segunda-feira, 18 de abril de 2016

O estopim da escalada nazista


Hersch Fischler

Um plano criado pelo ministro Hermann Goering atribuiu o atentado aos comunistas
Cinco dias antes das eleições legislativas de 1933, na noite de 27 de fevereiro, a sala de sessões do Reichstag, o parlamento alemão, inflamava-se como uma tocha.

Ardiam as chamas contra o céu de Berlim. No dia seguinte, a polícia, colocada sob a autoridade de Hermann Goering, ministro do Interior da Prússia, apresentava seu suspeito: um anarco-comunista holandês de 24 anos, o pedreiro Marinus van der Lubbe. Ele tinha sido "pego em flagrante", e "seus cúmplices comunistas, fugido".
 

No dia seguinte, sob o pretexto de uma ameaça de complô de esquerda, Hitler impunha ao presidente Hindenburg um decreto de emergência abolindo todas as liberdades fundamentais da República. Nos dias que se seguiram, milhares de adversários dos nazistas foram presos. A imprensa socialista e comunista foi proibida. A Gestapo e a tropa diferenciada SS tinham plenos poderes. O incêndio do Reichstag, de alguma forma, foi o ato fundador do III Reich, e escancarou as portas do poder para Hitler. De fato, em 5 de março, os nacionais-socialistas e seus aliados obtiveram 51,8% dos sufrágios.

O processo de Van der Lubbe durou de setembro a dezembro de 1933, na Corte Suprema de Leipzig. A seu lado, no banco dos réus, encontravam-se o líder do grupo comunista do Reichstag, Ernst Torgler, e três correligionários búlgaros, um deles o responsável pelo Komintern, Georgi Dimitroff. No entanto, muitos duvidavam da culpa de Van der Lubbe. E não apenas os socialistas e comunistas. Até entre os que apoiavam Hitler, havia quem pensasse que o Partido Nazista, o NSDAP, estava envolvido na trama. Os autos dos interrogatórios - conduzidos pelo comissário Walter Zirpins sem a presença de intérprete, embora Lubbe falasse mal o alemão - foram assinados pelo acusado, que admitia o crime. O documento ainda aventava a hipótese de que ele agira por instigação dos comunistas - o que ele negara.
Em menos de três meses, o caso de Marinus van der Lubbe foi encerrado. Ele não fez quase nada para se defender. Justamente. A foto tirada quatro dias depois de sua prisão mostrava um jovem forte e de boa saúde. Em contrapartida, durante todo o processo, ele se comportou como um autômato, arrasado, apático, de cabeça baixa, incapaz de enunciar uma única frase, senão para reiterar a culpa. Observadores estrangeiros afirmaram, então, que ele estava drogado. Durante sua prisão no Reichstag, na noite do incêndio, ele já parecia estar em estado alterado. Condenado à morte em 23 de dezembro, Lubbe foi decapitado em 10 de janeiro de 1934. Por falta de provas, Dimitroff e seus colegas búlgaros foram soltos.

Nos anos 50, a tese da culpa dos nazistas e da inocência do jovem holandês voltou a tomar consistência. Mas prova alguma permitia sustentá-la. O historiador Richard Wolff, oficialmente encarregado de esclarecer o caso, não pôde se pronunciar de forma definitiva: segundo ele, os documentos referentes ao processo tinham sido perdidos. Mas, no outono de 1959, houve um fato novo. A revista Der Spiegel, de Hamburgo, publicou uma série de artigos assinados pelo historiador Fritz Tobias, reforçando a tese de que Van der Lubbe era o único incendiário do Reichstag.
 

Inocentava os nazistas e, extensivamente, os comunistas. No segundo artigo, o dr. Zirpins, que havia interrogado o réu em 1933 e fora promovido à diretoria da polícia judiciária de Hanover em 1951, confirmava essas informações. Rudolf Augstein, diretor da Spiegel, por sua vez, concluía que pouco importava saber quem fora o autor do incêndio. O "cínico golpe de mestre" dos nazistas foi, segundo ele, ter sabido explorar o caso o tempo todo.

Essa tese prevaleceu por muito tempo, embora fosse negada por um grupo de historiadores liderados pelo suíço Walther Hofer e pelo servo-croata Edouard Calic, que publicaram, nos anos 70, documentos vindos de Berlim Oriental questionando a culpa exclusiva de Van der Lubbe. Fritz Tobias, que em 1962 escrevera um livro a partir de seus artigos, acusou-os de utilizar fontes falsificadas, e eles não ousaram inquiri-lo judicialmente. Além disso, Tobias recebeu o aval do historiador Hans Mommsen, em 1964.
Na verdade, ninguém podia restabelecer os fatos, porque os processos da polícia do Reich e da Corte Suprema de Leipzig haviam sido seqüestrados pelos soviéticos em 1945 e levados para Moscou. Imaginava-se que tivessem sido devolvidos à Alemanha Oriental somente nos anos 50. Na verdade, soube-se depois que os soviéticos restituíram esses processos - classificados como "fundos no 551" -, somente em 1982, aos arquivos do Partido Comunista da Alemanha Oriental, onde permaneceram fechados. Depois da reunificação, eles foram repassados à sucursal dos arquivos federais de Potsdam, que os declarou autênticos e os colocou à disposição dos historiadores no início de 1993. Deles se conclui que Marinus van der Lubbe não podia ter sido o incendiário do Reichstag e que o roteiro desse drama foi escrito da primeira à última linha pelos nazistas.

Hofer e Calic já haviam provado que Van der Lubbe não podia ter incendiado sozinho aquele imenso edifício com quatro pequenos acendedores utilizados para fogareiros a carvão. Segundo eles, Van der Lubbe teria sido drogado e conduzido, contra sua vontade, ao Reichstag. Vagando pelos corredores, sufocado pela fumaça e com as roupas pegando fogo, ele admitiu tudo que os policiais queriam fazê-lo confessar. Provavelmente, foi introduzido no prédio pelo portão 2 e impedido de sair. Outro ponto é que as reconstituições provaram que o pretenso culpado não conhecia o prédio nem o local onde se iniciou o incêndio. Há, portanto, indícios de manipulação.

Não se pode, aliás, excluir a hipótese de que Van der Lubbe tenha sido observado bem antes pelos nazistas, que, uma vez preparado o golpe, buscavam um culpado ideal. Na verdade, ele tinha sido designado, pelos anarco-comunistas holandeses, para atuar em um grupo de esquerda berlinense independente de Moscou, a AAU. O que ele não podia imaginar é que essas organizações estavam infiltradas pelos hitleristas, notadamente aquela em que ele se engajou, já que ela abrigava o estudante Wilfried van Oven, que mais tarde viria a ser assessor de imprensa de Goebbels.

Os arquivos soviético-alemães-orientais trouxeram outras revelações: por exemplo, o diário pessoal de Goebbels. O ministro da propaganda de Hitler declarou, diante do tribunal, que havia sido informado do incêndio por um telefonema do chefe da imprensa estrangeira do Partido Nazista, Ernst Hanfstaengl, que morava no palácio do presidente do Reichstag. Goebbels escreveu em seu diário que, a princípio, pensou tratar-se de uma brincadeira de mau gosto e só informou o Führer depois de um segundo telefonema, indicação repetida pelo mesmo Hanfstaengl em sua autobiografia publicada nos anos 50. Na realidade, o porteiro do Reichstag, Paul Adermann, que os juízes não julgaram oportuno citar no tribunal, atestara que Hanfstaengl não morava no palácio do presidente do Reichstag e não estava lá na noite do incêndio. Assim, os nazistas, com Goebbels à frente, não devem ter se surpreendido tanto como aparentavam.

Outro fato confuso: na tarde de 27 de fevereiro, portanto antes do incêndio, o conselheiro Rudolf Diels, a quem Goering confiara a diretoria da polícia, havia implantado um dispositivo que permitia a prisão de líderes políticos socialistas e comunistas alemães. Essas detenções foram apresentadas por Tobias e Zirpins na Spiegel como uma reação ao "atentado". Na realidade, tudo prova que eles estavam preparados havia tempo. Em seu livro Strafrecht leicht gemacht (O direito penal ao alcance de todos), publicado durante o III Reich, Zirpins já se pronunciara favorável às prisões preventivas e aos campos de concentração.
Os arquivos de Berlim Oriental lembram também que dois outros personagens tinham sido presos com Van der Lubbe quando escapavam do Reichstag: Wilhem Heise, operário notoriamente de extrema-direita, e Albrecht, deputado nacional-socialista. Este foi posto imediatamente em liberdade e Heise foi solto às 4h45 da manhã, depois de uma tentativa de suicídio. Outro comparsa dos nazistas também se saiu bem, liberado após um breve interrogatório. Tratava-se de um certo F. C. A. Schoch, também holandês. Seu carro foi reconhecido por testemunhas quando ele estacionava na noite do incêndio perto de um dos portões do Reichstag.

Os historiadores Hofer e Calic formularam a tese de que os incendiários nazistas haviam entrado no edifício por um túnel que chegava até o palácio do presidente do Reichstag - nada mais, nada menos que o próprio Hermann Goering. Nada nos arquivos endossa essa hipótese. Mas faltam páginas nesses documentos. Há quem avente a hipótese de que fossem as páginas remetidas de Berlim Oriental sas. No entanto, não se pode afastar a idéia de que Goering também tenha utilizado o túnel, nem que fosse para confundir as pistas em caso de fracasso da operação. Os verdadeiros incendiários entraram - com grande tranqüilidade pelos portões 2 e 3, como sugerem os documentos - com a cumplicidade do pessoal do Reichstag.

