domingo, 19 de janeiro de 2014

A fantástica ciência do Antigo Egito

por Karen Gimenez

Conheça a história das maravilhas que o Antigo Egito deixou para o mundo e saiba por que o povo do Nilo era tão criativo







A herança deixada pelos faraós à humanidade vai muito além de pirâmides e sarcófagos dourados. Eles também nos legaram invenções sofisticadas e costumes curiosos que atravessaram os séculos e continuam vivos. Conheça todas as contribuições do povo do Nilo e descubra por que eles foram tão criativos, avançados e misteriosos 
Na sala, pai e filho estão entretidos com jogos de tabuleiro e bebem cerveja em um final de tarde de domingo. A perna engessada de um deles não permitiu que fossem a uma cervejaria. No quintal, as crianças se divertem brincando de amarelinha e entre os cães de estimação que correm derredor. Em um dos quartos, duas adolescentes experimentam novos cosméticos e cremes hidratantes, enquanto conversam sobre métodos contraceptivos e o teste de gravidez que a mais velha fará no dia seguinte. No quarto principal, uma mulher divide seus pensamentos entre a contabilidade de sua padaria e o divórcio prestes a se concretizar. Para amenizar a dor de cabeça, ela toma um remédio à base de ácido acetilsalicílico, o princípio ativo da aspirina.
Se alguém perguntasse onde e quando essa cena aconteceu, a resposta poderia muito bem ser o Brasil ou os Estados Unidos há muito pouco tempo. Mas, por mais incrível que possa parecer, se alguém respondesse que a situação deu-se no Egito no tempo dos faraós, estaria absolutamente certo. A chance de momentos como esses terem ocorrido durante o reinado de Tutancâmon ou Ramsés é praticamente tão grande quando no Ocidente do século 20.
Escondidos sob a mística de pirâmides e maldições de múmias, os avanços científicos e culturais dos povos do Antigo Egito costumam surpreender mesmo a quem se considera iniciado no assunto. Diversas descobertas atribuídas a europeus pós-Renascimento fizeram parte do cotidiano daqueles que viveram às margens do Nilo muitos séculos antes de Cristo. O histórico dessa lacuna científica é complexo, rende livros e mais livros. Mas o fato é que muitas coisas que se acredita serem méritos de um passado recente na verdade são muito, mas muito mais antigas que as nossas tataravós.
Da aspirina ao teste de gravidez
Uma das revelações mais impressionantes ao estudar a herança do Antigo Egito é seu desenvolvimento em medicina e farmacologia. Em O Legado do Antigo Egito, o egiptólogo Warren R. Dawson, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, cita papiros médicos datados de até mais de 40 séculos atrás retratando procedimentos médicos e remédios usados até hoje por profissionais da área de saúde. Substâncias como óleo de rícino, ácido acetilsalicílico, própolis para cicatrização e anestésicos já eram conhecidas. Os documentos descrevem cirurgias delicadas, o engessamento de membros com ossos quebrados e todo o sistema circulatório do corpo humano.
Antonio Brancaglion, historiador do Museu Nacional do Rio de Janeiro e membro da Associação Internacional dos Egiptólogos, conta que o desenvolvimento da medicina foi motivado, principalmente, pela quebra de um mito em relação à violação do corpo humano. “Outras povos da época, como sumérios e assírios, acreditavam que, se o corpo fosse aberto, a alma escaparia. É claro que isso sempre foi um impedimento para experimentos médicos”, diz Antonio. Entre os egípcios, no entanto, deu-se justamente o oposto.
A religião dos faraós deu uma senhora ajuda às descobertas médicas. “Eles acreditavam que para alcançar vida eterna a alma de seus mortos precisava de um corpo. Por isso, desenvolveram o que chamamos genericamente de mumificação”, afirma. A mumificação, na verdade, é um conjunto de procedimentos químicos e físicos que visava a preservação dos corpos (veja infográfico nas páginas 48 e 49). Esses processos exigiam a retirada cirúrgica de alguns órgãos internos, que eram separados uns dos outros. Em alguns casos, eles eram tratados e recolocados no lugar. Com isso, os egípcios passaram a conhecer o interior do corpo humano de uma forma inédita até então. Localizaram cada órgão e estudaram a relação entre eles. Embora estivessem errados em algumas de suas conclusões – eles acreditavam que o coração comandava nossos pensamentos – eles descobriram várias coisas que podiam ser aplicadas aos vivos.
