sábado, 29 de março de 2014

Sincretismo nosso de cada dia

Cotidiano do período colonial mostra como é difícil sustentar estereótipos no campo da religiosidade

Ronaldo Vainfas

Entre os documentos das visitações inquisitoriais enviadas ao Nordeste brasileiro no final do século XVI, vários dão pistas da religiosidade popular da Colônia. Um senhor de escravos, cristão-novo, mandou Cristo à merda ao acompanhar a procissão do Santíssimo Sacramento na Bahia seiscentista. Uma cigana espanhola, em meio a um temporal nas ruas de Salvador, gritou: “bendito sea el carajo de Cristo que mija sobre mí”. Outro gostava de colocar o crucifixo embaixo da cama, para dar sorte, quando transava com a esposa – o que não deu certo, pois a mulher era adúltera. Um senhor de escravos do Recôncavo Baiano resolveu abrigar nas suas terras uma seita indígena meio tupinambá, meio católica, e ainda se ajoelhava diante do ídolo de pedra que os índios cultuavam. O chefão da seita dizia nada menos que era o verdadeiro papa e sua mulher, ou a principal delas, ostentava o título de Santa Maria Mãe de Deus. Falando nisso, e pulando para o século XVIII, Tereza de Jesus, cristã-nova pela metade, pois a mãe era católica, disse que Santa Maria e Santa Esther eram a mesma coisa, assim como Cristo e Moisés eram parecidos. Morava no Rio de Janeiro, morreu queimada em Lisboa.
Onde estamos? Em alguma Babel religiosa? Não. No Brasil Colônia, onde a única religião admitida era o catolicismo. Mas a Coroa portuguesa fez alguma coisa para assegurar o triunfo do catolicismo no Brasil?
Ao menos tentou. Além das motivações comerciais, é sabido que um dos principais objetivos da colonização era o de expandir o catolicismo no Novo Mundo. Isto vale também para outras partes do império português, como os enclaves no Oriente ou na África, embora nelas a presença portuguesa tenha sido superficial, feitorial. No Brasil, onde os portugueses ocuparam o território e a Coroa incentivou o povoamento, o esforço evangelizador foi mais saliente.
Não surpreende, porém, o abismo entre o catolicismo colonial e o projeto da Igreja de Roma. Menos surpreendente ainda é que tenham grassado no Brasil variadas formas de sincretismo religioso, mistura entre o catolicismo e crenças nativas e africanas, para não falar das judaicas, trazidas pelos cristãos-novos que fugiam da Inquisição, quando não vinham degredados por judaizar. Mesmo assim, o Santo Ofício prendeu muitos e queimou alguns por heresia.
Em todo caso, quando falamos de religiosidade popular na Colônia, não convém adotar uma sociologia rígida. O popular, no caso, diz mais respeito à religiosidade cotidiana do que à posição social do indivíduo. Se o sincretismo religioso prevaleceu desde o início, ele foi compartilhado, em vários graus, por senhores e escravos, portugueses e naturais da Colônia, brancos, negros, índios, mulatos, pardos, cafuzos, enfim, por toda a sociedade luso-brasileira.
Além disso, vale pôr em xeque dois estereótipos consagrados no senso comum. O primeiro é a ideia de que o nosso sincretismo religioso se limitou à mistura do catolicismo com as religiões africanas. O segundo é a ideia de que o catolicismo fracassou no Brasil, aviltado pela mistura de religiões.
Sincretismo religioso colonial: o que foi isto?  Um mix cultural de várias faces e múltiplas combinações. Começou pela mistura do catolicismo com a mitologia tupinambá, do que dá mostra a Santidade baiana de Jaguaripe. Nela pontificava, sem trocadilho, o papa Antônio, índio educado pelos jesuítas, mas com vocação de pajé. Homem que também dizia, em transe, que encarnava o ancestral-mor dos tupis, Tamandaré, enquanto fumava o petim (tabaco) em um cachimbo comprido. O próprio ídolo da seita tinha um nome que, apesar da língua, era cristão: Tupanasu, grande deus, invenção jesuítica para nomear o deus cristão em língua inteligível para os índios. O sincretismo fez sua estreia sob a batuta dos jesuítas.
Sincretismo afro-brasileiro: nomeá-lo assim é dizer pouco. Isto porque o catolicismo, antes de ser brasileiro, era português. Segundo, o catolicismo dos portugueses não era exatamente o da Roma dos papas. Os portugueses do Brasil eram mais dados à aventura do que à religião. Terceiro, porque nunca houve uma África, senão várias. África bantu, África iorubá, para dizer o mínimo.