Há também no "fundos no 551" outra informação, dada por um diretor de prisão chamado Brucks em texto escrito, em 22 de abril de 1938, ao procurador do Reich. O remetente admitia ter obtido, na época do processo de 1933, de um homem das SA (as sessões de assalto) encarcerado, um certo Rall, a confissão de que o incêndio fora perpetrado pela seção 17 das SA usando o subterrâneo. Brucks indicava que esse arquivo havia desaparecido. Rall foi assassinado pelas SA e Brucks morreu, em condições não elucidadas, pouco depois de ter escrito essa carta.

Os laudos da polícia confirmavam que o bando de incendiários era composto por nazistas e seus aliados. Von Papen, o líder dessa ação, teria desempenhado um papel muito mais ativo do que se pensava na própria ascensão de Hitler. Seu protegido, e também de Goering, Rudolf Diels, foi promovido em 1933 a primeiro chefe da Gestapo. O famoso Wilfried van Oven, chefe de imprensa de Goebbels até o fim do III Reich, reapareceu depois da guerra com o nome de Wilfred van Oven como correspondente da Spiegel na Argentina. Primeiro, pretendeu-se que ele havia se refugiado ali em 1945. Mas depois se verificou que Rudolf Augstein, diretor da Spiegel, permitira que ele emigrasse legalmente para lá em 1951. Fiel a suas convicções, Oven criara uma revista germano-argentina de extrema-direita: La Plata Ruf (O chamado de La Plata). Também seria encontrado, entre os que cercavam Augstein nos anos 50, Georg Wolff, redator-chefe adjunto da Spiegel.
Tudo isso leva a indagações como: um homem a serviço da segurança do Reich, dirigido por Reinhard Heydrich, seria Wolff aquele que, na entourage de Augstein favorecia os antigos nazistas? E quem abrira as páginas da Spiegel para Fritz Tobias e suas testemunhas nazistas como foi o caso do comissário Zirpins?

Estranho Zirpins. Tornou-se um dos auxiliares de Heydrich e era chefe da polícia criminal de Lodz, onde dezenas de milhares de judeus, encerrados em um gueto, foram liquidados. Em 1942, passou a ensinar na escola dos quadros da polícia de Reinhard Heydrich em Berlim-Charlottenburgo, por onde passaram numerosos homens que, nos anos 50, criaram a BKA, a polícia criminal da Alemanha Ocidental. A maior parte deles carregava milhares de mortos na consciência. Em 1945, ele foi o último chefe nazista da polícia de Hamburgo. E, em 1951, ou seja, seis anos depois da derrota do regime nazista, estava à frente da polícia judicial de Hanover. Em 19 de dezembro de 1951, a Spiegel publicou um longo artigo de Zirpins, dado como excelente policial. Naquele momento, a revista mantinha sua redação em Hanover.

Ele somente se mudou para Hamburgo um ano mais tarde. Pode-se indagar legitimamente sobre as conexões entre todos esses antigos nazistas, a Spiegel e o seu diretor. A revista nunca aceitou retificar sua afirmação sobre a culpa de Marinus van der Lubbe. A Stern, em 1992, desistiu de publicar os documentos sobre esse caso. Vale imaginar se não teria havido pressão, de que tipo e da parte de quem.

Da mesma forma, pode-se perguntar por que os soviéticos, que estavam em posse dos documentos do processo Van der Lubbe, não esclareceram o caso antes. Há quem acredite que, dessa forma, a União Soviética e a RDA conservavam um bom meio de chantagem contra altos funcionários da Alemanha Ocidental comprometidos com o antigo regime nazista.

-Tradução de Luciano Loprete
Reencontro com a História
Numa Alemanha reunificada, a restauração do Reichstag teve valor simbólico. Berlim voltou a ser a capital da República Alemã. Em 19 de abril de 1999, o parlamento alemão - o Bundestag - realizou sua sessão inaugural e, em 23 de maio, o sucessor de Roman Herzog na presidência da República federal foi eleito no edifício do Reichstag, restaurado sob os cuidados do arquiteto britânico Norman Foster.

O novo Reichstag passou a significar a Alemanha reunificada, apelidada de "República de Berlim". O imponente edifício neoclássico convidava os alemães a um encontro com sua história. Muitos ainda indagavam principalmente sobre os autores do incêndio do Reichstag na noite de 27 de fevereiro de 1933. Afinal, quem pôs fogo no prédio, os nazistas, os comunistas (como pretendiam os nazistas) ou aquele jovem holandês de Leyde, Marinus van der Lubbe, executado em janeiro de 1934 aos 24 anos? Despacho da Agência France Presse, de 15 de abril de 1999, informa que aquele incêndio criminoso foi "perpetrado em circunstâncias jamais esclarecidas".

No entanto, o enigma já estava resolvido. A revelação histórica, que coube ao historiador de Düsseldorf Hersch Fischler, não recebeu até aquele momento a relevância que merece. O processo do jovem anarquista holandês diante da Corte de Leipzig foi orquestrado nos bastidores por Hermann Goering, responsável pela polícia política. Goering organizou o incêndio, executado por um bando de nazistas, a fim de criar um pretexto para abolir as liberdades públicas e instaurar a ditadura.

Em 13 de janeiro de 1999, diante de uma representante do governo holandês e de uma vereadora de Leipzig, Elisabeth van der Lubbe e Adriane Derix-Sjardijn, inaugurou-se no cemitério da cidade um monumento em memória do primo das duas senhoras, Marinus. Dois artistas holandeses cinzelaram numa pedra semelhante às do Reichstag um poema escrito na prisão pelo condenado. Porém, nenhum funcionário alemão assistiu à reabilitação daquele que a Holanda considera como um resistente antinazista.

Por Jean-Paul Picaper - jornalista


Castelos: Poder e Soberania

As fortificações foram pontos de concentração de poder, com uma sociedade definida em cada detalhe pela vontade de seus senhores.
Georges Duby

Habitantes do castelo defendem-se jogando pedras em seus agressores

Seja na forma de uma rústica edificação rural ou na impressionante arquitetura de Versalhes, o castelo tem uma carga emocional muito particular.

Há, na Europa, muitas regiões salpicadas de áreas delimitadas, que têm como centro essa construção simbólica da nobreza. Em espaços vastos o suficiente para acolher toda uma população com seu gado e reservas.Alguns estavam em plena atividade durante a alta idade média e outros mantiveram a mesma função ainda por volta do ano 1000.

Em algumas cidades da França, havia alguns erguidos sobre vestígios de monumentos romanos. Na região plana, a maior parte das antigas fortificações foi abandonada por novos fortes, que não se organizaram segundo um plano de conjunto. O aparato defensivo se estreitou, concentrando-se no torreão - donjon, em francês -, termo, como o vocábulo danger - perigo -, derivado da palavra dominium, que exprime o poder do senhor. Construído de madeira ou de pedra, esse tipo de edifício de três níveis não era uma residência. As moradias ficavam à distância e incluíam a "sala", onde se ostentava o poder publicamente. A função da torre era militar e simbólica. Também servia de esconderijo para guardar bens preciosos. Acima ficavam os vigias, que abarcavam com o olhar o conjunto do distrito, e o estandarte, emblema de poder. Quando não estava fixada num penhasco, numa "rocha", a torre se elevava no alto de um montículo de terra de dez metros de altura e cuja plataforma cobria apenas uma dezena de metros quadrados. Era o "mouchão", que dominava uma série de aterros menores, em que se dispersavam os prédios residenciais e de serviço.
Na primeira metade do século XI, multiplicaram-se as referências, muitos dos edifícios mantidos por personagens sem laços políticos com os representantes do poder real. No período em que poder público e poder privado se fundiram, disseminou-se a tentação de edificar "mouchões" e torres. Livremente, ao sabor das circunstâncias. Certifica-o um regulamento elaborado em 1091, conhecido pelo nome Constitutiones et justitiae. Ele fixava princípios anunciados 40 anos antes por Guilherme, o Conquistador: "Ninguém, na Normandia, pode cavar uma fossa em terreno plano, a não ser que, do fundo dessa fossa, a terra possa ser jogada para cima sem a ajuda de uma escada de mão, nem ali estabelecer mais do que uma linha de paliçada, e isto sem redentes nem caminho de ronda; e ninguém pode fortificar uma rocha nem uma ilha". O poder soberano autorizava cercas ao redor das "Cortes", mas exigia que fossem leves; nada de mouchões, nada de castelos novos.
A torre era o signo de um domínio. Eventualmente, seu guardião comandava em nome de um superior, de um senhor do regnum ou do condado. Nesse caso, era designado pelo ofício que exercia: castelão, castellanus. No entanto, a maior parte do tempo, não dependia de ninguém. Era o dono, algo muito bem expresso no título que se arrogava, dominus ou sire em língua vulgar. O poder real estava em suas mãos. Mas, fosse o castelo i ndependente ou não, lá o chefe empunhava a espada da justiça, entregue por Deus aos guerreiros para a manutenção da paz na terra.

