quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Sobre as comparações entre fascismos e comunismo

Por René Rémond

"Já fiz alusão à tendência manifestada por vários sociólogos norte-americanos de apresentar comunismo e fascismo como dois ramos do mesmo fenômeno, ao qual lhes apraz colar o rótulo de totalitarismo. E é verdade que não faltam analogias. Nos métodos de governo, entre o terror que Stalin desencadeia sobre a União Soviética e os processos policiais utilizados por Hitler, as semelhanças saltam aos olhos. O mesmo se observa nas estruturas, com a subordinação de todas as instituições legais regulares ao partido, um dos traços mais característicos desses regimes do século XX. Com os regimes fascistas de um lado e o comunismo de outro, já não existe independência nem imparcialidade do Estado. Este é conquistado pelo partido. Há, pois, analogias, mas elas permanecem exteriores; só dizem respeito aos comportamentos, aos processos, à morfologia dos regimes, mas não à sua natureza profunda.

A partir do momento que lhes escrutamos a inspiração e examinamos as ideologias, descobrimos diferenças consideráveis e até contradições nos fins e nas doutrinas. O marxismo-leninismo afirma a universidade da luta de classes; o fascismo procura suprimi-la. Para os fascismos, as diferenças entre as classes são superficiais em face da unidade nacional. Universalista, o marxismo-leninismo tem uma doutrina de valor universal e uma inspiração internacionalista. O fascismo não se preocupa em converter o planeta a seus princípios nem aos seus valores. Na própria media em que a democracia parlamentar representa para o adversário uma fraqueza, o fascismo se guardará de comunicar-lhe sua força.

O fascismo cultiva a diferença, é contra todos os internacionalismos e não somente contra o internacionalismo proletário. Rompe todos os elos que ultrapassam o quadro das fronteiras nacionais: o internacionalismo vermelho proletário do comunismo, ou da social-democracia, ou do sindicalismo, mas também o internacionalismo capitalista da finança "anônima e vagabunda", o internacionalismo negro das Igrejas e, em primeiro lugar, da mais universal, a da Igreja de Roma.

O fascismo exalta a grandeza da nação, aspira à hegemonia da raça ou do povo. Foi, aliás, esse nacionalismo hipertrofiado que por muito tempo impediu os fascismos de descobrir o parentesco existente entre eles, que retardou a tomada de consciência pela Alemanha nacional-socialista e pela Itália fascista das semelhanças entre seus regimes e da solidariedade entre suas políticas: foi preciso esperar as consequências da guerra da Etiópia para que se aproximassem os dois regimes que, retrospectivamente, nos parecem predestinados a fazer causa comum.

Assim, tudo indica mesmo que o fascismo é um fenômeno original, que não se pode reduzir ao conservantismo tradicional nem ao comunismo ou à democracia. Podemos, sem dúvida, encontrar antecedentes para ele, mas a combinação é nova e o distingue radicalmente de todas as experiências anteriores e de todas as correntes de ideias que evocamos no século XVIII e no século XIX."

René Remónd, "O século XX", p. 101-102

ESCRAVOS AFRICANOS E O TRÁFICO ATLÂNTICO: HISTÓRIA “POLITICAMENTE INCORRETA”

Xadrez Verbal

Caros

 leitores,

Ontem estava em um debate sobre as cotas nas universidades brasileiras. Citei meu texto sobre o assunto. Um colega de debate, chamado Leonardo, muito cordialmente pediu minha opinião sobre o fato de muitos africanos terem sido apresados por outros africanos, e como isso poderia implicar uma responsabilidade do Estado brasileiro. Tal argumento é comumente utilizado, muitas vezes para diluir a responsabilidade luso-brasileira na escravidão africana. Afinal, os africanos também eram escravistas, então, a culpa não seria de Portugal ou do Brasil. Ao menos, não exclusivamente.


Utilizarei nesse texto, como “diálogo”, o livro Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, do jornalista Leandro Narloch, já que tal livro faz essa comparação e muito colaborou para sua divulgação. A comparação não procede, é descontextualizada e confunde os motivos por trás de cada processo. Comparar eventos históricos apenas pelo seu resultado (a escravização de um indivíduo), desconsiderando as diferenças de motivos, é um erro, quando intencional, ou um engano, quando por desinformação.

