domingo, 28 de setembro de 2014

O bipartidarismo no regime militar




A partir do golpe de 1964, o governo militar assumiu as rédeas da política brasileira. Os militares precisavam garantir que a oposição não conseguisse se organizar para tentar reaver o poder. Assim, começaram os decretos e temidos Atos Institucionaisque ditavam normas de conduta e restringiam (e muito) o poder de articulação da oposição.

Dentre os documentos publicados, é importante destacar o Ato Institucional Número Dois (27 de outubro de 1965) e o Ato Institucional Número Quatro (20 de novembro de 1965). Essas duas medidas decretavam o fim do pluripartidarismo no Brasil e fechavam de uma vez os treze partidos políticos existentes. Além disso, os decretos regulamentavam a existência de dois partidos, um a favor dos militares (ARENA) e o outro em oposição (MDB).

É preciso entender que o estabelecimento do bipartidarismo teve dois objetivos fundamentais. O primeiro é intimidar a criação de movimentos revoltosos e conseguir estabelecer e perseguir os inimigos políticos do governo militar. O segundo, sem dúvida, foi forjar aos olhos da comunidade internacional, a falsa ilusão de que o Brasil era um país democrático. Em momento algum, a oposição teve recursos suficientes para fazer frente aos militares.

O nascimento do Movimento Democrático Brasileiro e da Aliança Renovadora Nacional

O partido de oposição denominado Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o da situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), surgiram praticamente ao mesmo tempo. A ARENA foi fundada em 4 de abril de 1966, sob um discurso conservador, e com membros associados ao governo militar, chamados de “arenistas”.

A primeira vez que os dois partidos se enfrentaram foi em 1968, durante as eleições diretas para prefeitos e vereadores. Nessa eleição, a ARENA teve uma importante vitória sobre os candidatos receosos do MDB. A diferença entre os dois partidos seria avassaladora na eleição seguinte, em 1970, quando o MDB conseguiria eleger apenas três senadores para o Congresso. A derrota foi tão impactante que os políticos do MDB se reuniram para conversar sobre o encerramento do partido, uma vez que o mesmo quase não atingiu a votação mínima necessária para poder continuar existindo, que é de 20%. A vitória nas urnas permaneceria até 1972.

O processo político ditatorial que o Brasil vivia também refletia na economia. Aliás, grande parte da popularidade da ARENA nas urnas vinha da sensação do chamado “milagre econômico”. O crescimento da economia brasileira camuflava, ou melhor, compensava os atos de opressão e de falha democrática que a população vivia. Vale a pena destacar também o título da Copa do Mundo de 1970, que foi utilizado pelos militares como medida de ilusão social.

A situação seria invertida a partir de 1973 com a Crise do Petróleo e o aumento da inflação e dos preços de produtos básicos. O fim do crescimento econômico foi caro para o governo que passou a ser contestado nas urnas. Nesse sentido, a eleição de 1974 registrou a primeira derrota da ARENA. Foram eleitos 17 senadores o MDB e apenas 5, da ARENA.

A partir de 1976, a população brasileira passou a ser mais exigente em relação aos militares. Daí em diante, os programas políticos da ARENA começavam a falar de abertura, reforma agrária, democracia representativa, desenvolvimento econômico e ocupação da Amazônia, temas bastante polêmicos para a época. Os militares já começavam apontar mudanças na tentativa de conquistar o povo e recuperar as vitórias eleitorais.

Nas eleições seguintes, em 1978, o MDB obteve novamente a maioria dos votos, todavia continuava em minoria no Congresso porque tradicionalmente a ARENA tinha muita força nos pequenos municípios. O discurso da ARENA era sempre de valorização do desenvolvimento econômico, fazendo referência às obras promovidas pelo governo militar. Contudo o crescimento da oposição ficava incontrolável e o povo fazia pressão pela reabertura política junto com o MDB.

Em 22 de novembro de 1979, o pluripartidarismo era restituído no país. A ARENA e o MDB seriam fragmentados em outras legendas, estabelecendo um modelo bem parecido com o atual. Com o fim do bipartidarismo, os parlamentares da Arena migraram para o Partido Democrático Social (PDS) e o MDB transformou-se no Partido do Movimento Democrático Brasileiro(PMDB), sob a liderança de Ulysses Guimarães. Entretanto parte dos parlamentares da oposição abandonou a legenda e criou novos partidos. Sem dúvida, esse foi um grande passo para o fim da ditadura e o movimento das Diretas Já.




segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Um breve tratado do samba


Por Nei Lopes

Um breve tratado do samba
Origem do samba na África: do tambor de crioula a outras danças dos escravos
Muito antes de denominar um gênero musical, o nome “samba” se aplicava a qualquer refrão, coro ou estribilho ritmado, de aspecto mais ou menos africano. Hoje, o samba, em seus vários estilos e modalidades, é uma forma de canto e dança e um bem imaterial valioso, gerando renda e prestígio, na condição de símbolo máximo da identidade musical brasileira.