Quando já não era fisicamente capaz, próximo da morte ou da senilidade, o senhor transmitia suas funções a um dos filhos ou parente próximo, em cerimônia solene.
Uma parte da guarnição considerava o sucessor um intruso do qual convinha se livrar. Não faltavam candidatos à herança: em suas veias corria o sangue do falecido amo, eram os irmãos mais novos, os sobrinhos, os primos e sobretudo os bastardos. Em parte, essa "família" era consangüínea. No entanto, sua coesão procedia principalmente de uma camaradagem aquecida pela comensalidade e pela ação comum. Os guerreiros do castelo eram condôminos do poder ligado à fortaleza, e o senhor não podia geri-lo sem consultá-los. Eles ajudavam a afirmar esse poder.

Esses homens brutais, que rivalizavam incessantemente, que oscilavam entre o amor e o ódio mútuos e dormiam juntos na sala quando se tirava a mesa da refeição coletiva, recebiam o reforço temporário de outros cavaleiros ligados à fortaleza, mas que moravam em casa própria, seja no interior da castelania ou fora do distrito. Eis como se assegurava a guarda do castelo condal de Vendôme, por volta de 1025. Em abril e em maio, meses de exuberância militar, o próprio conde se unia à sua "sala", o rancho de soldados, mas, durante os outros sete meses, a cidade era protegida por guerreiros de uma espécie diferente. Designava-os individualmente a palavra latina miles. Era um título que, nas listas de testemunhas, os escribas ciosos da classificação social uniam a seus nomes próprios, enquanto a alcunha - o uso se propaga no começo do século XI - não era um mero apelido, e sim o nome do território onde residiam. Eram de uma classe superior. A estes, agregaram-se guerreiros do castelo, casados um após outro pelo senhor, por ele fixados numa terra, um "encasamento". Eles permaneciam mais estreitamente ligados à torre: dos 55 milites vinculados ao castelo de Picquigny no fim do século XII, 25, que residiam mais perto da fortaleza, descendiam desses cavaleiros. A "milícia do país" não era integralmente oriunda da nobreza antiga, mas tendia a se fechar em seus privilégios.

Só um se casava
Nas regiões de população mais rarefeita, o número de "moradores" privilegiados parece não ter aumentado nos séculos XI e XII; ao contrário, tendeu mais a se reduzir devido a um ajustamento das estruturas de parentela a um modelo principesco construído em função da honra, do exercício do poder público. Vale lembrar que, no século X, o poder dos príncipes não se dividia nas sucessões: um só varão o tomava inteiramente, em geral, o primogênito. Para evitar fissuras, elaboraram-se estratégias matrimoniais rigorosas. O chefe da casa se empenhava em casar todas as filhas a fim de, por meio delas, ou melhor, de seus filhos, firmar alianças úteis com outras casas. Mas procurava evitar que todos os filhos homens tomassem mulher legítima. Somente um se casava.
Graças a essas práticas, as honras principescas, mantidas pela descendência masculina, as linhagens, conservaram a unidade ao longo das gerações. Enquanto o dever de dirigir o povo se esfacelava castelo por castelo, costumes parecidos se aplicaram àquela honra que era a castelania, preservando-a da divisão. Eles se impuseram pouco a pouco às moradas de guerreiros que, pelo feudo, participavam do serviço público, e os cavaleiros domésticos também os adotavam quando seu mestre os instalavam num patrimônio. Esses usos que limitavam a nupcialidade masculina introduziram um temível fermento de turbulência no seio da sociedade aristocrática. Tornavam ilegítima a sexualidade da maioria dos homens adultos, multiplicando os bastardos. Mas a verdade é que o grande problema não provinha disso.

Formados no ofício das armas, talvez eles fossem mais bem integrados ao grupo familiar do que seus irmãos nascidos de uniões formais: estavam excluídos de herança, mas permaneciam na casa. Já os filhos e os sobrinhos legítimos geralmente a abandonavam, na adolescência. Assim como os soberanos da alta Idade Média "sustentavam" os filhos de seus fiéis durante o aprendizado, o príncipe acolhia em sua Corte os dos senhores dos castelos satélites, e estes tratavam do mesmo modo os meninos nascidos nas moradas dos "guerreiros do país". Esse sistema educacional era, ao mesmo tempo, fator de ordem e de desordem. Tendo recebido as armas, os cadetes não retornavam ao lar paterno, mantinham-se junto do pai adotivo, empenhados em bem servi-lo na esperança de dele obter o presente mais cobiçado, uma esposa e um encasamento.

Era muito simples a configuração da sociedade leiga. Dividia-se em dois grupos: de um lado, os homens de guerra e de serviço, os milites - palavra do latim vulgar que significa "cavaleiro" -, de outro, os rustici, os rústicos, os que trabalhavam a terra. Estes ficavam sob o domínio do castelo. Todos eles ficavam sob a proteção daquele que mandava: fossem vilões residentes no território, naturais do lugar ou recém-chegados acolhidos como "hóspedes".

O senhor da fortaleza, tal como o rei, ficava encarregado de uma missão dupla. Devia protegê-los e sobretudo defendê-los dos locais, sempre dispostos a despojá-los de tudo. Devia vingá-los caso fossem vítimas de um crime grave, punir o homicídio, o furto, o rapto, o incêndio, o adultério. Nesse caso, a vingança era pública, pois tais delitos desonravam a comunidade. Não havia necessidade de queixa, do "clamor" dos que haviam sido lesados, para que se infligisse ao culpado um castigo corporal, exposição, flagelação, mutilação, enforcamento. A essa alta justiça, dita de sangue, não escapavam os membros das famílias protegidas pelos cavaleiros ao redor de sua morada.
Em troca da segurança oferecida, o senhor queria contrapartida. Primeiramente, como o rei, exigia ser ajudado no exercício de sua função. Os vilãos fortes (não portavam espada, nem montavam cavalos, porém manejavam outras armas, embora a aristocracia vivesse no temor das insurreições populares), deviam acompanhar a pé a cavalaria quando das expedições ofensivas. Esperava-se sobretudo que contribuíssem com a defesa pública pelo trabalho manual, a corvéia. Eram os camponeses que cavavam as fossas, erguiam o mouchão, cortavam e fincavam as estacas das paliçadas. Calcula-se que a edificação de um fortim demandava o trabalho de 50 operários durante quatro dias.

Aos chefes do castelo, os casebres camponeses deviam acima de tudo abastecimento. Duas palavras o designam: exactio, que, sem nenhuma inflexão pejorativa, significa coleta; e consuetudo, que quer dizer costume. Qualificar certos costumes de maus pressupunha, com efeito, a existência de bons. A própria palavra utilizada implicava o consentimento dos homens que pagavam impostos e guardavam a lembrança dos usos justos. Para os amos, e sobretudo seus agentes, a senhoria era um negócio. À medida que as comunidades camponesas se tornavam menos famélicas, seus defensores procuravam extrair cada vez mais. Introduziram no costume seu direito de "talhar", como o vocabulário da época dizia sem rodeio, de tomar à vontade. Muitas comunidades, porém, se rebelaram.

Esse sistema de exploração teve forte influência sobre a evolução econômica e social das regiões da França. Alimentou a generosidade dos senhores e as dilapidações dos cavaleiros. Também teve o efeito de nivelar a classe dos explorados. Por um lado, igualmente percebidas em todos os lares camponeses, as exações, cobranças rigorosas de taxas, aplainaram as distinções jurídicas entre os livres e os outros: no curso do século XI, caíram em desuso os antigos vocábulos que designavam os escravos. Por outro, elas foram, nos primeiros tempos, pesadas demais para reabsorver os desvios de riqueza entre aqueles que os cavaleiros designavam por "rústicos". Enfim, cavaram um fosso profundo entre os explorados e aqueles, gente de oração e gente de guerra, isentos de descontos graças aos serviços que deviam prestar e pelos quais cada um recebia sua parte. Pela fiscalidade senhorial, a sociedade se dividiu em dois campos. De um lado, a solidariedade na resistência. De outro, a altivez do privilégio e o desprezo pelos que dele não participavam.

Os escribas denominavam distrito, "estreito" (do latim distringere) o território protegido pela torre. A ordem era estabelecida pela coação implacável. Para os camponeses e os viajantes, o homem que comandava a fortaleza era o dominus, o dono. Mas, na linguagem falada, era o senhor, vale dizer, o mais velho. Os cavaleiros eram igualmente coagidos, mas por um impulso livre do coração. Pressupunha-se que amavam o homem que os reunia sob o seu estandarte, tal como numa casa os jovens amam o idoso. Essa relação unia os homens do mesmo sangue.
Como os cavaleiros do cantão se tornavam quase filhos seus pela homenagem, o senhor estendia sua justiça sobre eles. Entretanto a exercia com prudência, com flexibilidade. A generosidade do senhor mantinha a lealdade dos vassalos. Ele devia distribuir o que extraía do seu poder. A única coerção que a cavalaria suportava no espaço restrito do distrito procedia da reciprocidade do dom. Esperava do amo da torre o prazer, os festins, mulheres, o encasamento, o feudo enfim, a participação nos lucros da exploração senhorial. Em troca, ele oferecia ajuda e conselho. Todavia o prazer era, acima de tudo, o de combater, de juntos partirem, de atacarem, de pilharem em terra alheia. Todo senhor devia "fazer o bem" aos seus homens concretamente. Sem generosidade, não havia serviço.