Na prática, as misturas foram extraordinárias. Um dos primeiros a enxergar o sincretismo afro-brasileiro foi Nina Rodrigues, médico de profissão, etnólogo por vocação. Sugeriu, no início do século XX, que os africanos cultuavam seus deuses tradicionais misturados aos santos católicos. Ingenuidade. O etnólogo e filho de santo Roger Bastide, francês, foi além e considerou tais cultos originais. Interpretou a “religiosidade negra” como resistência à escravidão ancorada em sobrevivências religiosas africanas. Ingenuidade também.
O sincretismo afro-brasileiro nem foi resistência, nem fingimento acomodativo. Também não foi só afro-brasileiro, pois viscejou em Portugal. Na Colônia, foi invenção construída por africanos, de várias origens, para lidar com o sobrenatural em uma situação de diáspora. Situação colonial. Em alguns casos, chegou-se a esboçar um protocandomblé, nas palavras de Luiz Mott, referindo-se ao terreiro dirigido pela negra Josefa Maria, perto de Paracatu, Minas Gerais, no século XVIII. Na escuridão da noite, escravos e forros se reuniam para bailar a Dança da Tunda, Acontudá, ritual da nação courana, originária do Daomé. No Rio de Janeiro também havia um calundu dirigido por uma parda forra, Veríssima, onde todos dançavam ao som dos batuques. Quais orixás baixavam nesses terreiros? Não faço a menor ideia. Os inquisidores, menos ainda.
A própria palavra calundu, de origem bantu, consagrada no século XVII para designar os cultos da senzala, foi invenção colonial para generalizar a religiosidade negra. Gregório de Mattos, o Boca do Inferno, escreveu sem rodeios: “o que digo é que, nestas danças, Satã tem parte nelas”.
Falar em sincretismo afro-brasileiro, portanto, é dizer pouco. Como interpretar as “bolsas de mandinga”, cobiçadas por protegerem seus portadores de todos os males, além de facilitar amores, fechar o corpo e ganhar no jogo? Pois bem, as bolsas tiveram origem no norte africano, entre os mandingas, povo islamizado. Eram uns saquinhos, como sachês, que continham um verso do Alcorão escrito em um pedaço de papel. A coisa se espalhou pela África, pelo Brasil e Portugal e foi aumentando de tamanho. Passou a incluir ossinhos de mortos, pedaços de pedra d’ara (altar cristão), cabelos, unhas... O sachê original virou um bolsão de algodão cru repleto de elementos religiosos, vivos ou mortos. Impossível conceituar estemélange, senão como resultado de um intercurso cultural de diversos continentes.
O catolicismo fracassou? Só se adotarmos o modelo do Concílio de Trento. Não é o caso dos historiadores. De sorte que, na verdade, o catolicismo irrigou toda a religiosidade colonial. Esteve presente em algumas rezas do Acotundá mineiro, na Santidade indígena da Bahia, no terreiro carioca da forra Veríssima, nas bolsas de mandinga, nos calundus e catimbós, nas invenções de cristãos-novos que misturavam Cristo e Moisés.
Uma evidência indiscutível é a crença de que as palavras eucarísticas tinham poder de atração sexual ou, ao menos, de amansar maridos hostis. Hoc est enim corpus meum – “este é o meu corpo”. Na Bíblia, consta que Jesus assim consagrou o pão na última ceia, e nisto reside o mistério da transubstanciação. É o corpo de Cristo que está na hóstia consagrada? Ou é um símbolo, uma metáfora? O povo entendia este mistério de modo direto: se o corpo de Cristo entrava na hóstia por meio daquelas palavras, o corpo do amado passava a ser de quem proferisse a mesma frase. Mas havia um detalhe: era preciso dizê-las em latim e no ato da cópula. Entre gemidos e gozos.
Outra evidência final: Madre Vitória da Encarnação, freira do convento baiano de Santa Clara do desterro. Era tremendamente religiosa. Punha cinza na comida para estragar o paladar. Carregava nas costas uma cruz pesada pelos corredores do convento. Usava cilícios para flagelar o corpo. Esbofeteava-se. Um exemplo do catolicismo colonial: sensível, barroco. Madre Vitória também dizia ter visões. Dizia que visitava, à noite, as almas do Purgatório. Contava ainda que, algumas vezes, viu o Diabo, que lhe aparecia na forma de um “molequinho negro”. Catolicismo barroco, catolicismo escravista. O arcebispo da Bahia instruiu processo para transformá-la em santa, ao menos beata. Não prosperou a ação do arcebispo. O Brasil nunca teve santos. Nem santas.
Ronaldo Vainfasé professor da Universidade Federal Fluminense e autor de A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial (Companhia das Letras, 2010).

