, do sofrimento cotidiano, do Mal. Quem governa o “mundo” é o Diabo, uma figura central no culto pentecostal, continuamente evocada para explicar as dificuldades, as agruras e as tragédias vividas pelos fiéis. O Diabo estaria sempre à espreita, tentando desviar o fiel do caminho de Deus, criando-lhe problemas para enfraquecer sua fé. Deus governaria a “igreja”, a comunidade de fiéis reunida por um pastor, que os guiaria no caminho reto. Os cultos pentecostais representam uma verdadeira dramatização desta contínua batalha entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo.
Mas para entender uma religião, não se pode levar em conta somente a doutrina. Estudiosos da religiosidade sabem que a fé não nasce da meditação silenciosa, e sim na participação nos cultos coletivos. Eles permitem ao fiel se “reaquecer moralmente”, vivenciando a fé como “calor, vida e o entusiasmo que transportam o indivíduo para além de si mesmo”, como já escreveu Émile Durkheim (1858-1917). Os cultos pentecostais são extremamente “quentes”, com uma estrutura pautada no diálogo constante entre o pastor (ou pastora) e os fiéis, uso frequente de músicas, manifestações corporais intensas e testemunhos dos seguidores. Os líderes religiosos muitas vezes são pessoas da localidade, que vivem a mesma vida e têm os mesmos problemas que seus fiéis, além de falarem a mesma “linguagem”. Os cultos são diários, costumam durar duas horas, e continuamente reafirmam o pertencimento do fiel à igreja.
Ao contrário do dito popular, na religião o que vale não é o “ver para crer”, mas sim o contrário: aquele que crê começa a ver, começa a pensar e a visualizar o mundo segundo seus preceitos. A crença lhe dá uma arma poderosíssima para enquadrar tudo o que ocorre no mundo. Nada fica sem explicação. No caso da pentecostal, isso é facilitado por aquela oposição binária entre Bem e Mal, Deus e o Diabo, a igreja e o mundo. Tudo o que acontece com o fiel ou em torno dele pode ser encaixado neste esquema de pensamento. Em um mundo hostil, complexo, em que a velocidade das mudanças é tremenda, em que tudo parece ser posto em xeque e relativizado, a chave binária pentecostal é eficiente e tranquilizadora.
Além disso, a igreja, formada pela comunidade de fiéis, atua como uma rede de proteção social, fornecendo apoio psicológico e até material a uma população que vive em situação de grande vulnerabilidade social. Funciona como um círculo de solidariedade entre os fiéis, que se tornam amigos, conseguem empregos uns para os outros, envolvem-se em namoros e casamentos, solidificando ainda mais estes laços “internos”. Em áreas degradadas e estigmatizadas, pertencer a uma igreja evangélica eleva o status do fiel perante seus vizinhos e mesmo diante dos empregadores, aumentando a possibilidade de ascensão profissional e relativo sucesso financeiro. Afinal, outro traço frequente em boa parte das igrejas pentecostais reside na chamada Teologia da Prosperidade – a ideia de que os fiéis estão destinados à riqueza e à felicidade, desde que demonstrem generosidade em suas ofertas a Deus.
O avanço pentecostal teve consequências dramáticas em outras esferas. Como sua visão de mundo é marcada pela ideia de uma guerra espiritual, seus concorrentes principais no campo religioso são considerados demoníacos. Expressam hostilidade em relação aos católicos, por defenderem que somente os evangélicos merecem ser chamados de “cristãos”. Combatem incessantemente os cultos afro-brasileiros, umbanda e candomblé, abarcados por termos depreciativos, como macumbaria, feitiçaria e magia negra. Este ataque cerrado é mais agudo entre determinadas igrejas da subcorrente neopentecostal, das quais a mais famosa é a Igreja Universal do Reino de Deus, que trata de incorporar práticas mágicas existentes nas religiões afro-brasileiras, mas dando a elas um significado invertido e “positivo”. Se o banho de ervas do lado de lá é “macumbaria”, do lado de cá há o “sabão ungido”. Esta “guerra espiritual” não se restringe aos templos, mas alcança as ruas, as escolas e até mesmo o Congresso Nacional, onde a bancada evangélica (sobretudo pentecostal) cresceu 50% em relação à última legislatura.
Quem não está com você está contra você. A visão dicotômica dos pentecostais não é nada gentil com as religiões afro-brasileiras, parte importante do patrimônio cultural brasileiro. Frente a essa visão de mundo, a invenção de formas de convivência pacífica entre diferentes religiões – em respeito à lei brasileira – será um desafio cada dia mais importante para todos nós.