Toda a ordem se apoiava nos castelos, que se integravam à cidade, isto é, ao vestígio mais evidente das antigas estruturas estatais, e seus guardiões deviam ao príncipe uma fidelidade de Estado. Seu encargo era considerado uma "honra", e o que se lhes concedia no castelo era tido por um "fisco". Em contrapartida, os auxiliares desses guardiões eram definidos como "vassalos", concessionários de um "feudo", pelo qual participavam do poder de coerção que emanava da torre e do que ele produzia.

O dever do "fiel", daquele que jurava fidelidade ao seu dominus, era o de abster-se de lhe causar dano. A fidelidade não era senão segurança jurada. Mas, se o fiel recebesse um "encasamento" do senhor, não bastava apenas se abster de fazer o mal, cabia-lhe fazer o bem para merecer a benfeitoria. Ele devia ajuda e conselho ao senhor desde que este lhe dispensasse tratamento equivalente. Do contrário, seria caso de má-fé. Ele era culpado. No entanto, o "encasado" que faltasse ao dever era mais culpado ainda: por ser pérfido e perjuro. O senhor apenas prometia. O homem jurava. E o perjuro era passível de castigo infligido em nome da "lei divina".

-Tradução de Luiz A. de Araújo

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Esquerdas x Direitas: Crise das bússolas

Desde a década de 1990, entrou em colapso a dicotomia ‘direita x esquerda’, que orientou por séculos a estrutura do pensamento político moderno. No cenário brasileiro, como se reorganizou essa polarização?

Bruno Garcia

"Direita ou esquerda?", pergunta o repórter ao ex-jogador de futebol Jardel, então candidato a deputado estadual (PSD/RS). "Pode ser de cabeça?", desconversa, lembrando seus bons dias de centroavante. O jornalista, então insiste na pergunta. "Eu me considero de direita porque sou um cara direito demais, bom demais". A resposta é, no mínimo, inusitada. Nada chocante, considerando a enorme reputação de frasista involuntário que o ex-centroavante gremista teve ao longo da carreira. O leitor que quiser caçoar da infeliz ingenuidade de Jardel tem razões para isso. Porém, sugiro como exercício que tentem (honestamente) responder à mesma pergunta.
A tarefa não é fácil. Para começo de conversa, justificar a escolha nos obriga a uma definição mínima acerca dos contornos de ambos os lados, hoje. É ai que a coisa se complica. Não há metalinguagem, um ponto neutro estável ou sequer um consenso quanto a seus significados. Pense na distribuição partidária brasileira e nos temas que geralmente são associados a ambas as orientações.
De um lado, o PT, que apesar de confiante na sua identidade de esquerda e suposto estreito diálogo com os movimentos sociais, se mostrou incapaz de lidar com as demandas populares de 2013. Essencialmente, o único braço do Estado que tocou as manifestações foi a área de segurança pública. Do outro lado, o PSDB, que nominalmente tem origem na Social Democracia europeia (de esquerda), mas foi responsável pela abertura do país ao Neoliberalismo na década de 1990 e é tratado por grande parte da imprensa e de seus partidários como alternativa da direita. Contudo, políticos mais conservadores, aqueles que frequentam todo tipo de partido, insistem que no Brasil não há direita, e proclamam a urgência de se fundar uma. São os mesmos que, de quando em quando, gostam de lembrar que estamos a caminho de nos tornarmos uma nova Cuba ou Coréia do Norte.

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No cenário internacional, a situação também não é a mais fácil. Pense por exemplo nas direitas nos Estados Unidos e na Europa. Os conservadores norte-americanos, fiéis a uma rígida política de ajuste fiscal, se escandalizam com qualquer atuação mais enfática do Estado. Não passam muito tempo sem associar Obama e o Partido Democrata ao socialismo, especialmente depois da intervenção do presidente nos planos de saúde.
A extrema direita europeia, por outro lado, está longe de querer abrir mão do Estado de bem estar. Muito pelo contrário.Grande parte da retórica da Frente Nacional, na França, e do FPÖ, na Áustria, está fundamentada na iminência da perda desses benefícios pelos nativos. Tudo graças a um suposto abuso por parte de imigrantes.
Aparentemente, dar sentido à dicotomia hoje não é tão fácil quanto parece. Quando nossos conservadores autóctones decidem afirmar que não existe uma direita "autêntica" no Brasil, quem eles tratam como paradigma? Seria o Tea Party  norte americano? Geert Wilders e sua engenhosa direita progressista na Holanda? Talvez a escola econômica austríaca, com grande reputação na imprensa conservadora, mas desprezada pelos conservadores do seu país natal? Enfim, o cenário é confuso, e a multiplicidade de alternativas e correntes contemporâneas contrastam com a naturalidade com que usamos os termos. Talvez por estarmos tão acostumados com eles. Fruto de um tempo quando não era preciso perguntar pelo seu significado.
Guerra Fria
Até outro dia, tudo parecia ter seu lugar. Por quase cinquenta anos a divisão entre esquerda e direita funcionou com enorme clareza. Russos praguejavam contra a imoralidade do imperialismo norte americano, jovens idealistas sonhavam com a revolução internacional nos países de terceiro mundo enquanto seus pares conservadores, volta e meia, alertavam para os perigos dos comunistas, que de tão perversos, comiam até criancinhas. A Guerra Fria marcou uma espécie de época de ouro desse embate.
Socialistas, defensores ou não dos regimes em vigor, membros da social democracia europeia e partidos de orientação marxista na América Latina não tinham nenhuma dúvida quanto à sua orientação. É verdade que depois da década de 60, quando boa parte dos intelectuais marxistas ocidentais perderam o encanto com as notícias vindas da União Soviética, a Nova Esquerda se fragmentou em múltiplas abordagens. Ainda assim, essa falsa diáspora não fez com que sua orientação fosse, em nada, confundida com "o outro lado".
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Algo equivalente parece ter ocorrido com a direita. Nunca houve uma grande unidade entre as diversas variantes no Ocidente. Mas, de um modo geral, a defesa de um certo tipo de liberdade individual e um conjunto de direitos fundamentais serviram, por muito tempo, como tempero para aquilo que, de fato, os definia: o confronto com os soviéticos e seus países satélites.
Isso até 1989. A inesperada avalanche, que teve como pontos centrais o fim do comunismo europeu, a reunificação alemã e o decisivo colapso da União Soviética legou orfandade à boa parte da esquerda internacional. Sem a referencia do seu duplo, a direita também naufragou embriagada com o que julgava ser sua vitória decisiva. Nos Estados Unidos, um lendário professor da Universidade de Stanford decretou a vitória decisiva da democracia liberal sobre qualquer outro regime político. Francis Fukuyama e seu polêmico argumento do Fim da História viraram sinônimo de um triunfalismo liberal que se estenderia até meados da década de 1990. O término anunciado pelo professor dizia respeito ao ponto final no enfrentamento entre comunismo e capitalismo, Hegel e Marx, ou, como muitos preferiram, Direita e Esquerda.
Depois do fim da história
No fundo, por mais exagerado ou precipitado que Fukuyama possa ter sido, parece inegável que seu argumento catalisava um conjunto de visões que, naquele momento, esperavam ou temiam que ele tivesse razão. Não foram poucos os que reagiram ao argumento. Os ataques de Jacques Derrida, na França, ou Perter Sloterdijk, na Alemanha (para ficar entre os pensadores mais relevantes), demonstravam que o fundamento por trás do triunfo final da democracia liberal ganhou relevância e adeptos a ponto de merecer ser respondido.
No que diz respeito à velha rivalidade, o ponto fixo que fundamentava sua estabilidade se perdeu definitivamente. A esquerda, tal como entendida anteriormente, estava desacreditada, e a direita, na ausência do seu duplo, apaziguada.
No lugar de um conflito ideológico global, a comunidade internacional criada pelo otimismo dos anos 90 criou uma enorme obsessão por consenso. Os Direitos Humanos, largamente utilizados por dissidentes anticomunistas no Leste Europeu durante seus processos de transição na década de 1980, se lançaram como argamassa existencial conferindo unidade à comunidade internacional, depois de meio século de mundo bipartido. O Neoliberalismo, que galgou seu caminho no final dos anos 70 e 80, com Ronald Reagan e Margaret Thatcher, recebeu a alcunha de consenso, em 1994, como uma cartilha de orientação para economias em desenvolvimento.
Para onde migrara a esquerda nesse mundo? Na falta de grandes argumentos que fizessem frente à coerência ideológica do progresso liberal, e com o fardo das injustificáveis atrocidades das experiências comunistas, a oposição ao mundo que parecia dar certo se revelava, no mínimo, um contrassenso. Em outras palavras, direita e esquerda já não eram mais rivais. Surgiram os primeiros gritos que anunciavam a derrota da esquerda. Os mais entusiastas diziam que, vivíamos o fim das ideologias.
Deputado Jair Bolsonaro / Agência Brasil
Deputado Jair Bolsonaro / Agência Brasil
Redefinindo parâmetros