Vamos voltar no calendário e contextualizar a escravidão. A principal fonte para o estudo da escravidão antiga provavelmente é Aristóteles. As diferenças entre os tipos de escravidão e as diferenças entre as múltiplas regiões da Grécia (além, é claro, do período de tempo extenso), tornam o tema complexo, mas podemos vulgarizar da seguinte forma: a escravidão na Grécia antiga compreendia três possibilidades; por dívida, como punição e como apresamento de guerra. Tal miríade de possibilidades geravam sociedades com múltiplos estratos sociais. Para Aristóteles, todo não falante de grego deveria ser escravo (daí o termo bárbaro, “que balbucia”, que significava alguém que não falava grego).

Qual a lógica de tais tipos de escravidão? A escravidão como punição, como mecanismo penal, talvez seja a mais óbvia. Um indivíduo comete um crime de tal proporção que, como punição, é privado de sua cidadania e de liberdade. Tal escravidão pune o indivíduo apenas, ou seja, não se aplica para uma sociedade ou sua família. A escravidão por dívida é autoexplicativa, quando uma dívida pecuniária é paga pelo trabalho servil; ela, dependendo do exemplo, podia passar para o restante da família do devedor. Finalmente, o apresamento de escravos em guerra consistia no entendimento aristotélico de que um determinado povo, ao perder uma guerra, demonstrava fraqueza e inferioridade, por isso seria justo o vencedor escravizá-lo.

Essas três possibilidades de escravidão (dívida, punição e guerra) estavam presentes basicamente em todo o Mediterrâneo, e antecediam, e bastante, a Grécia clássica; usei-a como ponto de partida por estar mais familiarizado com ela. Também era possível o escravo reconquistar sua liberdade (após, por exemplo, o cumprimento de sua pena). Como tais tipos de escravidão estavam presentes em todo o Mediterrâneo, estão, obviamente, presentes na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Esse é o primeiro fator importante, peço que o leitor o mantenha na memória.

Na tradição Ocidental, temos, como próxima etapa, Roma antiga. Nela estavam presentes as mesmas três modalidades de escravidão, com a exceção de que um escravo poderia reconquistar não apenas sua liberdade, mas também sua cidadania, normalmente pelo serviço militar. Note que tais mecanismos de escravização eram universais, não eram restritos em critérios étnicos ou geográficos. Escravos romanos eram germânicos, celtas, cartagineses, trácios, gregos, etíopes, italianos, basicamente toda etnia dentro das fronteiras da República ou do Império.  A economia romana era baseada na mão de obra escrava, o escravismo era visto como econômico; o segundo fator importante.

Um dos motivos do declínio romano foi a crise econômica derivada da falta de mão de obra escrava, já que o tempo das grandes expedições militares (maiores responsáveis pelo fornecimento de escravos; Júlio César vendeu toda a população gaulesa sobrevivente) havia passado. Com a passagem da Antiguidade tardia para a Alta Idade Média, a escravidão torna-se ou por dívida ou por punição, ou seja, cada vez mais excepcional na Europa Ocidental. Considerando que o Direito Romano foi a base para o Direito moderno, e também para o Direito contemporâneo, tais mecanismos de escravização de um indivíduo permaneceram; o terceiro fator de importância.

Na Baixa Idade Média os choques entre diferentes centros e diferentes culturas cresce em intensidade, em comparação ao período anterior (desnecessário dizer que estou resumindo bem todo esse processo, para fins didáticos). O apresamento por guerra volta a ser em larga escala e lucrativo, normalmente de “estrangeiros”, justificado pelo conceito aristotélico de barbarismo. Das Cruzadas virão a maior quantidade de escravos; seja no Leste, com a escravidão de bálticos e eslavos (origem da palavra escravo), seja no Mediterrâneo, com a escravidão de muçulmanos e de cristãos mutuamente. Além de quantidades menores, entretanto, tais escravos serão o fruto dos conflitos, não o motivo.