Se voltarmos ao Brasil escravista, nos tempos coloniais e imperiais, nas breves folgas do trabalho, os escravos se agrupavam cantando e dançando.  Nas cidades, eles geralmente saíam às ruas em cortejo; da mesma forma que os das fazendas dançavam em rodas, nos terreiros.

As várias danças de roda tinham características que as aproximavam, sendo a umbigada (no momento de escolher o substituto na roda) sua característica principal. E as urbanas, em geral, ocorriam em solenidades, como as de posse dos reis simbólicos das diferentes etnias, organizadas em irmandades, portando os respectivos estandartes ou bandeiras.
Daí que veio o samba, música e dança; e se originaram as antigas manifestações em cortejo que deram origem às escolas de samba.

Observemos que, até hoje, em Angola, o vocábulo semba, mas não samba, dá nome a uma dança urbana, caracterizada pela umbigada, acima referida. E em diversas línguas locais, o vocábulo samba aparece conotando movimento, especialmente em verbos, significando “pular” e “saltar”; ou designando o entrechoque de corpos etc.
Então, não há como negar a origem africana do samba.

Abolicionismo e consequências
Com o tráfico de escravos para as Américas, iniciado já no século XVI, a África foi se despovoando e enfraquecendo (além da escravização, muitas pessoas morreram lutando ou vitimadas pelas viagens desumanas nos porões dos navios negreiros), enquanto as potências europeias ficavam cada vez mais ricas e poderosas. Até que Inglaterra, França, Bélgica, Portugal e outros países resolveram, no fim do século
XIX, dividir o continente africano entre si, para explorarem as diversas colônias.

O progresso dessas potências acabou por tornar o escravismo inconveniente. E, assim, muito menos por compaixão ou por espírito humanitário, foi que surgiu o Abolicionismo.
No Brasil, porém, a Lei Áurea decretou o fim do escravismo, mas não pensou em dar terra, casa e trabalho remunerado para os africanos e descendentes (muitos já libertos) vitimados pela escravidão. Em vez de transformar os antigos escravos em trabalhadores livres, o Estado brasileiro preferiu trazer imigrantes europeus para as frentes de trabalho, na esperança de “melhorar a raça”, como então se dizia, pelo branqueamento da população.

Então, o século XX quando chegou, encontrou nas grandes cidades massas enormes de negros (pretos e pardos) marginalizados, se “virando” como podiam... Mas também cantando e dançando as músicas de sua tradição, as quais eram chamadas, pelo povo em geral e pelas elites, de “sambas”.

Nesses “sambas”, eram cantados e dançados, em roda, principalmente cantigas da tradição baiana, basicamente refrãos ou estribilhos que se sucediam, ritmados por palmas.     
Hilária Batista de Almeida, a “Tia Ciata”, foi a mais conhecida das chamadas “tias” da comunidade baiana do Rio, antigo Distrito Federal, que eram mulheres negras civilmente livres, muitas delas comerciantes e mães de santo, as quais, graças a seu trabalho e sua autoridade ou influência religiosa, gozavam de relativa independência social e financeira. Como suas camaradas, Tia Ciata costumava promover em sua casa concorridas festas, sempre com fartura, música e alegria.

Foi a partir de uma dessas festas que teria nascido a composição Pelo Telefone, que se tornou um marco na história do samba.

O ano era 1916 e a baiana tinha perto de 62 anos. Ainda não havia emissoras de rádio, mas a indústria e o comércio de música, sim. Existiam através da venda de discos gravados e de partituras impressas para serem tocadas ao piano, nos teatros e nas casas das famílias remediadas. O mercado estava surgindo, e alguns músicos já percebiam que uma composição musical, caindo no gosto do povo, podia render algum dinheiro.

Foi assim que o violonista e compositor Ernesto dos Santos, o “Donga”, em parceria com o jornalista Mauro de Almeida, de um pedaço de cantiga, um estribilho, ouvido numa das festas da legendária Tia Ciata, teria criado uma composição mais extensa. Registrando-a na Biblioteca Nacional, Donga a definiu e a identificou (pois esse era um dado necessário para o registro) como “samba carnavalesco”.  Assim, o samba ganhou sua certidão de nascimento.