Diante desse cenário, a pergunta sobre as ruínas da velha dicotomia dividiu pensadores em duas correntes. A primeira, protagonizada pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, considerava que, diante das circunstâncias, não fazia mais sentido se perguntar pelas distinções entre direita e esquerda, ou melhor, que tais categorias não mais operavam num sentido paradigmático as complexas relações políticas do inicio dos anos 1990. Socialismo, Conservadorismo e Neoliberalismo já não mais representavam pontos fixos estáveis o suficiente para compreender o mundo contemporâneo. Em Para além da esquerda e da direita, publicado em 1994, Giddens procurava fundamentar uma forma para escapar da divisão tradicional. Sua saída era unir o que chamou de pensamento conservador, representado sobretudo pelo respeito à solidariedade que dá liga à sociedade, a demandas particularmente associadas ao socialismo. O resultado receberia alguns anos depois o nome de Terceira Via, e seria experimentada por Tony Blair.
Do lado oposto, o jurista italiano Norberto Bobbio, no mesmo ano, publica Direita e Esquerda: Razões e significados de uma distinção política, no qual defende a relevância da dicotomia tradicional, oferecendo, a partir do novo cenário, um argumento mínimo para situar seu debate contemporâneo. De acordo com Bobbio, ambos os lados podem ser definidos pela sua relação com o que chamou de paradigma da igualdade. De um lado, a direita afirma que a igualdade não só se trata de uma utopia perigosa, como afirma que, o progresso depende, em grande parte, de uma certa assimetria social, algo que inspira, por si só, a competitividade e inovação. Em outras palavras, o progresso se deve, até certo ponto, ao ímpeto e o espírito criativo e empreendedor resultantes de desafios sociais a serem enfrentados. Do lado contrário, a esquerda trabalha com o paradigma da igualdade como propósito. Não se trata, entretanto, de igualar todos em absolutamente tudo, mas, simplesmente, de acreditar que a política tem como objetivo a redução das desigualdades sociais.
Mesmo discordando do argumento central do pensador italiano, Giddens reconhece a associação da esquerda ao paradigma da igualdade. Embora seu caminho seja consideravelmente distinto, a principal discordância não é exatamente de ordem metodológica. Giddens apenas não enxerga no conflito entre esquerda e direta a vitalidade de outrora. Sua saída não passa de uma síntese entre os opostos, e a igualdade, um entre muitos desafios.
Brasil
Levando a sério os argumentos propostos acima, duas observações sobre o debate do tema no Brasil merecem ser feitas.  A primeira diz respeito à particular distribuição de renda do país. Desigualdade social é uma expressão relativamente nova para políticos, imprensa e mercado editorial norte-americanos; raramente passa de um jargão acadêmico em solo Europeu, mas parece ser chave na descrição do Brasil. Uma das maiores economias do mundo que frequenta todos os rankings de pior distribuição de renda – está em segundo colocado, segundo pesquisa realizada pela OCDE, em 2013.
Não que seja impossível existir uma direita no país, mas diante desse cenário abjeto, como não defender o combate à desigualdade como prioridade?
O desafio da direita no Brasil passa necessariamente pelo confronto com esse tipo de dilema. Ainda que se reconheça a desigualdade como condição natural, não defender sua redução no país sugere um problema mais moral do que político. E, ao contrário do que dizem os teóricos conservadores nacionais - aqueles que reclamam da inexistência de um pensamento de direita autóctone - superar esse dilema implica em argumentos mais sofisticados do que vomitar a escola econômica austríaca como plataforma de um liberalismo que nunca existiu no país.
Ao contrário das experiências europeias, onde a ascensão da burguesia correspondeu à uma mudança estrutural no Estado, com um novo conjunto de regras e regimes de representatividade, o estado brasileiro forja o industrial nacional. Em outras palavras, o burguês brasileiro foi vertebrado pelo próprio Estado, e, desde então, permanece numa relação promíscua de clientelismo e dependência mútua. Vargas foi só o primeiro, o pai de um desenvolvimentismo levado a cabo pela enfática participação do Estado. Seus herdeiros não só foram incapazes de desfazer a teia varguista, como a enfatizaram, conforme mostrou o Fórum – Vargas do Além, que saiu na Revista de História de outubro.  
Na lógica desenvolvimentista, o combate à desigualdade é o subproduto do crescimento econômico. Ou melhor, só se reduz desigualdade social, com crescimento econômico. Aqui reside a segunda observação. Aqui, direita e esquerda dão as mãos. É evidente que há uma enorme variação entre os diferentes projetos políticos do país no século XX, mas, de um modo ou de outro, todos giraram em torno daquela velha ideia de crescer o bolo para depois repartir.
Por mais que escutemos isso diariamente, na atual conjuntura isso parece ser um grande problema. Como lembra o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a lógica de que para retirar pessoas da pobreza é preciso crescer economicamente é dependente da ideia de que crescimento econômico é infinito. O ponto aqui, além do esgotamento dos recursos naturais (algo óbvio o suficiente para não precisar ser discutido aqui), é o projeto, seja da esquerda, seja da direita, de inclusão social (exclusivamente) pelo consumo.  Viveiros de Castro lembra que há um imenso contingente de pessoas cuja vida não passa necessariamente pela transformação em consumidor ativo. Entre eles, lembra o antropólogo, estão os índios. Depois de que perdem a terra, a língua e a religião, lhes sobram a mão-de-obra, e, de índios viram pobres.
Seringueiros, populações ribeirinhas e comunidades indígenas na Amazônia podem receber algum benefício social após perderem seu lugar para barragens, imensas plantações de soja e fazendas de pecuária. O sudeste precisa de eletricidade e o país de exportação. O meio ambiente não tem qualquer relevância. Curiosamente, lembra Viveiros de Castro, quando mais se redistribui, menos precisa crescer. Frente a economistas e banqueiros vestidos de bem sucedidos, isso tudo pode parecer um discurso utópico ou fora da realidade. A cidade de São Paulo sem água, talvez, não seja suficiente para convencer o leitor da seriedade desse argumento, portanto descrevo aqui um exemplo distante.
 Há poucos meses, uma capa da Spiegel, uma das principais revistas na Alemanha, me chamou atenção. A reportagem destacava que, como resultado da crise econômica de 2008, os jovens alemães estavam criando hábitos menos dependentes do consumo. Em outras palavras, ao invés de iniciarem um processo de hiper-especialização ou de submissão ao subemprego, uma nova geração abriu mão da febre de consumo. Se por um lado a crise por lá não chegou a atingir os níveis descomunais de países como Espanha, por outro a Alemanha é um país com menores níveis de desigualdade e, portanto, menor dependência de um constante crescimento econômico. O resultado é a possibilidade de múltiplas formas de vida, que não a de um consumidor radical. Berlim já havia assistido às ocupações ao longo das décadas de 1980 e 90. Hoje, já se vê cooperativas fundadas por grupos de indivíduos que não se percebem parte da vida trabalho-consumo e tem suas residências como parte da paisagem urbana da cidade (e dos guias de turismo), sem que tenham que abrir mão do seu projeto de vida.
Em que pese suas diferenças, esquerda e direita se abraçam no que Viveiros de Castro chamou de "crescimentismo". Significa dizer que o modelo de desenvolvimento está acima da dicotomia. A dificuldade em determinar o que cada lado representa, significa e defende hoje não livra nosso estimado Jardel do constrangimento por sua resposta, mas nos coloca numa instável e delicada posição ao nos definirmos como direita ou esquerda. Afinal, ainda que a formulação proposta por Norberto Bobbio para diferenciar as duas orientações faça sentido, é possível que, num futuro próximo, elas voltem a ter sua relevância disputada. 
Bruno Garcia é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional e autor da dissertação “Cuba and Human Rights: Between US and EU support and pressure” (Masarykova Univerzita, República Tcheca, 2009).

Direitas x Esquerdas : A força das circunstâncias

Da Era Vargas à redemocratização, as definições de direita e esquerda estiveram marcadas pela falta de liberdade política e pelo ideal de desenvolvimento

Nashla Dahás
Cerca de 60% da população brasileira era rural e analfabeta quando a "Revolução de 1930" estourou. Quando o movimento militar sob a liderança civil de Getúlio Vargas tomou o poder, ditadura, autoritarismo, golpe, democracia e comunismo eram percepções muito presentes no vocabulário político e no imaginário social da época. Mais do que as categorias de “esquerda” e de “direita” como símbolos de distintos projetos políticos. A participação política popular era quase nula, a não ser sob a forma de manifestações públicas quase sempre violentamente reprimidas. Também predominava certo consenso sobre o "atraso brasileiro", independente da filiação partidária. O que os diferenciava, em grande medida, era a forma como cada um propunha a palavra que tinha ar de mágica, "desenvolvimento".
No campo intelectual, por exemplo, Oliveira Vianna caminhou no sentido nacionalista e autoritário ao propor "um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional".Em Instituições Políticas Brasileiras (1949)o autor afirma que o Estado deve ser o principal promotor da integração nacional, o agente por excelência da "formação da nação", único capaz de superar o impasse criado pela distância entre o "Brasil real" e o "Brasil legal". A população, nesse caso, era desconsiderada como sujeito político e agente das transformações.
Sérgio Buarque de Holanda, de outro modo e com sua "metodologia dos contrários", para utilizar a expressão de Antônio Cândido, sugeriu que os processos que teriam condicionado nossa formação social seriam históricos - a nossa herança ibérica e colonial -, e, portanto, sujeitos a transformações. A seu ver, a articulação histórica no Brasil entre a cultura política e social "da personalidade" com a estrutura social e econômica marcada pelo "ruralismo" deveria ceder lugar para um novo centro de gravidade, mais voltado para os centros urbanos. Isso significaria um "lento cataclismo" pelo grau de mudanças que provocaria.