Diferenças ibéricas
Comparado à colonização espanhola, o apoio da Coroa à evangelização foi pífio. Basta dizer que, até meados do século XVI, só havia um bispado no Brasil, o da Bahia, criado em 1551, enquanto a vizinha América Espanhola possuía dezenas. Qualquer indicador reforçaria esta constatação. No mundo hispano-americano: presença expressiva de várias ordens religiosas, universidades que formavam teólogos, tribunais do Santo Ofício, organização da Igreja conforme o Concílio de Trento (1545-1563), bastião da Contra-Reforma. No Brasil, apesar do esforço missionário dos jesuítas, os limites da pastoral católica eram fortes. Além dos jesuítas, alguma ação dos franciscanos, sobretudo na Amazônia; os beneditinos abrigaram  filhos da elite colonial; padres franceses missionaram nos sertões, patrocinados pela Propaganda Fide. As irmandades leigas – vá lá – tiveram algum papel na rotina dos colonos – e até dos escravos – sobretudo em Minas, onde a Coroa proibiu as ordens religiosas, sabedora de que o ouro e os diamantes também despertavam cobiça nos homens de Deus.

SAIBA MAIS

CALAINHO, Daniela. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.
MELLO e SOUZA, Laura de. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
MOTT, Luiz. “Cotidiano e vida religiosa: entre a capela e o calundu”. In: MELLO  e SOUZA, Laura de & NOVAIS, Fernando A. (orgs.). História da vida privada no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 155-220.


Guerra de Palmares

Versão dos vencedores não dá conta da organização política de uma sociedade que se manteve por mais de meio século