Do maxixe ao novo samba
Mas, nessa primeira década do século XX e até a seguinte, com José Barbosa da Silva, o “Sinhô”, Oscar José Luiz de Morais, o “Caninha”, e outros, o repertório do samba, cantado principalmente por intérpretes como Mário Reis, Francisco Alves e Araci Côrtes, pouco se distinguia, formalmente, daquele do maxixe, popularizado a partir do teatro. Em 1927, porém, a gravadora Odeon lançava A Malandragem, de Alcebía-
des Barcelos, o “Bide”, considerada o primeiro exemplar gravado de um novo tipo de samba, criado por compositores do bairro do Estácio. Entre eles, além de Bide, estavam Ismael Silva, Nilton Bastos e outros.

Por esse tempo, o jovem Noel Rosa iniciava sua carreira compondo emboladas nordestinas e outras canções nos estilos rurais, então em voga.  Admirador confesso de Sinhô, Noel já tinha notícia desse novo tipo de samba que surgia no Estácio e dali se espalhava pelos morros próximos ao Centro.

O fenômeno se expandia, e é nesse momento que refulge a forte liderança de Paulo Benjamim de Oliveira, o “Paulo da Portela”. Influenciado pelo ambiente, o jovem Noel Rosa inicia amizades e parcerias com sambistas do Morro do Salgueiro, do Estácio, da Mangueira etc. Tudo isso num momento em que certa imprensa saúda o ingresso de compositores e intérpretes de outra origem social, como o próprio Noel, num ambiente onde – conforme sucessivas edições da revista carioca O Malho, na década de 1930 –-, predominavam “macumbeiros” e “gente mal-encarada”.

O ambiente era o do rádio, inaugurado em 1922. No qual, por seu potencial motivacional e aglutinador, o samba acabou por ser utilizado como trilha sonora preferencial das ações do primeiro governo de Getúlio Vargas, em 1930. O que serviu para neutralizar o preconceito e avivar o sonho de ascensão social acalentado principalmente por Paulo da Portela.
Desde então, o samba passou por profundas transformações. E o processo culminou, em fins dos anos 1950, com o surgimento da bossa-nova, estilo, inicialmente referido como “samba moderno”, e no qual o gênero foi despojado de sua excitante conjugação de ritmos para se tornar mais compreensível aos ouvidos estrangeiros, o que, mais adiante, felizmente, acabou por dar certo.

Mas, logo após seu surgimento, a bossa-nova viu seu caminho dividido em dois: o do lirismo descomprometido e o dos políticos, como a miséria, a favela, a questão agrária etc. Assim surgia a “nova geração do samba”, impulsionadora da chamada “corrente nacionalista” da bossa-nova, na qual despontaram, por exemplo, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nara Leão e Edu Lobo. Na sequência, surgiram Caetano Veloso, Gilberto Gil e Francisco Buarque de Hollanda (o futuro “Chico Buarque”), além de nomes hoje desaparecidos ou em outros caminhos.

Na segunda metade da década de 60, quando o centro irradiador das novidades internacionais deslocou-se de Paris para Londres, chegavam até o Brasil novos padrões de comportamento, sonorizados pela música dos Beatles. Aqui, isso se traduzia na “Era dos Festivais”, no movimento conhecido como Tropicalismo e no fortalecimento da jovem guarda, estilo que ocupava as paradas de sucesso desde 1965, com Roberto Carlos. No mesmo contexto, chegava ao desfile das escolas de samba (já transmitidos pela tevê) uma nova estética, com a qual as agremiações foram gradativamente abandonando a essência que lhes dera origem em proveito de uma apresentação mais espetacular.

Na imprensa, o jornalismo cultural também passava a sofrer a influência de novas correntes de pensamento, vindas de fora, para as quais o samba era visto, cada vez mais, como uma música “regional”, não cosmopolita. Nascia, aí, a designação MPB, que não se traduzia apenas como “música popular brasileira” e, sim, como música brasileira globalizada, obediente às determinações das gravadoras internacionais até hoje dominantes na indústria da música no País.