Universo político com Vargas
Retrospectivamente, é comum afirmar que Vargas foi ambíguo. Foi vários ao mesmo tempo: ditador, pai dos pobres e, por que não, da esquerda e da direita. O fato é que naquele momento essas divisões não tinham conotações definidas como as que viríamos a descobrir nos anos 1960. Também não seriam fixas, como talvez só hoje podemos perceber. Entre outras razões, Getúlio Vargas foi “muitos” porque muitos eram os caminhos possíveis diante da inexistência de uma sociedade civil reivindicativa, de uma burguesia emergente indefinida, e das propostas alternativas de governar; todos unidos, no entanto, pelo diagnóstico do "atraso" brasileiro, e pelo fascínio exercido pelo "desenvolvimento".
Nos anos 30 do século XX, desenvolvimento significava industrialização, máquinas, e produção de mercadorias em massa, não apenas na América Latina, mas em quase todo o mundo. Vargas foi realmente grande ao perceber (como nenhum outro político de sua geração) como lidar com o que lhe pode ter parecido um entrave ao modelo de desenvolvimento econômico estatista e industrial que pensara para o país. Segundo Jorge Chaloub, se tratava de um grupo social até então visto apenas como fonte de distúrbios para a ordem oligárquica que o antecedeu: as grandes massas urbanas. Às lutas desses grupos, o presidente respondeu com a concessão dos direitos trabalhistas garantidos pela CLT até hoje. Pela primeira vez na história republicana o Estado olhava para as pessoas comuns – que, é claro, já reivindicavam estes direitos. Essa mudança não poderia deixar de alterar o universo político, social e individual dos brasileiros. Mas ela não veio só; um quadro complexo de tradições políticas teria início ali.
Em primeiro lugar, o viés economicista pelo qual passava a noção de desenvolvimento nacional, voltado, sobretudo, para a construção e associação estatal com indústrias de base e de bens de consumo. Depois, o fazer político entendido como capacidade de articulação dos mais diferentes setores sociais: camponeses, trabalhadores urbanos, empresários, latifundiários, classes médias. Ou seja, política como ausência de conflitos, pelo consenso – ou pela força, tal como o fez Getúlio Vargas ao longo dos seus quase 20 anos no poder. Por fim, a tendência à infantilização do eleitorado, frequentemente despersonalizado, chamado de “massa” e tratado de forma paternalista; sujeito à carteira de trabalho e título de eleitor aprovado pelo Estado, inexperiente politicamente e ao qual, num futuro próximo, as esquerdas tenderiam a dirigir um discurso de "instrução", enquanto as direitas falariam de "manipulação".
UDN x populismo
Em 1932, um novo Código Eleitoral instituiu o alistamento eleitoral obrigatório, assim como o voto, agora secreto, e ainda o sufrágio feminino e a justiça eleitoral. Analfabetos (mais da metade da população) e baixas patentes militares continuaram excluídos da brecha de participação política que se abria com a legislação. Sobre essa história, é difícil tecer comentários no que diz respeito à percepção popular, já que as pessoas comuns jamais foram consultadas sobre o nascimento desse direito-dever, e entre outubro de 1934 e dezembro de 1945 as eleições estiveram suspensas no país. Apenas em 1946, após quase oito anos de ditadura, o Código seria retomado e ainda parcialmente, pois a Constituição daquele ano criou novos dispositivos eleitorais que lhe permitiram, por exemplo, cassar o registro do Partido Comunista Brasileiro. O que se pode dizer é que o fenômeno do "Queremismo" expressou elementos até então incomunicáveis da negociação entre o Estado e a Sociedade. A possibilidade da retirada de Vargas da cena política levou multidões às ruas "pela constituinte com Getúlio", ou até pela manutenção, fosse como fosse, de Getúlio no poder. Sua persona se consolidaria ali, após o Estado Novo e no momento da primeira redemocratização, como um marco fundador de sentidos para o "ser" de esquerda e de direita tal como conhecemos hoje.
O historiador Jorge Ferreira costuma lembrar a perplexidade da oposição a Getúlio diante das manifestações de afeto popular após o período ditatorial. Teria nascido dessa incompreensão política a categoria de interpretação intelectual "populismo". Ou seja, o atendimento pontual de necessidades populares, aliado ao discurso dos "ricos contra os pobres", dos "grandes contra os pequenos" - que vitimiza e heroiciza ao mesmo tempo -, poderia se colar a uma estrutura política, econômica e social bastante impopular e até autoritária.  A política, nesse caso, se vincularia mais ao discurso do que à prática, mas dependeria inevitavelmente da capacidade de decodificação das demandas populares em cada momento.
O “populismo” nasceu, portanto, na academia, mas foi como prática social que seus desdobramentos alcançaram dimensões atemporais. Com o fim Segunda Guerra Mundial e o consequente fim da ditadura estadonovista no Brasil, foi restaurada a arena política pluripartidária. A UDN, União democrática Nacional, foi até 1964 o maior partido de oposição a Vargas, e um dos primeiros a tornar “populismo” um xingamento, uma desqualificação política que incluía a “manipulação do povo” e a “demagogia política”. Representante do liberalismo econômico, o partido defendia o desenvolvimento pela via da livre associação das riquezas nacionais ao capital internacional, além de um profundo anticomunismo. Sob a bandeira da Democracia, a UDN participou de todas as tentativas de golpe até 64, e seu nome mais conhecido nacionalmente, o jornalista Carlos Lacerda, era inimigo público de Vargas e do “populismo”.
Golpismo, antivarguismo, anticomunismo e antinacionalismo udenistas apareceram naquele cenário como ameaças claras a toda a população para quem Vargas significou um marco de cidadania, para os comunistas e socialistas do PCB e de outros partidos menores, para o nacional-estatismo trabalhista do PTB, para os supostos democratas do partido de latifundiários PSD - Partido Social Democrático. A UDN, naquele momento histórico, conseguiu reunir todas as pautas da agenda conservadora brasileira desde os tempos da escravidão, e se tornaria símbolo radical do que é ser de direita no país.  
Sobre aquilo a que hoje chamamos de esquerdas, retrospectivamente, poderíamos pensar que após as experiências do nazismo alemão, do fascismo italiano, da morte em massa por motivos racistas na Segunda Guerra, e, internamente, após a ditadura varguista, seu nascimento em tempos democráticos seria marcado pelo desejo de liberdade. Tal como uma responsabilidade moral após os regimes autoritários. Mas não há o menor indício histórico de que, em qualquer lugar, a política obedeça à lógica da coerência. Foi a necessidade, intuitiva e estomacal, que ganhou lugar principal nos discursos que se diziam representantes das classes populares.
A “luta”, como se dizia à época, se deu pelo desenvolvimento econômico de bases industriais, liderado, porém, pelo “proletariado” e contra o “imperialismo”, principalmente norte-americano em tempos de Guerra Fria. A Reforma Agrária que nos anos 60 seria defendida pelas Ligas Camponesas “na lei ou na marra” seria o elemento mais desestabilizador das alianças políticas que colocam UDN à direita, PSD ao centro e PTB-PCB à esquerda. O objetivo da reforma trabalhista, no entanto, era estimular a formação de grupos de pequenos proprietários a partir da desapropriação por interesse social de latifúndios até então improdutivos que beiravam as estradas, rodovias e açudes construídos pelo Estado. Segundo o presidente trabalhista entre 1961 e 1964, João Goulart, a formação de pequenos proprietários acalmaria os ânimos no campo, estimularia a produção agrícola e desenvolveria o capitalismo de forma “mais humana”. Até o golpe civil-militar que instaurou mais 20 anos de ditadura no Brasil, as esquerdas democráticas – que desde 1958 contariam com o apoio do PCB -, defenderiam reformas no capitalismo que proporcionassem condições consideradas mais igualitárias. 
A esquerda de João Goulart
Em 2007, Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis, dois historiadores especialistas no período que vai de 1945 até o tempo presente, com variados temas e problemáticas, publicaram coletânea de três volumes intitulada As esquerdas no Brasil. Para avançar nas questões propostas, os autores pressupõem a necessidade de definir o que é ser de esquerda, e tomam emprestado o conceito de Norberto Bobbio ao qual somam alguns elementos. Ficou assim: ser de esquerda inclui as forças e lideranças políticas animadas e inspiradas pela perspectiva da igualdade, ou pela mudança – reformista ou revolucionária – em direção à igualdade, ou à crítica aos valores e às propostas do liberalismo, visto, por sua vez, como fonte de desigualdades, fonte e força de conservação da ordem tradicional.  Sobre o período que se estende da Constituição de 1946 até o “golpe civil-militar” de 1964, também chamado de “República Democrática”, afirmam tratar-se de um momento em que as esquerdas apresentaram várias propostas de reforma da sociedade ou de construção de novas alternativas. No conjunto, teriam sobressaído os comunistas do PCB e os trabalhistas do PTB, que, aliados no plano sindical e no campo político, teriam apresentado uma alternativa de poder.
O fato é que nos quase vinte anos que se seguiram à democratização (1945), o conjunto de propostas dominante no imaginário dos grupos institucionalizados que diziam representar a esquerda brasileira (vale lembrar que em 1946 o registro do PCB foi cassado), gravitou entre a possibilidade de ser proprietário de alguma coisa para além de sua força de trabalho e a expropriação do poder político concedido aos estrangeiros através da permissão de suas remessas de lucros garantidos pelas filiais nacionais às matrizes de origem externa. Ser de esquerda, para a maioria da população, configurou-se como lutar contra os ricos para ser proprietário também. A igualdade, ao que parece, tinha a ver com ser igual aos ricos, ter suas boas condições de vida, de trabalho e de lazer – tratava-se menos de uma alternativa ao modelo de sociedade capitalista do que de uma reconfiguração do mesmo modelo. Nos anos de 1960, cerca de 40% da população era rural, analfabeta e sem direito ao voto.
Uma “oxigenação” da vida social e do cenário político marcada pelo conflito ganhou dimensão inequívoca e espontânea apenas a partir de 1961, quando o herdeiro político de Getúlio Vargas tornou-se presidente do Brasil. João Goulart não foi eleito para esse cargo; era vice quando Jânio Quadros, apoiado pela UDN nas eleições de 1960, renunciou. A primeira reação ao retorno do “populismo varguista” no Brasil, no auge da disputa entre democracia liberal e comunismo no plano internacional, veio das direitas anticomunistas. Ministros militares tentaram inviabilizar a posse de Jango em razão de seus compromissos históricos com o movimento sindical “baderneiro” e “pelego”.
Cinco anos antes, Goulart havia sido eleito vice-presidente na chapa de Juscelino Kubitscheck, do qual se diferenciava pela relação mais próxima com os movimentos sociais. Ao que tudo indica, Jango cumpria o papel de equilibrar o governo apoiando greves e apresentando e reapresentando propostas consideradas mais populares ao Congresso Nacional. Estas proposições giravam em torno das relações de propriedade, controle do capital externo, relações trabalhistas e distribuição de renda. Enquanto isso, JK “desenvolvia” o país numa velocidade de 50 anos em apenas 5. Capital e indústrias internacionais ganhavam o mercado brasileiro em associação com empresários e latifundiários nacionais, eletrodomésticos e automóveis satisfaziam as classes médias, e a televisão começava a promover esses bens à categoria de sonhos de consumo e realização pessoal de todas as classes e grupos. 
A posse de Goulart vinculou-se à condição parlamentarista, mas soou como uma vitória aos ouvidos das classes populares. Nos pouco mais de dois anos seguintes, a sociedade experimentaria movimentação política de natureza popular inédita. Surgiram, por exemplo, as organizações de esquerda revolucionárias em defesa de um sistema socialista de governo, ainda que bem pouco definido programaticamente, mas estimulado pelas possibilidades que a Revolução Cubana despertava – um movimento que libertava o povo da opressão social.
Em menos de dois anos, todas as possibilidades, foram, no entanto, eliminadas do cotidiano político. Em duas décadas, elas seriam eliminadas do imaginário social. É claro que mesmo as organizações brasileiras menos institucionalizadas pensavam dentro de parâmetros capitalistas de produção. A revolução era entendida mais como uma redistribuição radical de bens e riquezas do que como uma via alternativa de ser e de viver. Parar a produção industrial, por exemplo, era impensável, mas a ideia era redistribuir o controle dos conglomerados industriais “exploradores” e “imperialistas”. Sem dúvida que mesmo a viabilização das reformas de base do latifundiário João Goulart teria sido uma revolução na tradição autoritária e elitista da cultura política brasileira. Mas Goulart assinou a Lei de limitação das remessas de lucros para o exterior ainda em 1961; em 1964 ainda não a havia regulamentado para que entrasse em vigor. Todos perderam a paciência e, no momento de crise e de polarização política, as forças da tradição pesam imensamente.
Brasília - Marco entre a ditadura e a democracia, Constituição de 1988 completa 25 anos. 1 de Fevereiro, 1987 Constituinte instalada, o povo lota a Esplanada dos Ministérios
Brasília - Marco entre a ditadura e a democracia, Constituição de 1988 completa 25 anos. 1 de Fevereiro, 1987 Constituinte instalada, o povo lota a Esplanada dos Ministérios