Marcos Alvitoé professor da Universidade Federal Fluminense e autor de As Cores de Acari (Editora da Fundação Getulio Vargas, 2001).


Saiba Mais - Bibliografia
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros – e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
MAFRA, Clara. Os evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
MARIANO, Ricardo. “Crescimento pentecostal no Brasil: fatores internos”, em Rever, Revista de Estudos da Religião, dezembro de 2008.
PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996.
Saiba Mais -  Internet
Revista USP
MARIANO, Ricardo. “Igreja Universal do Reino de Deus: a magia institucionalizada”.
http://www.usp.br/revistausp/31/11-ricardo.pdf
Saiba Mais - Filme
“Santo Forte”, de Eduardo Coutinho. Rio de Janeiro: Cecip/RioFilme. Link:http://eduardocoutinho.blogspot.com.br/2007/09/santo-forte.html
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/nos-contra-o-mundo


O fim de um monopólio


Só com a vinda da família real os protestantes conseguiram instalar-se e disseminar sua diversidade religiosa no Brasil

Angelo Adriano Faria de Assis
Representação clássica do Destino Manifesto americano, a pintura de john Gast (c. 1872) mostra a crença na predestinação para o progresso e a a conquista, simbolizados pelo anjo louro que guia os habitantes dos Estados Unidos na marcha para o Oeste. No Brasil, os missionários americanos do século XIX tiveram grande influência dos pentecostais. (Reprodução)



Poucas décadas após a morte de Martinho Lutero (1483-1546), seus ideais desembarcaram no Brasil. A chamada França Antártica, que ocupou o Rio de Janeiro entre 1555 e 1560, foi a primeira experiência protestante em nossas terras. No século seguinte haveria um episódio mais duradouro: os holandeses que governaram parte do atual Nordeste brasileiro de 1630 a 1654 também compartilhavam da religião protestante.
Mas os dois casos foram exceções. Depois de expulsos os franceses e os holandeses, a estrutura religiosa da Igreja Reformada foi desfeita, e o Brasil voltou ao monopólio da catequização católica. Assim permaneceria até o século XIX.
A transferência da família real portuguesa, em 1808, foi um marco para a entrada de estrangeiros, e suas crenças, na nova sede do governo português. O Tratado de Comércio e Navegação assinado em 1810, que garantiu a abertura dos portos brasileiros para produtos ingleses, assegurava também, em um de seus artigos, a liberdade de consciência e culto, permitindo igrejas protestantes com aparência discreta e sem buscar a conversão dos católicos. No ano seguinte, já se instalava, no Rio de Janeiro, a primeira igreja protestante, de denominação anglicana. Atendia os súditos ingleses, que antes tinham que se reunir para os cultos em residências ou navios britânicos ancorados. Em 1824, a nova Constituição reafirmou o catolicismo como religião do Império, mas reconhecia outras crenças cristãs, desde que não houvesse catequese nem ataques à religião oficial.
A imigração alemã trouxe as primeiras comunidadesluteranas, instaladas em 1824em Nova Friburgo (RJ) e em São Leopoldo (RS). A forte imigração no Sul contribuiu para o aparecimento de diversas outras colônias. As igrejas luteranas eram simples, sem sinos, torres ou qualquer identificação, construídas e organizadas pelo esforço dos colonos.