Mas a tradição do samba resistia. Sambistas importantes, como Martinho da Vila, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho, Clara Nunes, Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela conseguiam se manter ativos. E, mais do que todos, lutava o portelense Antônio Candeia Filho, o “Candeia”, líder de uma importante tentativa de reação.  Mesmo assim, o samba continuava sendo reduzido a simples classificação “cidade” e “morro” e, explicavelmente, excluído do círculo da MPB, onde agora pontificavam artistas revelados no âmbito da “nova geração do samba”.

A reação nos pagodes
Na passagem para a década de 80, aparecia o “pagode de fundo de quintal”, um estilo que, além de incorporar novos instrumentos ou modos de executá-los, servia-se também das infindáveis possibilidades harmônicas da bossa-nova.

Entretanto, nos anos 1990, em meio à desorganização da economia, a indústria fonográfica ajudava a criar uma nova crise, quando elegia como foco de seus cuidados mercadológicos apenas duas vertentes: a da música dita “sertaneja” e a do amplo leque da chamada “música pop”, no qual cabia tudo, até mesmo uma forma diluída do pagode, açucarada, com letras nas quais só cabia o amor erotizado até o extremo.

Dentro desse quadro, alguns grupos “pagodeiros” começavam a ser lançados no mercado latino, até mesmo cantando em espanhol, num surto que fez alguns artistas do estilo passarem a negar sua vinculação ao samba.

Na contracorrente, novas gerações de adeptos organizavam-se no culto ao samba “de raiz”, denominação que abrangia desde clássicos consagrados a partir da década de 30 a composições de produção recente.

A despeito de tudo isso e muito embora a ideologia colonizada de certa mídia esteja sempre a reboque das orientações internacionais, o samba permanece com toda a sua múltipla vitalidade, tocado e gravado. Em pagodes, rodas e shows, por pequenos conjuntos, à base de cavaquinho e pandeiros, por grandes orquestras etc., o samba evolui. E isso apesar de muitas vezes ter de dividir sua centralidade com o funk e derivados nascidos nas chamadas “periferias”.
 

Nei Lopes é sambista, escritor e autor, entre vários outros livros, da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana

Fonte: http://cartafundamental.com.br/single/show/57

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Dupla jornada


Dupla jornada
A articulação entre o trabalho remunerado e o doméstico ainda é ponto de tensão na vida das mulheres brasileiras
Por Carla Sabrina Favaro, doutora em Demografia pelo IFCH/Unicamp

O século XX e o começo do XXI testemunharam o avanço de mudanças profundas na vida das brasileiras. O aumento de sua escolaridade, a entrada e permanência no mercado de trabalho, a diminuição do tamanho das famílias e o aumento dos domicílios chefiados por mulheres são algumas das alterações mais significativas na condição feminina nas últimas décadas. Diante desse quadro, um dos maiores pontos de tensão na vida dessas mulheres é a articulação entre o trabalho remunerado (produtivo) e o trabalho doméstico (reprodutivo). 

De maneira geral, o pensamento social brasileiro no que diz respeito à formação das famílias e à posição das mulheres na sociedade foi fundamentado em torno, primeiro, da ideia da casa-grande e da senzala. Havia um grande patriarca e vários dependentes em torno dele, inclusive escravos, com as mulheres livres totalmente reclusas à vida doméstica e dependentes de pais, irmãos e maridos, e as escravas fazendo todo o trabalho reprodutivo.

Em um segundo momento, surge a ênfase em um modelo nuclear de família, no qual o homem seria o chefe do domicílio, encarregado de sustentar a família, enquanto a mulher (dona de casa) cuidaria do lar e seus membros. Entretanto, esse último padrão pode ser entendido mais como um modelo ideal de comportamento do que propriamente uma regra, já que o número de exceções, principalmente nas camadas populares, é bastante significativo, com forte recorrência ao trabalho feminino.

Somente a partir de 1970, com o desenvolvimento dos estudos a partir da perspectiva feminista, o trabalho doméstico e o remunerado foram conectados. Esses estudos foram fundamentais para desnaturalizar a ideia de que o trabalho remunerado deve ser estritamente associado aos homens, enquanto o doméstico é função feminina.

Foi também nesse período que a renda do trabalho feminino passou a ser parte fundamental do orçamento doméstico, não só das classes populares. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) para o Brasil, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho saltou de 32,9% para 52,7%, entre 1981 e 2009. Essa mudança considerável aconteceu na esteira do processo de industrialização, com suas transformações na estrutura produtiva do País, resultando, entre outras, na urbanização e nas quedas das taxas de fecundidade e consequente diminuição no tamanho das famílias, por outro.