Polaridade nos anos de chumbo
À direita e à esquerda, exclamavam os jornais da época, esperemos um golpe. À direita e à esquerda, sim, mas em desigualdade clara de forças. UDN e PSD aliaram-se convocando a moralidade na defesa de seu programa político econômico. Ao lado do antipopulismo, do anticomunismo, antivarguismo, antinacionalismo, e do liberalismo econômico, ser de direita incluía agora a defesa da família, da ordem, da propriedade, da moral e dos valores cristãos – de forma muito semelhante ao que podemos observar hoje. Com as esquerdas ficaram as reformas que não vieram, propostas indefinidas de revolução e o discurso da mudança, seu elemento mais poderoso e mais temido, também ainda hoje. O que se pode dizer é que um caminho à esquerda talvez pudesse ter marcado a história do Brasil, não fosse o curso daquele processo mais determinado pela necessidade e miséria populares, do que pelas exigências de libertação e de mudanças. Escapou aos grupos que se diziam mais revolucionários a questão até hoje não resolvida do sentido e do significado da mudança política para as esquerdas. O novo início contido na defesa da revolução socialista acabou mimetizando em linguagem, organização interna e despreparo para a ação política, as esquerdas consideradas tradicionais e reformistas.
Nas décadas que se seguem, em meio à ditadura, é difícil imaginar outra posição possível às esquerdas de qualquer natureza, que não fosse a resistência, o retorno à democracia que permitisse ao menos a liberdade de expressão e de organização. Em 1968, quando todo o mundo ocidental vive a descoberta de muitos outros conflitos dentro do conflito de classes - a luta das mulheres, dos negros, dos índios, e dos homossexuais, por exemplo -, o Brasil passa por seu momento repressivo mais duro com o decreto do Ato Institucional Nº5.  Foi exatamente nesse ano que surgiram outras formas de pensar as diferenças sociais, não mais reduzidas à divisão entre ricos e pobres – isto é, não apenas uma reconfiguração do modelo capitalista. Nas palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, naquele momento “a pobreza deixava de ser uma categoria econômica, tornando-se uma categoria existencial que envolve a justiça. E a justiça não é só dar dinheiro para o pobre, mas reconhecer todas as diferenças que eram ignoradas e que explodiram”. Em 68, o socialismo começou a se desacreditar e a política de esquerda não pôde mais ser feita como antes. Mas nós estávamos blindados.
A repressão violenta e arbitrária não impediu que no dia 26 de junho de 1968, cerca de cem mil pessoas ocupassem as ruas do centro do Rio de Janeiro e realizassem o mais importante protesto contra a ditadura civil-militar. A manifestação cobrava uma postura do governo diante das demandas estudantis e, ao mesmo tempo, refletia o descontentamento com a vida em tempos de ditadura, por parte de intelectuais, artistas, padres, grande número de mães, entre outros grupos sociais. Era o que era possível fazer, lutar contra a ditadura.
Oposição na redemocratização
Em 1985, quando o regime de exceção estendido por quase vinte anos cedeu lugar ao sistema democrático depois de um processo lento, “seguro” e gradual comandado pelos militares, ser de esquerda significava ter sobrevivido. Significava contentar-se com uma anistia nem ampla nem geral nem irrestrita e recíproca, como lembra a historiadora Lucília de Almeida Neves: “uma lei que anistiava envolvidos nos crimes da ditadura sem anistiar muitos dos seus atingidos: os presos, por exemplo, saíam das prisões pela redução das penas com a nova lei de segurança nacional, um ato que, por fim, confirmava as condenações; uma lei que ignorava os militares de baixa patente, ratificando, mais uma vez, a punição pela ousadia da recusa à hierarquia e à disciplina.”
Apesar de tudo, uma primeira “agenda democrática” havia sido cumprida, estávamos novamente em um contexto de liberdades políticas e individuais. Um parêntese muito importante, no entanto, se faz necessário. Na década de 1970, um filho de sertanejo, como narra a jornalista Eliane Brum, pega o rumo para São Paulo e lá se torna operário e depois líder sindical, na região até hoje mais industrializada do país. “Ele é filho de uma família retirante que queria primeiro fugir da fome, depois subir na vida pelo ingresso na fábrica, pela via do “progresso” e da industrialização”, conta a escritora. Casa melhorada, roupa boa, geladeira nova e cheia e um carro na garagem são os sonhos mais acalentadores daquele que se tornaria o maior líder entre as esquerdas não apenas no Brasil, mas na América Latina do século XXI.
Luís Inácio Lula da Silva comandou as maiores greves sindicais dos anos 70, em meio ao último extermínio dos integrantes do PC do B pela repressão militar no conflito que ficou conhecido como a chacina da Lapa, também em São Paulo. Por que Lula e seu movimento de esquerda são permitidos pela ditadura?  Porque os sentidos de “ser de esquerda” não são estáticos e têm sido construídos menos à luz da história e muito mais em função do presente. Naquele momento, inequivocamente, a referência era a democracia e não mais a revolução.
Quase trinta anos depois da redemocratização, a política real, prática entre as esquerdas, continua sendo pautada pela busca de igualdade em relação aos ricos, ou, na hipótese do antropólogo já citado, Eduardo Viveiros de Castro, em relação ao “branco”, ao colonizador, ao vencedor do jogo capitalista. Será que esse modelo continua fazendo sentido? Ou podemos nos perguntar o que é ser de esquerda, hoje?
Nashla Dahás é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional e autora da dissertação O Comício da Central: trabalhismo e luta política através da imprensa no Brasil. (1961-1964)
Saiba Mais:
RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). Nacionalismo e reformismo Radical (1945 – 1964). As Esquerdas no Brasil. vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
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CHALOUB, Jorge. “Dois liberalismos na UDN: Afonso Arinos e Lacerda entre o consenso e o conflito”. Revista Estudos Políticos, n. 6 (UFRJ, 2013).
DANOWSKI, Déborah, CASTRO, Eduardo Viveiros. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Instituto Socioambiental, 2014.