Na esteira do espírito cruzadístico, temos a expansão ultramarina portuguesa, acompanhada, em 1452, da bula Dum Diversas, do Papa Nicolau V, que autorizava ao rei português o direito de reduzir à “escravidão perpétua” sarracenos, pagãos e quaisquer descrentes. Com a penetração portuguesa no continente africano e sua posição geográfica privilegiada, Portugal torna-se o maior centro mercador de escravos. Após apenas alguns anos, Portugal já está totalmente comprometido com o comércio de escravos, ultrapassa a faixa árabe-muçulmana e tal fluxo comercial é quase exclusivamente de escravos africanos negros. Quarto fator nessa grande recapitulação.

Tudo isso é resumido por Leandro Narloch em “Desde a Antiguidade, os humanos guerrearam, conquistaram escravos e muitas vezes venderam os que sobravam”. Aí entra o argumento de que tais escravos eram vendidos pelos próprios africanos. “Meses antes, soldados de uma nação vizinha invadiram a cidade deles, mataram quase metade dos moradores e os que sobraram agora marcham sob o sol do Saara, como mercadoria”; ou seja, Narloch apenas repete o apresamento de escravos pela guerra, sob a justificativa formalizada por Aristóteles, da fraqueza de um povo conquistado. Citar tais condições é redundante, tendo em vista que tal prática já era estabelecida, e passa longe de ser um atenuante.

Finalizando essa História resumida da escravidão antiga, então, o que tornaria o comércio africano promovido por Portugal, até esse momento (início do século XVI), raiz de algo mais abominável? Que estará na origem dos problemas contemporâneos? O português une um costume antigo da escravidão (primeiro fator), sob uma justificativa econômica (segundo fator), amparada pelo costume do Direito (terceiro fator) e adiciona um componente étnico (quarto fator). Tal componente étnico eclipsará todos os outros, como veremos em seguida, e impede quaisquer comparações do tráfico atlântico com o escravismo anterior.

Chegamos então aos territórios portugueses na América, o futuro Brasil, onde temos, já no século XVI, demonstração do princípio aristotélico da escravidão, em que indígenas eram capturados como presa de guerra e colocados para trabalhar. Tal oferta de mão de obra não supre a demanda, e o comércio atlântico de escravos (que também envolverá o Caribe e a América do Norte), o maior deslocamento por coerção de uma população na História, inicia já em grandes números. Em 1538 chegam ao Brasil os primeiros africanos escravizados.

O comércio atlântico de escravos, fenômeno próprio, trouxe cerca de doze milhões de pessoas escravizadas para as Américas. Mercado de tal tamanho praticamente rompe com o primeiro e com o segundo fator elencados, o que começa a inviabilizar a comparação de Narloch. O fluxo luso-brasileiro de escravos pelo Oceano Atlântico não mais segue costumes antigos da escravidão (no máximo, ampara-se em princípios bíblicos como o que diz que negros são amaldiçoados, recém-repetido pelo deputado Marcos Feliciano), e torna-se mais que necessidade econômica, torna-se atividade mercantil. O escravo não é mais uma necessidade de produção, ele é mercadoria, e sua compra e venda torna-se atividade tão lucrativa que se sustenta por si só.

Outras demonstrações de como a escravidão costumeira antiga não é um parâmetro válido são o caráter perpétuo da escravidão nos Impérios português e brasileiro, que contrasta com, por exemplo, a possibilidade de um escravo romano reconquistar até sua cidadania; a ausência, na História brasileira, tanto da escravidão como pena criminal como da escravidão por dívida (formalizada; de maneira ilegal, ela existe até hoje, de forma lamentável). A escravidão no Brasil era derivada de um processo mercantil e sustentada em um motivo étnico, duas características completamente distintas da escravidão praticada na própria África naquele momento, ou no Mediterrâneo.

Mesmo o amparo legal da escravidão, o terceiro fator citado anteriormente, some no comércio atlântico de escravos. Do total de africanos trazidos para o Brasil em 300 anos de tráfico atlântico, aproximadamente 20% chegou entre 1831 e 1855, devido à expansão da produção cafeeira. Tal percentagem demonstra quanto o tráfico realizado no período foi importante, principalmente se comparado à totalidade do tráfico atlântico para o Brasil. E, entre 1831 e 1855, pelas leis brasileiras, o comércio de escravos pelo Atlântico estava proibido; as autoridades faziam só vistas grossas. A lei de 1831 que proíbe o tráfico foi decorrente da pressão inglesa pelo fim do comércio negreiro; daí a expressão “para inglês ver”, quando algo é feito sem a intenção de cumprir.