Laura Perazza Mendes Nascimento

Panorâmica do Parque Memorial do Quilombo dos Palmares, em Alagoas, que desde 2007 reconstitui o cenário do antigo Quilombo.
Corria pelos engenhos e senzalas da capitania de Pernambuco a notícia de que, para o lado das serras, na região dos palmares, havia um refúgio. Um lugar onde era possível viver fora do poder dos senhores de engenho e manter vivas tradições africanas recriadas na América. Lá, uma nova sociedade era construída: guerreiros, agricultores, comandantes de guerra, líderes religiosos e uma linhagem real que determinava os rumos políticos e militares.
Aquelas povoações foram chamadas de mocambos, acampamentos que poderiam ser desmontados e montados em outras regiões, como estratégia de fuga ou de busca por melhores terrenos. Chegar a essa zona de vegetação de palmares não era tarefa fácil. Após fugir dos engenhos ou das vilas, era necessário trilhar caminhos íngremes e fechados pela mata. Qualquer descuido poderia resultar em recaptura ou morte, pois havia pessoas dedicadas especialmente à perseguição de escravos fugitivos, como os capitães do mato. Mesmo assim, muitos conseguiram chegar ao local, incluindo índios e pessoas livres. Foi mais fácil fugir para os mocambos no início do século XVII, quando a produção de açúcar foi desorganizada pela invasão dos holandeses (1630) e, mais tarde, pelas batalhas de expulsão desses estrangeiros (1645-1654).
Como era feito em Angola, os habitantes extraíam dos palmares a vegetação que deu o nome para os mocambos, fibras e palmito, além de produzir vinho e óleo. Não viviam isolados da sociedade colonial, mas buscavam reagir ao escravismo governando a si próprios.
Mas quem contou a história dessa sociedade? Infelizmente, não há nenhum registro escrito por habitantes dos Palmares. O que chegou até nós foram documentos produzidos por representantes da Coroa portuguesa que governaram a capitania de Pernambuco, e relatos de pessoas que lutaram contra os negros dos mocambos durante o século XVII. Por causa disso e de uma interpretação preconceituosa dos primeiros historiadores de Palmares, a sua história foi contada do ponto de vista da destruição. Era a versão dos vencedores.
O principal meio tentado pelos governadores de Pernambuco e pela Coroa portuguesa para pôr um fim em Palmares foi enviar expedições militares. Elas deveriam encontrar o caminho dos mocambos e fazer o máximo de prisioneiros possível. Os prisioneiros seriam devolvidos a seus antigos senhores ou vendidos para fora da capitania, para que não retornassem aos mocambos. Poderiam render um bom lucro, mas durante os confrontos muitos morriam ou ficavam feridos. Como meio de se defender dos ataques, os habitantes de Palmares faziam emboscadas e levantavam acampamento, mudando os mocambos de local.
Um dos primeiros estudiosos do assunto, o escritor Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), dividiu a história de Palmares em três fases. A primeira corresponde ao período da invasão holandesa, no qual o número de habitantes dos mocambos cresceu rapidamente. Seu marco seria o ano de 1644, data do confronto entre os negros amocambados e a expedição comandada por um holandês chamado Rodolfo Baro. O próximo marco escolhido por Nina Rodrigues foi uma expedição militar comandada pelo capitão Fernão Carrilho, em 1677. Vindo de Sergipe especialmente para fazer uma guerra contra Palmares, o militar promoveu um grande ataque. Segundo relatos posteriores, 200 habitantes de Palmares foram feitos prisioneiros, incluindo a rainha e filhos do rei, chamado Gana Zumba. Muitos morreram ou ficaram feridos, mas sobre estes não há números. Importava mais aos vencedores contar aqueles que poderiam ser vendidos. A fase final de Palmares foi a da morte do líder Zumbi, em 1695, seguida pela destruição dos mocambos remanescentes. Mas o salto na história promovido por Nina Rodrigues não dá conta de explicar a mudança da liderança do rei Gana Zumba para Zumbi. Muitas coisas acontecerem nesse meio-tempo: acordos de paz, mudanças nas localizações dos mocambos, diferentes posicionamentos políticos.