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Marcello Scarrone
Esquerda e direita no parlamento francês, século XVIIIEsquerda e direita no parlamento francês, século XVIII
No começo, foi simplesmente uma questão de assentos na sala de reunião. Do lado direito do presidente da assembleia, o grupo dos deputados mais voltados para a manutenção da ordem constituída, do poder do rei e dos valores políticos tradicionais; do lado oposto, os que buscavam mudanças e novidades, moderadas ou radicais que fossem, como, por exemplo, a adoção da forma de governo republicana. Assim se dividiu e articulou a primeira assembléia política da França revolucionaria, ainda em 1789, a Assembléia Constituinte, e, da mesma forma, as duas que sucederam a ela, nos anos seguintes, a Assembléia Legislativa e a Convenção Nacional, esta última numa França já republicana. Direita agora queria dizer os Girondinos, partido da alta burguesia, e esquerda os Jacobinos, representantes dos interesses da pequena burguesia e das camadas mais populares, com um centro (a Planície ou o Pântano) composto por membros que apoiavam ora um ora outro lado da assembléia. 

Termos como revolucionários ou progressistas, e, do outro lado, reacionários ou conservadores, acabam se tornando, em diferentes contextos, equivalentes respectivamente de esquerda e direita. Mas o vocabulário político, com seus sinônimos e antônimos, se complica com o passar do tempo, pelos modelos institucionais que aparecem e sobretudo pelo surgimento do movimento dos trabalhadores e de partidos  que se inspiram no socialismo, nas suas várias modalidades.Com o passar do tempo, tanto na França como em outros países, os termos esquerda e direita se tornam rótulos para definir tendências políticas opostas: sob a bandeira da esquerda se arrolam os revolucionários, os fautores de reformas radicais na vida social e econômica ou simplesmente os partidários de soluções políticas que visem uma maior justiça e igualdade social, ao passo que expoentes da direita são aqueles que encarnam a fidelidade às tradições políticas, a manutenção da propriedade privada ou a legitimação de hierarquias sociais constituídas, quando não até a instauração de regimes que tentam restringir liberdades e diretos da população.
Se, para os partidos burgueses existentes nos parlamentos europeus na segunda metade do século XIX, esquerda e direita significam tão somente uma maior ou menor ênfase dada à centralização política ou a certo tipo de programa social, o nascimento, a partir das últimas décadas do século XIX, e, mais tarde, a entrada na competição eleitoral de agrupamentos de inspiração socialista, vão fazer com que eles ocupem progressivamente o espaço político da esquerda, e, com sua multiplicação e suas ramificações, criem as condições para que se possa passar a falar de “esquerdas”, no plural. Assim, ao lado de socialistas, marxistas ou não, teremos anarquistas, sindicalistas revolucionários, e mais tarde comunistas, com suas subdivisões políticas e partidárias. 
Como a esquerda, também a direita se transforma numa família com muitos filhos. Dos simples restauradores de antigos privilégios e formas institucionais, aos propugnadores de governos fortes, centralizadores e autoritários nas mãos de membros das classes abastadas, aos expoentes de programas e governos ao serviço das classes burguesas,  até grupos, movimentos e partidos que têm como objetivo a aniquilação de qualquer presença política de esquerda.
Tanto nas fileiras de um lado como nas do outro, é frequente a tendência a enaltecer seu próprio status e a rotular ou desqualificar o adversário. Assim, teremos constantes afirmações de uns serem mais de esquerda que os outros, leia-se mais progressista, mais aberto às necessidades das classes mais pobres, com recíprocas acusações, dentro das próprias esquerdas, de conservadorismo, mentalidade burguesa ou revisionismo, ou de pertencimento à direita política, assim como nos setores de direita as tentativas de juntar todos os setores que lutam para liberdades e reformas numa genérica esquerda revolucionária a ser erradicada.
Partidos opostos, interesses parecidos
No panorama político brasileiro, o partido conservador e o partido liberal que se revezam no governo do Segundo Reinado (1840-1889), às vezes buscando até composições, não representam de fato uma verdadeira contraposição esquerda/direita, sendo ambos praticamente expressão dos mesmos interesses econômicos e sociais. Somente com o surgimento nos anos 70 do século XIX do Partido Republicano e com o aparecimento das organizações abolicionistas é que se configuram agrupamento com pautas políticas diferentes, mais avançadas, qualificáveis como progressistas.
Em tempos de Primeira Republica (1889-1930) a máquina do poder federal e local vai se ajustando com novos mecanismos de regulamentação política, sendo, porém, sempre oriundas das classes economicamente dominantes as forças que se alternam no comando da coisa pública. Os partidos socialistas, tímidos, com programas ainda pouco definidos, sem muito enraizamento nos setores operários e populares, ainda estão na periferia do poder e do parlamento. Anarquistas e sindicalistas revolucionários, com boa componente de imigrantes, agitam o mundo urbano e fabril, mas quase sempre se negando a uma entrada nas assembléias legislativas e nos correspondentes pleitos eleitorais – já que estes eram vistos como mecanismos da ordem que combatiam.
A esquerda, então, ou as esquerdas, ativas do ponto de vista da organização dos trabalhadores, da propaganda e da luta sindical, não têm representação política partidária. O nascimento do Partido Comunista, em 1922, muda o cenário, pois ao longo da década de 1920, o novo agrupamento político, embora frequentemente posto na ilegalidade, busca uma representação nas assembléias municipais e nacionais, geralmente através de frentes populares, como o Bloco Operário e Camponês, embora com êxitos pouco expressivos.
No plano internacional, a revolução bolchevique de 1917 na Rússia e o surgimento da União Soviética criam as bases para uma polarização que vai se radicalizando ao longo da primeira metade do século XX. O comunismo soviético se torna um exemplo a ser seguido, um modelo contagiante, com o nascimento de vários partidos comunistas. Socialistas sentam nos parlamentos de países da Europa ocidental, conquistando fortes eleitorados, nos anos imediatamente sucessivos à Primeira Guerra Mundial (1914-1918) revoltas explodem em vários países da Europa ocidental, trabalhadores e camponeses se organizam e movimentam espaços urbanos e rurais.
Saiba mais:
FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (Org.). A Formação das Tradições (1889-1945). (As Esquerdas no Brasil, v.1) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
TEIXEIRA DA SILVA, F. C. (Org.); VIANNA, A. M. (Org.); MEDEIROS, S. E. (Org.). Dicionário Crítico do Pensamento de Direita. Rio de Janeiro: Mauda, 2000.  
Diante de esquerdas que intensificam sua atuação, quase em resposta a elas, um novo ator surge na cena: o fascismo, na Itália, e seu irmão alemão, o nacional-socialismo. É a direita que se organiza e busca consensos e espaços de poder. Palavras de ordem e fundamentos do ideário fascista e nazista são a repulsa do sistema parlamentar burguês e da democracia liberal assim como de comunismo e socialismo, e a afirmação de um nacionalismo extremado, alimentado pela violência e o controle policial. Atrás destas duas formas de protagonismo político da direita, pode-se dizer da extrema direita, capazes de conquistar o poder e transformar o governo da coisa publica em regimes ditatoriais, outras organizações, entidades, agrupamentos de direita se formam em vários países europeus e extra-europeus, à imitação dos dois modelos. Por anos, diante desta escalada da extrema direita, as esquerdas europeias mostrarão suas contradições e divisões, até se lançarem em frentes unitárias de luta nos anos 1930. A Guerra Civil espanhola (1936-1939) será o espaço geográfico e político de um enfrentamento dramático entre os dois lados.  
No Brasil, surge na extrema direita a Ação Integralista, em 1932, à qual se contrapõem nos anos seguintes as frentes das esquerdas como a Frente Única Antifascista e depois a Aliança Nacional Libertadora.  A repressão do governo Vargas e depois do Estado Novo (1937-1945), ele também, em seus inícios, imitador dos fascismos europeus, cancelará da vida política nacional os dois lados opostos e suas organizações, prendendo ou silenciando seus expoentes. 
Marcello Scarrone é pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional e autor da tese “Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini. Percursos políticos do Antifascismo Italiano na Capital Federal (1922-1945)”, (UFRJ, 2013).