Narloch dá exemplos desses processos únicos, sem notar que eles invalidam seu próprio argumento. Ao contar a história de Zé Alfaiate: “O mais provável, porém, é que visse no comércio de gente uma chance comum e aceitável de ganhar dinheiro, como costurar ou exportar azeite.(…) Zé Alfaiate. Ex-escravo e traficante, foi ao mesmo tempo vítima e carrasco da Escravidão”. O trecho explicita que o tráfico de escravos torna-se larga atividade mercantil, baseada apenas na moeda, que Zé Alfaiate, negro, detém; longe então do apresamento pela guerra, que ele usa, erroneamente, como comparação. Também dá exemplos de príncipes africanos que tratam, no Brasil, do comércio de escravos no período em que tal comércio já era ilegal pelas leis brasileira.

Supostamente, única foto produzida em um navio negreiro real na costa brasileira, de 1882, por Marc Ferrez


Após demonstrar que a comparação entre o comércio atlântico de escravos, ligado de forma visceral à História brasileira, e o comércio de escravos em diferentes períodos ou com diferentes motivos não procede em seus principais fatores, vamos analisar o fator determinante desse novo comércio de escravos: o motivo étnico, essência, explícita ou implícita, da maioria dos males que estão presentes na sociedade brasileira até os dias de hoje. Em contraste à sociedade romana, em que várias etnias poderiam ser escravas, inclusive os próprios romanos, o componente étnico que Portugal adiciona ao comércio de escravos cria uma aberração: existe um povo que é escravo, tem cara de escravo. Tem cor de escravo.

Por trezentos anos, tal conceito é martelado na sociedade. Os resultados só podem ser catastróficos. O Decreto nº 1.331-A, de 17 de Fevereiro de 1854, que regulamenta o ensino básico no Brasil, irá excluir os negros, mesmo os libertos, do ensino nesses motivos, por serem “portadores de contágio”. No Rio Grande do Sul, no Colégio de Artes Mecânicas, a lei mandava recusar matrículas às crianças de cor preta e aos escravos e pretos, “ainda que libertos e livres”.

São alguns exemplos das raízes do fato da população negra ter menos escolaridade média, que a população analfabeta negra é o dobro da branca e que a parcela de negros na população pobre é de cerca de 63%, embora os negros sejam 7,6% da população (e os pardos, 43,1%). Como contraste, ainda em 1830, o Senado Imperial declara livre todo e qualquer indígena que ainda esteja em situação de escravidão.

Tal componente étnico da escravidão faz com que ascensão social no Brasil deixe de ser uma questão de posses. Narloch, para demonstrar como vários negros se beneficiavam dos lucros do comércio de escravos, afirma que “Em Campos dos Goytacazes [Rio de Janeiro], no final do século 18, um terço da classe senhorial era ’de cor’”. Ele esquece que o contra-argumento está em seu próprio livro: “Apesar de serem livres e ricas, as negras forras não viraram senhoras da elite: continuaram carregando o estigma da cor.”.

Comparar o imenso comércio de africanos escravizados pelo Oceano Atlântico com o comércio de escravos feito na Antiguidade, ou de acordo com os costumes antigos, não tem sustentação. Se um príncipe africano tomava escravos em uma guerra com seus vizinhos, é uma coisa. Inserir esse escravo no processo mercantil atlântico é outra, com outra origem, outra conotação, outra finalidade. Outro elemento: o étnico. O escravo deixa de ser por crime, por dívida ou por guerra. O escravo é o negro, e o negro torna-se escravo. Um fenômeno econômico que remonta à antiguidade do Crescente Fértil é distorcido ideologicamente. A escravidão do negro pelo Atlântico não é fruto do racismo. A escravidão do negro pelo Atlântico cria o racismo.

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Sobre o comércio de africanos pelo Atlântico, sugiro a obra O Trato dos Viventes. Ou, qualquer coisa escrita pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro.

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Fonte:https://xadrezverbal.com/2014/02/28/escravos-africanos-e-o-trafico-atlantico-historia-politicamente-incorreta/