Como a maioria decidiu contar essa história a partir da destruição, o foco escolhido foi a morte de seu líder mais famoso. No final do século XVII, o governo de Pernambuco, cansado das expedições militares que fracassavam na luta contra os mocambos, decidiu investir no contrato de um tipo diferente de tropa: as bandeiras paulistas. Liderados por Domingos Jorge Velho, os indígenas e descentes de europeus que compunham essa tropa assinaram um contrato se comprometendo a destruir os mocambos de Palmares. Em troca, receberiam prisioneiros, terras e benefícios da Coroa, chamados de mercês.
Em 1694, os homens de Jorge Velho atacaram o mocambo principal de Palmares, localizado no Outeiro do Barriga, juntamente com homens da capitania de Pernambuco. Lá estavam Zumbi e seu exército, na capital conhecida como Macaco, protegidos por uma cerca alta que rodeava o local, à espera do ataque. Para rompê-la, os paulistas decidiram subir até o local carregando dois pesados canhões. Após horas de combate entre os que estavam do lado de fora e do lado de dentro da cerca, as tropas a serviço da Coroa conseguiram entrar em Macaco. Seu principal objetivo era capturar ou matar Zumbi, para provar que Palmares havia sido derrotado. Mas não o encontraram. Estaria ele morto? Teria escapado?
Os primeiros historiadores de Palmares acreditaram na versão de que Zumbi havia se suicidado pulando de um penhasco. Teria preferido morrer assim a ser capturado ou morto pelos inimigos. Posteriormente, foram encontrados documentos que relatam a morte de Zumbi um ano depois.
Inconformado por não poder atestar a morte de Zumbi à Coroa e a todos que viviam em Pernambuco, o governador da capitania, Caetano de Melo e Castro, decidiu enviar mais uma tropa aos mocambos. Em 1695, um habitante de Palmares que havia sido capturado anteriormente foi coagido a ajudar os homens a serviço da Coroa, e informou onde Zumbi estava escondido. Em uma emboscada, o líder palmarino foi capturado e morto. Sua cabeça foi exposta em Recife, para que todos soubessem – principalmente os escravos – que o refúgio de Palmares estava definitivamente destruído.
Quase todos os historiadores posteriores adotaram esses marcos cronológicos, mas quantos outros episódios importantes ficaram de fora da história contada pelos vencedores? Em 1678, após a expedição comandada por Fernão Carrilho, Gana Zumba decidiu enviar representantes seus para negociar um tratado de paz com o governo de Pernambuco. Sua embaixada era formada por 11 pessoas, entre elas seus filhos e importantes líderes militares. Em Recife, a comitiva de Gana Zumba foi recebida com a pompa e a circunstância dignas de uma negociação entre chefes de Estado. Cartas e presentes foram trocados entre os governantes de Palmares e de Pernambuco.
Gana Zumba aguardou em Palmares os resultados das negociações. O governador de Pernambuco desejava que os mocambos fossem esvaziados e os escravos que lá viviam fossem devolvidos a seus senhores. Já Gana Zumba esperava que os palmarinos pudessem escolher um novo local para viver e que os nascidos nos mocambos fossem considerados livres.
As condições foram acertadas entre as partes, e os habitantes de Palmares, liderados por Gana Zumba, mudaram-se para um local chamado Cucaú. Porém uma parte dos palmarinos foi contra o acordo. Liderados por Zumbi, decidiram permanecer nos antigos mocambos e resistir aos ataques das novas expedições. Outras tentativas de acordo de paz foram feitas com Zumbi, mas nenhuma obteve sucesso. Algum tempo depois da mudança para Cucaú, Gana Zumba morreu, provavelmente assassinado por seus opositores políticos. A nova povoação foi então desfeita. Alguns retornaram a Palmares e outros foram feitos escravos pelos senhores locais, sendo vendidos para fora de Pernambuco.
O acordo feito em 1678 comprova que os habitantes de Palmares estavam organizados politicamente e que seu governo, com base em conhecimentos acumulados na África e na América, soube conduzir uma negociação com os representantes da Coroa portuguesa. A destruição de Palmares apaga uma história de mais de meio século de organização social e resistência política.