Na mesma época, formaram-se também colôniassuecas, suíças, holandesas, escocesas, inglesas e norte-americanas, espalhando diversas vertentes dos cultos reformados Brasil afora. A influência dos protestantes norte-americanos foi importantíssima. Com a Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865), muitos vieram em busca de refúgio e de terras. Incentivavam e financiavam a expansão de missões, enxergando no Brasil uma seara fértil para a conversão. Fundaram templos presbiterianos (o termo deriva da organização governada por uma assembleia de presbíteros ou anciãos), batistas (que enfatizam o batismo de adultos como exposição bíblica e pública da fé) e metodistas (que pregam o estudo metódico da Bíblia e a relação pessoal entre o indivíduo e Deus). Essas igrejas contaram com a simpatia dos que viam no protestantismo sinais do progresso norte-americano e dos preceitos republicanos, ao mesmo tempo que viam o atraso do Brasil e da monarquia como influência do catolicismo.
Os protestantes divulgaram sua mensagem nas cidades e nos campos, atendendo os mais diversos grupos sociais e distribuindo Bíblias de Norte a Sul. Aos poucos, eles se estruturaram e aumentaram o raio de ação, difundindo ideias e criando missões, centros de auxílio, hospitais, obras assistenciais e escolas. A educação sofreu transformações fundamentais ao incorporar experiências de outros países, como jardins de infância, classes mistas de meninos e meninas, prédios projetados especificamente para o ensino, salas próprias para aulas práticas, novos conteúdos e disciplinas.
A evangelização protestante teve, portanto, diferentes etapas no Brasil: os franceses visavam os índios; no período holandês, alcançou índios, negros e brancos; com as migrações do século XIX, os brancos e negros.O século XX, por fim, veria o avanço pentecostal, logo após seu surgimento nos Estados Unidos.
Embora “evangélico” e “protestante” sejam vistos como sinônimos, os termos têm significados distintos. Em sua origem, “evangélico” diz respeito àquele que se submete ao ensinamento do Evangelho, sendo apenas a Bíblia sua fonte de revelação. O termo“protestante”, por sua vez, advém de um documento de protesto apresentado pelos luteranos na segunda Dieta de Spira (1529), que declarava a fé católica como a única legal. No Brasil, em geral, “protestante” se refere aos fiéis das igrejas oriundas da Reforma, como os presbiterianos, luteranos e anglicanos, enquanto “evangélicos” abrange os seguidores das igrejas pentecostais e neopentecostais.
O Pentecostes é uma data importante do calendário cristão: comemora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo e é celebrada 50 dias depois do domingo de Páscoa. A doutrina pentecostal se caracteriza pela crença no Espírito Santo e na plenitude da vida moral. Sua primeira igreja no país foi instaurada em 1910, em Belém do Pará, pelos suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Chamada de Missão da Fé Apostólica, mais tarde ganharia o nome com que alcançou todo o Brasil: Assembleia de Deus. Também em 1910, o italiano Luigi Francescon deu início à Congregação Cristã, que teve forte presença ao Sul do país, a partir de São Paulo.
Novas denominações pentecostais ganharam espaço a partir dos anos 1970, como as igrejas Deus éAmor, OBrasilparaCristo, InternacionaldaGraça e a UniversaldoReinodeDeus. Todas enfatizam o batismo com o Espírito Santo, recorrem a cânticos de louvor, sessões de cura e de libertação, incentivam a prosperidade, dão testemunhos de graças e milagres alcançados e promovem o assistencialismo. Assim multiplicaram seus fiéis e aumentam cada vez mais sua influência.