É, portanto, no interior de um grande processo de mudança na sociedade brasileira que se deu a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Tal inserção, porém, acontece de maneira bem diferente entre os sexos. Diferentemente do trabalho masculino – atrelado às forças do mercado e ao nível de desenvolvimento da sociedade –, o feminino possui uma dinâmica mais complexa, pois costuma entrelaçar-se à posição que a mulher ocupa em sua família e à classe social a qual pertence seu grupo doméstico. O trabalho feminino extrapola o nível individual, principalmente das mulheres casadas ou vivendo em união consensual, estando associado ao curso de vida familiar.

O patriarcalismo da sociedade brasileira ainda se faz presente na medida em que grande parte das mulheres exerce sua vida profissional com uma carga simbólica de culpa considerável, por conta da distância cotidiana dos seus filhos e das responsabilidades domésticas, enquanto que, para os homens, esse tipo de dilema nunca foi posto. Durante muito tempo, o trabalho doméstico foi considerado um “não trabalho”, já que se referia à esfera reprodutiva da vida social. E é neste contexto que os conflitos na tentativa de articulação entre o trabalho doméstico e o remunerado se desenvolvem, enquanto as mulheres avançaram no mercado de trabalho, a contrapartida masculina na esfera doméstica caminha a passos bem mais lentos.
Patriarcalismo:  É um sistema onde o homem (figura masculina) é o centro; é o soberano; é o responsável pelas decisões finais como se fosse um pai.
Segundo dados da Pnad de 2009, enquanto as mulheres casadas ou vivendo em união consensual, provedoras do domicílio ou não, gastavam em média 30 horas semanais nos afazeres domésticos, esse número caía para perto de 12 horas, no caso dos homens. Esses dados mostram que ainda há muito que se fazer para que esta diferença entre homens e mulheres diminua. Esta é, atualmente, uma das grandes reivindicações femininas. Ainda está muito presente no imaginário popular a ideia de que o homem pode ser um auxiliar das mulheres nos afazeres domésticos, quando já se sabe que o mais eficiente seria a parceria entre o casal e o compartilhamento das tarefas.

É nesse contexto que surgem diversas queixas das mulheres empregadas que têm de lidar com duplas jornadas de trabalho, como mostra a pesquisa “Trabalho remunerado e trabalho doméstico: uma tensão permanente”, da Agência Patrícia Galvão. A pesquisa mostra como as mulheres se ressentem de falta de tempo para cuidar de si ou para se dedicar a atividades mais prazerosas. O trabalho remunerado é bastante importante na vida das mulheres entrevistadas, o grande problema é a sobrecarga quando se tem de fazer a maior parte da articulação com o trabalho doméstico.

Há outro lado bastante complexo que envolve o trabalho doméstico no Brasil: o emprego doméstico remunerado. Para entendê-lo, é preciso levar em consideração três variáveis: gênero, classe social e etnia. São, em sua maioria, mulheres negras, com baixa escolaridade e pobres.

Nesse sentido, é possível afirmar que o trabalho doméstico remunerado pode ser uma boa medida para se verificar as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira. Vários estudos já mostraram que essa atividade possui uma relação estreita com a escravidão. Por isso, durante muito tempo, o emprego doméstico foi desqualificado, já que não exigiria estudo ou preparação para o seu desempenho e ficando completamente a cargo das mulheres.

Outro ponto importante nessa equação consiste no fato de envolver, dentro de um domicílio, dois tipos de relação: a profissional e a familiar. Geralmente quando se quer mostrar a proximidade entre patrões e empregadas domésticas, estas últimas são referidas como se fossem “da família”. O grande problema reside no fato de mascarar a posição hierárquica que as empregadas ocupam, geralmente inferior, mascarando também as desigualdades neste tipo de relação e sua recorrência na sociedade brasileira. Por outro lado, sabe-se que o trabalho doméstico remunerado possui as maiores taxas de informalidade e rotatividade. A legislação que regulamenta a atividade ainda é relativamente recente, reunidas principalmente na chamada PEC das Domésticas.

Diante do quadro esboçado até aqui, é possível perceber que ainda há grandes desafios para as mulheres quanto à articulação entre o trabalho doméstico e o remunerado. As mulheres avançaram no mercado de trabalho, universo inicialmente masculino. A partir daí, adquiriram um maior empoderamento nas suas relações familiares e conjugais. Entretanto, ainda esbarram na impossibilidade de compartilhar as responsabilidades do trabalho reprodutivo e do cuidado da família. 

Publicado na Revista Carta Capital, edição 87, de junho de 2014 .