Laura Perazza Mendes Nascimentoé autora da dissertação “O serviço de armas nas guerras contra Palmares: expedições, soldados e mercês” (Unicamp, 2013).


SAIBA MAIS
GOMES, Flávio dos Santos. Palmares: escravidão e liberdade no Atlântico Sul. São Paulo: Contexto, 2005.
GOMES, Flávio dos Santos Gomes (org.). Mocambos de Palmares: histórias e fontes (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

Irmão que vem do mar

Os índios podem ter visto os europeus não como deuses, mas como aliados em potencial

Eunícia Fernandes

  • O que terá passado pela cabeça dos índios em seus primeiros encontros com os europeus, nos séculos XV e XVI? O que terão pensado ao se depararem com aqueles estranhos seres recém-chegados ao seu mundo?
    Estas são questões intrigantes para qualquer pessoa que tente reconstituir aqueles episódios marcantes para a história mundial. Mas nem sempre houve tal curiosidade. Pelo contrário: até pouco tempo atrás, ninguém estava preocupado com o que pensaram os indígenas sobre a conquista ou sobre qualquer outro assunto. Vem daí a dificuldade de historiadores e antropólogos acessarem este tipo de informação, afinal, a maior parte dos povos americanos da época de Colombo e Cabral não possuía a escrita (eram ágrafos), e os colonizadores fizeram o que puderam para eliminar seus modos de vida. Restaram raros materiais para tentar fazer essa interpretação.
    Havia os maias, os incas e os astecas. Eles, sim, tinham escrita, e quando houve interesse em saber o que os índios pensavam, foram essas sociedades que pautaram o que se acreditava ser “o” pensamento dos povos americanos. Mas será que diante da enorme quantidade de povos do continente, com línguas, costumes e práticas diferentes, existiam apenas essas formas de pensar?
    Além de limitado e sujeito a generalizações, o conhecimento sobre aqueles povos ainda por cima é estereotipado. Todos os materiais produzidos – por nativos americanos ou europeus – foram lidos segundo um padrão que estipulava a superioridade da Europa em relação a outros modos de viver. Seja por acreditarem no cristianismo como única verdade religiosa, seja por valorizarem o progresso tecnológico e a ideia de evolução social, os colonizadores construíram uma hierarquia entre sociedades, na qual o mais avançado modelo era a Europa. O resto do mundo era entendido por este parâmetro: mais perto ou mais longe do ideal europeu. Vem daí a desqualificação radical de qualquer informação advinda dos índios, vistos como bárbaros por viverem de acordo com outros parâmetros de “fé, lei e rei”.
    Apesar dessas limitações e distorções, é possível levantar hipóteses bem próximas do pensar dos índios daquela época. Os grupos indígenas que estavam na costa do que hoje é o Brasil eram, em absoluta maioria, da família linguística tupi-guarani. Pertencer à mesma família linguística não quer dizer fazer parte do mesmo grupo indígena. Assim como o português é da mesma família linguística que o espanhol e o francês, eles eram temiminós, tamoios, potiguares, tupinambás, entre outros, com muitas diferenças entre si, inimizades e guerras. E as culturas desses grupos se aproximavam em outras coisas, como as referências sobre a origem do mundo e de certas crenças. Uma delas é a Terra sem Males, mito que conduzia os tupis-guaranis para leste – indo ao encontro do mar, teriam uma terra de fartura e todos seriam preservados de infortúnios.
    A Terra sem Males se inscreve numa prática usual dos tupis-guaranis: deslocar-se para superar uma situação desfavorável, como a morte de um chefe ou a carência de alimentos. Deste modo, os grupos que contataram os portugueses vinham de uma longa caminhada em busca desse lugar especial e, ao se depararem com seres repletos de novidades, julgaram que poderiam incorporá-los ao seu mundo, tornando-os mais fortes e melhores diante de seus inimigos.
    É difícil supor que os índios da América portuguesa acreditassem que os europeus fossem deuses – da forma como os entendemos, habitantes de uma intransponível distância. Para os tupis-guaranis, homens e deuses são estágios de uma mesma experiência, fazem parte um do outro. Caminhar para a Terra sem Mal – e encontrá-la – poderia ser um mecanismo de transformação de índios em deuses sem passarem pela morte. Não há evidências que o comprovem, mas podemos supor que, por chegarem do leste e serem portadores de novidades, os portugueses fossem vistos como homens já transformados em deuses. Mas é bom lembrar que para aqueles índios essa situação não significa uma cega submissão: mais provável seria a atitude de garantir um contato que os fizessem descobrir como os portugueses conseguiram fazer essa passagem de homens a deuses sem a morte.
    Mas há pistas de que a percepção dos índios sobre os conquistadores estava mais próxima da humanidade europeia. Durante muito tempo os nativos se utilizaram de uma estratégia mal compreendida pelos portugueses. Além de considerarem os índios preguiçosos, os registros lusos dizem que as índias eram dadas à sensualidade e se ofereciam aos europeus. Como ninguém estava interessado em saber o que pensavam esses índios, não se considerou que a ideia de preguiça disseminada pelo colonizador era uma recusa fundada na divisão de papéis masculinos e femininos: a agricultura era uma atividade feminina e os índios não queriam assumi-la nas roças portuguesas. Do mesmo modo, o “oferecimento” das mulheres refletia um dos principais mecanismos de fortalecimento de alianças entre grupos nativos, por meio do casamento. Um chefe era poderoso pelo número de filhas que possuía, pois elas seriam uma importante moeda na consolidação de alianças guerreiras. Como os registros indicam a estratégia de aproximação das mulheres índias, o mais correto é imaginarmos que, na percepção dos nativos, os portugueses não eram divindades, mas talvez homens poderosos com os quais valia a pena fazer aliança.
    Outro estereótipo recorrente é o do “índio puro” maculado pelo contato com o europeu. Esta ideia pressupõe que os índios eram todos iguais e que não entravam em contato com outros grupos. Na verdade, o que havia era uma enorme diversidade de povos em contato, transformando-se historicamente por meio de trocas e atritos. Não eram sociedades estáticas, mas povos preparados para um contato.
    Ailton Krenak, atual liderança indígena, reforça esta perspectiva ao comentar as narrativas nativas acerca da chegada europeia: “Em cada uma dessas narrativas antigas já havia profecias sobre a vinda, a chegada dos brancos. Assim, algumas dessas narrativas, que datam de 2, 3, 4 mil anos atrás, já falavam da vinda desse outro nosso irmão, sempre identificando ele como alguém que saiu do nosso convívio e nós não sabíamos mais onde estava. Ele foi para muito longe e ficou vivendo por muitas e muitas gerações longe da gente. Ele aprendeu outra tecnologia, desenvolveu outras linguagens e aprendeu a se organizar de maneira diferente de nós. E nas narrativas antigas ele aparecia de novo como um sujeito que estava voltando para casa, mas não se sabia mais o que ele pensava, nem o que ele estava buscando”.
    Um outro irmão, e não um deus. Deixemos de lado histórias famosas como a do capitão inglês James Cook sendo recebido como um deus pelos polinésios no século XVIII. O que houve foi o contato inédito de sociedades e culturas diferentes.

    Eunícia Fernandes é professora da PUC-Rio e organizadora de A Companhia de Jesus na América (Editora PUC-Rio/ Contra Capa, 2013).


Os Milenares

Grupo de pescadores-caçadores-coletores ocupou o Pantanal há mais de 10 mil anos e desenvolveu tecnologias a partir do ambiente em que viviam

 

Jorge Eremites de Oliveira
Gravura datada de 1599 traz costumes dos índios Xaraiés. (Fundação Biblioteca Nacional)