Angelo Adriano Faria de Assisé professor da Universidade Federal de Viçosa e autor de Macabeias da colônia – criptojudaísmo feminino na Bahia (Alameda, 2012).

Saiba Mais - Bibliografia
CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil. Viçosa: Ultimato, 2000.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa, VELASQUES FILHO, Prócoro. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 2002.
VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/o-fim-de-um-monopolio

Sem intermediários

Teorias de Lutero romperam com a autoridade católica pregando o contato direto entre o homem e Deus pelo poder da fé


Evangélicos, batistas, presbiterianos, adventistas, pentecostais, protestantes, anabatistas e congregacionistas. Muitas vezes a discussão sobre a doutrina protestante se concentra no problema de classificar e diferenciar suas diferentes denominações. Mas, para além das definições dogmáticas e das confissões de fé, todas estas Igrejas – e outras que se desenvolveram ao longo da fragmentação religiosa da cristandade ocidental – têm o mesmo ponto de partida: o núcleo doutrinal luterano da justificação pela fé.
Entender o protestantismo significa compreender o que era a fórmula da “salvação pela fé”, tal como foi elaborada pelo frade agostiniano Martinho Lutero, na primeira metade do século XVI, e retomada sucessivamente pelos demais movimentos reformados.
Martinho Lutero (1483-1546) cresceu e se formou na fronteira eslava da cristandade, na Saxônia, Alemanha, ingressando aos 22 anos no Convento de Erfurt. Sete anos depois, tornou-se doutor em Teologia em Wittenberg, onde passou a lecionar Teologia e Exegese Bíblica. Este mergulho direto nas Sagradas Escrituras, entre 1513 e 1517, permitiu que ele formulasse uma nova interpretação do conceito de Deus e do Homem, condensada na sua doutrina da Teologia da Cruz.
O impulso definitivo rumo a esta nova doutrina foi a chamada “experiência da torre”, na qual Lutero elaborou o seu conceito de justiça passiva, refletindo sobre um trecho da Epístola aos Romanos, de Paulo: “o justo viverá pela fé”. Muitos haviam meditado sobre o sentido daquelas palavras, mas em Lutero elas dispararam uma reviravolta teológica: o homem era justificado apenas pela fé e de nada valiam as ações individuais, já que não poderíamos modificar a natureza pecaminosa. Lutero, portanto, desenvolveu uma visão muito pessimista da natureza humana, que, em seu entender, permanecia corrompida mesmo após a redenção, a remissão dos pecados que se realiza, para a humanidade, após o sacrifício de Cristo na Cruz.
Neste caso, a justificação do homem só poderia ocorrer por iniciativa divina: Cristo toma para si o fardo dos pecados dos homens, concentrando os rigores da justa e terrível cólera do Pai. Por mais que o homem fosse pecador, se tivesse uma fé maior que o pecado, Cristo o justificaria.
Ter fé, no sentido luterano do termo, significava compreender o valor do sacrifício de Cristo e crer em sua graça redentora para abrir o horizonte da salvação. Como era um dom totalmente gratuito, sem nenhum correspondente nas ações humanas, implicava a recusa da noção de “obras meritórias” – sobre as quais o papado havia construído sua própria autoridade, inclusive pela teoria das indulgências (remissão das penas cabíveis para os pecados cometidos).
Em suas 95 Teses (1517), Lutero condenava as indulgências, pois elas forneciam aos pecadores uma falsa segurança. Se o homem pecador não pode realizar obras boas, as indulgências são inúteis. O que salva o homem é somente a fé.
Sua luta contra os “abusos” da Igreja Católica não nascera com o objetivo de provocar um rompimento. Tornar laica a vivência religiosa – independente de instituições, de rituais e da presença em locais de culto – e abolir a separação entre o clero e os fiéis eram vistos como um retorno à forma primitiva e apostólica da Igreja, baseada na pregação e na relação direta do crente com Deus, pelas Escrituras.
No sentido católico do termo, ter fé era outra coisa: aderir à mensagem divina da Revelação do modo como os bispos e os párocos a ensinavam aos fiéis. A fé que salva era um sentimento subjetivo de misericórdia divina, a resposta para o problema angustiante da salvação, que seria alcançada, segundo a Igreja, quando se seguiam os seus ditames: confessar-se, arrepender-se e obter a absolvição libertadora, para realizar boas obras. A confissão, para ter valor, deveria ser completa, e os erros discriminados por quantidade, qualidade e circunstância. Era como contar as gotas de água em um oceano!
Nos séculos XVI e XVII, aos olhos de mercadores, artesãos, soldados e camponeses, a Bíblia traduzida para uma linguagem familiar e acessível ao fiel, sem cortes e sem precisar da mediação de intérpretes, significava poder encontrar o que buscavam avidamente: por um lado, um Deus vivo, fraterno e humano para com suas fraquezas, e, por outro, uma nova concepção do sacerdócio.
A definição reformada do sacerdócio universal, expressa pelo lema “Cada homem é pastor de si mesmo”, respondia a este desejo de contato direto com a Palavra de Deus e a uma recusa de todo tipo de intermediação. Para o mercador itinerante, por exemplo, o papel da Igreja como intermediária apagava seu mérito de ter obtido êxito em seu ofício graças ao empenho e a uma educação cultivada privadamente. O gosto pela autonomia e pelo governo de si mesmo não se manifesta apenas nas coisas políticas, refletindo-se também em uma religiosidade mais ativa. Fossem livres, rendeiros, assalariados ou servos, eles traduziam a atuação eclesiástica como mais uma forma de exploração senhorial ou como sua legitimação.
Para a maioria dos fiéis, a Reforma não era um protesto contra os “abusos” das autoridades eclesiásticas, mas uma revolução de sentimentos. A vida deixava de buscar na morte o seu ponto de referência, e os vivos se empenhavam em usar seus méritos aqui na Terra mesmo.

Silvia Patuzzié professora da PUC-Rio e da Fundação Getulio Vargas e autora de “Humanistas, príncipes e reformadores no Renascimento”, no livro Modernas Tradições. Percursos da Cultura Ocidental, séculos XV-XVII (Editora Access/Faperj, 2002).

Saiba Mais - Bibliografia
BAINTON, RolandH. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
MAFRA, Clara.  Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Saiba Mais - Filmes
Lutero”, deEric Till (2003).
“A rainha Margot”, de Patrice Chéreau (1994).
“Seis histórias brasileiras: Santa Cruz”, de João Moreira Salles (2000).
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/sem-intermediarios