Um dos melhores exemplos disso é o conhecimento sobre o sistema circulatório. O corpo de Ramsés II (1279 a 1212 a.C.) teve suas veias e artérias retiradas, mumificadas e recolocadas. O hábito de tomar o pulso do paciente como forma de avaliar sua saúde é descrito no papiro Ebers, datado de 1550 a.C. “O batimento cardíaco deve ser medido no pulso ou na garganta”, dizia o antigo documento, certamente um dos primeiros livros de medicina do mundo. Essa é outra inovação egípcia. Eles anotavam tudo nos chamados papiros médicos (alguns desses documentos serão citados no decorrer desta reportagem). Segundo Dawson, o conhecimento médico até então considerado era sagrado e geralmente transmitido por tradições orais. Os registros eram raríssimos. No Egito, a intensa documentação sobre os procedimentos médicos permitiu que esse conhecimento fosse passado com maior exatidão – embora não menos sagrado.
O conhecimento da circulação sanguínea é responsável por um costume que persiste até hoje: o uso da aliança de casamento. Para os egípcios, do coração partiam veias que o ligavam diretamente a cada um dos membros. Na mão esquerda, essa veia terminava no dedo anular. Acreditando que o coração era o centro de tudo e que ele está ligeiramente deslocado para o lado esquerdo do peito, os casais passaram a colocar uma fita no dedo anular esquerdo como forma de prender o coração do amado. Com o passar do tempo, essa fita foi substituída por um aro de metal que, dependendo das posses do casal, poderia ser o ouro. Bonito, não?
A mumificacão mudou muito nos mais de 3 mil anos em que foi praticada. Com ela, evoluiu também o conhecimento que tinham do cérebro. As primeiras descrições do processo indicam que o cérebro era retirado pelo nariz e jogado fora junto com o conteúdo dos intestinos dos mortos. Mas, com o tempo, os egípcios passaram a relacionar o funcionamento do órgão com a coordenação motora. Há descrições completas de procedimentos cirúrgicos intracranianos nos papiros do século 15 a.C. No entanto, só recentemente, em 2001, especialistas da Universidade de Chicago, Estados Unidos, que realizaram tomografias em ossadas encontradas em Saqqara, um dos sítios arqueológicos mais importantes do Egito, conseguiram demonstrar casos em que os crânios abertos cirurgicamente apresentavam indícios de cicatrização, o que leva a crer que o paciente sobreviveu à operação. E melhor: ele não deve nem ter sentido muita dor.
O uso de anestésicos era prática comum dos médicos da época. O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) Mário Curtis Giordani cita em seu livro História da Antiguidade Oriental um processo de adormecimento de partes do corpo feito com a utilização de uma mistura de pó de mármore e vinagre. Antonio Brancaglion destaca os anestésicos à base de opiáceos que eram ingeridos. Esses antecessores da morfina só voltaram a fazer parte dos procedimentos cirúrgicos cerca de três séculos atrás, na Europa. Os egípcios dominavam métodos avançados para amputação de membros e cauterização e davam pontos para fechar incisões. Acredita-se que foram os primeiros a utilizar essa técnica. Os médicos eram especializados como nos dias de hoje. Quem cuidava de fraturas não mexia com problemas de pele. A especialização incluiu o aparecimento dos odontólogos. Os dentistas já usavam brocas, drenavam abscessos e faziam próteses de ouro.
E, para quem pensa que a medicina egípcia era coisa para poucos, aí vai uma nova: os trabalhadores braçais – os mesmos que empurraram pedras monumentais para construir as pirâmides – possuíam uma espécie de plano de saúde. Escavações na Cidade dos Trabalhadores – um conjunto de casas encontrado na planície de Gizé, à sombra da grande pirâmide – revelaram múmias com até 4 500 anos que receberam tratamento médico. “Eram pessoas comuns que se curaram e voltaram ao trabalho”, afirma Zahi Hawass, diretor do Conselho Supremo de Antiguidades do Egito. “Alguns corpos apresentavam marcas de fraturas consolidadas, membros amputados e até cirurgias cerebrais.”