Localizada na bacia do Alto Paraguai, a planície do Pantanal é a maior área úmida contínua do planeta. Foi neste lugar que há 10, 11 mil anos – logo após o término do último período glacial, conhecido como pleistoceno, e o início do período atual, holoceno – grupos humanos resolveram se instalar. Se considerarmos as áreas serranas que circundam a região, a presença humana é ainda mais antiga. Esses homens e mulheres são exemplos de como se vivia no território que veio a se chamar, milênios depois, de Brasil. Isso muito antes de Cabral, ou de qualquer outro europeu que tivesse aportado oficialmente em nosso litoral.
A partir do holoceno, o clima pantaneiro passou a ser mais quente e úmido em comparação com o clima mais seco e frio que predominara anteriormente. Pouco a pouco foi aparecendo uma expressiva biodiversidade, com várias espécies de plantas e animais, a grande maioria proveniente de biomas vizinhos, como o Cerrado e a Amazônia. A região passou ainda a contar com uma sazonalidade marcante, caracterizada por episódios anuais de cheia e seca, chamada de pulso de inundação.
Os primeiros humanos que ali chegaram eram populações indígenas ou ameríndias. Seus antepassados mais longínquos vieram da Ásia para o continente americano, atravessando o Estreito de Bering entre 20 e 12 mil anos atrás. Na época, o nível do mar era cerca de 60 metros mais baixo em relação ao atual. Havia uma ponte de terra e gelo ligando a Sibéria, na Ásia, ao Alasca, na América do Norte. Depois passaram pela América Central e atingiram o centro da América do Sul. Esse processo de migração levou um tempo correspondente a dezenas de gerações de ameríndios.
A essas antigas populações não é possível atribuir o nome de qualquer povo indígena conhecido historicamente, embora seja possível fazer certas distinções, como a de seus padrões “tecnológicos”. Os primeiros habitantes encontraram na região condições ecológicas favoráveis à sua reprodução física e sociocultural. Estabeleceram moradias em assentamentos localizados às margens de grandes rios, como o Paraguai. Davam preferência a locais de topografia elevada e protegida das enchentes anuais. Viviam em famílias extensas, em pequenas comunidades estruturadas em redes de parentesco formadas por pais, filhos, tios, avós e bisavós. Sua economia de subsistência dependia especialmente da pesca, da caça e da coleta. Daí o nome com que são conhecidos na arqueologia: pescadores-caçadores-coletores.
Para uma economia assim, as comunidades desenvolveram uma tecnologia voltada à produção de artefatos de madeira, osso, concha de molusco e pedra (rochas e minerais). Também possuíam conhecimentos apurados sobre os ecossistemas regionais, incluindo o comportamento dos animais, os locais de obtenção de matéria-prima para a produção da cultura material, as variações climáticas e as áreas onde coletavam plantas de valor alimentício e medicinal.
Entre 8,4 e 8,1 mil anos atrás, um grupo de pescadores-caçadores-coletores estava estabelecido à margem direita do rio Paraguai, precisamente na escarpa calcária sobre a qual foi fundada, na segunda metade do século XVIII, a cidade sul-mato-grossense de Ladário. As pesquisas arqueológicas realizadas no local comprovam que a pesca de pequenos peixes, a coleta de caramujos aquáticos e a caça de jacarés e capivaras compunham parte do total da proteína animal consumida por eles. Esta população se caracterizava pela fabricação e pelo uso de artefatos lascados e polidos feitos principalmente de quartzo e calcário.
Os três milênios seguintes, entre 8,1 e 5 mil anos atrás, ainda são pouco conhecidos pelos arqueólogos. Essa lacuna de três milênios, a grosso modo,corresponde a um fenômeno conhecido como ótimo climático, quando as temperaturas quentes e a umidade regional atingiram seu ponto máximo após o fim da última glaciação.
A partir de 5 ou 4,5 mil anos atrás houve a intensificação da ocupação indígena na região. Trata-se da presença de grupos que construíram muitas estruturas monticulares conhecidas na arqueologia como aterros, montículos, cerritos ou mounds. Paulatinamente, passaram a se organizar em comunidades maiores e mais complexas do ponto de vista socioeconômico e político, as tribos, contando com dezenas ou centenas de indivíduos. Nelas, a diferenciação social tendia a aumentar, bem como a concentração de poderes nas mãos de pessoas capazes de liderá-las.
Os aterros são verdadeiras obras de engenharia. Constituem elevações elípticas do terreno, totais ou parcialmente construídas pelos indígenas, em geral em forma subcircular. Em suas camadas arqueológicas aparecem restos de alimentação humana (conchas de caramujos, ossos de peixes etc.) e artefatos diversos (lâminas líticas de machado, pontas de flechas feitas de ossos, fragmentos de vasilhas cerâmicas etc.). Em alguns casos foram encontrados esqueletos humanos nesses locais, cujos sepultamentos atestam uma diversidade em termos de práticas mortuárias. Nos campos de savana, os aterros apresentam-se como ilhas de vegetação. Sua construção requereu o uso de conhecimentos arquitetônicos complexos e a organização do trabalho social, além de fatores ideológicos, relações de poder e estratégias de territorialidade. Os últimos índios que construíram aterros no Pantanal foram os canoeiros guatós. Alguns de seus anciãos chegaram mesmo a morar em montículos desse tipo entre a primeira metade do século XX e a década de 1970.
Do limiar do milênio anterior ao início da Era Cristã teve início a formação de um rico mosaico sociocultural nesta porção central da América do Sul. Foi constituído por povos canoeiros pescadores-caçadores-coletores que lá estavam estabelecidos, além de povos agricultores de origem amazônica que migraram para a região. Entre os primeiros ocupantes houve a incorporação, anterior a 3 mil anos atrás, de elementos cerâmicos relacionados a distintos estilos tecnológicos e a diferentes etnias. Seu padrão tecnológico ceramista está caracterizado pela fabricação de panelas, tigelas e moringas pequenas, feitas pela técnica da sobreposição de roletes de argila seguida da queima do vasilhame. Geralmente possuem capacidade volumétrica inferior a 4 litros. Eram utilizadas para produzir, armazenar e servir alimentos sólidos e líquidos por pequenas famílias pertencentes a uma comunidade maior, constituída por redes de relações sociais. Em alguns sítios foram encontrados cachimbos e rodelas de fuso e artefato usado para fiar fibras vegetais, o que denota o cultivo ou o uso de plantas domesticadas, como o algodão e o fumo, entre grupos indígenas.
Os povos oriundos da Amazônia, conhecidos no período colonial, seriam os antigos índios xaray ou xarayes e itatins. Eram agricultores que produziam grandes vasilhas cerâmicas, às vezes com capacidade volumétrica superior a 100 litros, tinham uma indústria lítica mais apurada, assentamentos em locais de solos férteis e uma complexidade social que sugere a existência de chefes ou caciques.
Associados aos antigos grupos que construíram ou ocuparam aterros também há sítios com grande quantidade de grafismos rupestres (inscrições e pinturas), pertencentes ao estiloAlto Paraguai. Neles se encontram figuras geométricas, como círculos concêntricos, figuras antropomorfas, a exemplo de pegadas humanas, e figuras zoomorfas de mamíferos e serpentes, além de pegadas de aves e felinos.
Na porção meridional da região, onde o Pantanal se funde e se confunde com o Chaco (porção pantaneira do Paraguai), foi encontrada outra tradição tecnológica ceramista, que deve ter sido produzida a partir do segundo milênio da Era Cristã. Suas características tecnológicas lembram a cerâmica dos atuais índios kadiwéus que vivem em Mato Grosso do Sul.
Em tempos coloniais, muitos povos indígenas se estabeleceram na região. Nas terras altas (serras, morros isolados, terraços fluviais etc.), havia aldeias de povos linguisticamente aruák e guarani. Nas terras baixas (áreas inundáveis), era marcante a presença de povos canoeiros, como os guatós, os guasarapos e os payaguás, dentre outros. Nessa época, o Pantanal já era uma área de grande diversidade étnica e cultural, com dezenas de povos cultural e linguisticamente distintos, falantes de línguas vinculadas às famílias linguísticas aruák, guaikuru, guató, jê e zamuco.
Com o advento da conquista ibérica, a partir do século XVI, vários povos sofreram abruptos processos de desterritorialização e depopulação promovidos por espanhóis, portugueses e seus aliados. Guerras e epidemias foram decisivas para isso. Mas muitos povos, como os atuais bororo, guató, kadiwéu e terena, resistiram e conseguiram sobreviver. Eles representam tradições antiquíssimas e modos de viver diversos dos praticados hoje em dia, tendo também contribuído para constituir o atual Brasil.

Jorge Eremites de Oliveiraé professor Universidade Federal de Pelotas e autor de Arqueologia das sociedades indígenas no Pantanal. (Oeste, 2004) e Guató: argonautas do Pantanal (EDIPUCRS, 1996).

Saiba mais - Bibliografia
SCHMIDT, Max. Estudos de Etnologia Brasileira: peripécias de uma viagem entre 1900 e 1901. Seus resultados etnológicos. Tradução de Catarina B. Cannabrava. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942.
SCHMITZ, Pedro Ignacio. “Pantanal: os primeiros passos da pré-histórica”. Ciência Hoje, Rio de Janeiro, v. 22, n. 129, p. 36-45, 1997.
SUSNIK, Branislava. Etnología del Chaco Boreal y su periferia (siglos XVI y XVIII). Asunción: Museo Etnográfico Andrés Barbero, 1978.

Fonte: Revista de História