Outro avanço da medicina egípcia foram os métodos contraceptivos. A egiptóloga Margaret Marchiori Bakos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, diz que a maioria deles consistia na aplicação de emplastros espermicidas na vagina. O papiro Ebers relata que “para permitir à mulher cessar de conceber por um, dois ou três anos: partes iguais de acácia, caroba e tâmaras; moer junto com um henu de mel, um emplastro é molhado nele e colocado em sua carne.” Um “henu” equivale a cerca de 450 mililitros. “A acácia continha goma arábica, que com a fermentação e a dissolução em água resulta em ácido lático, ainda hoje utilizado em algumas geléias contraceptivas. O mel, que também aparece no papiro Kahun, pode ter tido alguma eficácia. “Seu efeito tende a diminuir a mobilidade do espermatozóide”, diz Margaret.
Quando havia suspeita de gravidez eram feitos testes com a urina. “A mulher urinava em um recipiente em que havia uma variedade de cevada. Se ela germinasse, a gravidez estava confirmada”, diz Antonio Brancaglion. Para o especialista, independentemente do percentual de acertos, o mais notável é o conhecimento da relação entre a composição da urina e a gravidez.
Circunavegação da África e controle de cheias
A medicina não foi a única ciência em que os egípcios se desenvolveram. Eles foram engenheiros notáveis em química, construção civil, naval e hidráulica. “Nem sempre é possível afirmar que tenham sido precursores nesta ou naquela descoberta”, afirma Antonio, “pois a pesquisa nunca termina. Baseando-se no que se encontrou até hoje, dá para concluir que eles foram os primeiros em diversas tecnologias.”
Na navegação, há fortes indícios de que alguns dos louros atribuídos aos fenícios precisam ser divididos com os egípcios. A vela mais antiga de que se tem notícia, por exemplo, é egípcia e foi encontrada dobrada dentro de uma múmia em Tebas, de cerca de 1000 a.C. Os mais antigos modelos de barcos a vela dos fenícios de Tiro e Cartago datam do século 8 a.C. Os egípcios foram os primeiros a projetar barcos pensando previamente no destino que eles teriam. Modelos militares eram diferentes dos cargueiros, que por sua vez não se pareciam com os utilizados para lazer ou cerimônias religiosas. Eles criaram os melhores barcos militares e a frota mais veloz. A chamada nau de Quéops, com 47 metros de comprimento e datada da Quarta Dinastia (2589 a 2566 a.C.), é a mais antiga embarcação desse porte encontrada até hoje. Num barco ainda maior, durante o governo do Necho II (610 a 595 a.C.), eles já haviam realizado a circunavegação da África.
Quem acredita que o primeiro navegador a dobrar o cabo das Tormentas, no sul da África, foi o português Bartolomeu Dias, em 1488, precisa rever seus conceitos.
Os armadores egípcios conheciam as propriedades de expansão da madeira, rigidez e durabilidade. Tais conhecimentos eram vitais na construção de embarcações capazes de sustentar blocos de pedras com mais de 80 toneladas. “O grande mistério da engenharia naval do Antigo Egito não é como os barcos agüentavam tanto peso, mas de que forma as pedras eram colocadas neles. Há diversas suposições, que vão da construção de diques secos até afundamento dos barcos para posterior emersão, no caso de cargas menores”, diz Antonio Brancaglion. Até agora não foram encontrados registros sobre como eles colocavam uma rocha de 80 toneladas numa balsa sem que ela adernasse durante a operação. Mas que eles conseguiam, conseguiam.
Um dos feitos mais impressionantes dos engenheiros do Antigo Egito foi a construção de um antecessor do atual Canal de Suez. “Em aproximadamente 2500 a.C. os egípcios construíram uma eficiente passagem ligando o mar Vermelho ao Mediterrâneo, como os europeus vieram a fazer em 1869.”
O Nilo, artéria que era a própria vida do Antigo Egito, desde os primeiros povos que se instalaram na região, cerca de 5500 a.C, foi também uma importante fonte de pesquisa e avanços científicos. Os egípcios sabiam da importância do rio como via de transporte e de sua relação com a preservação e manutenção das terras férteis ao longo do vale. As cheias eram vistas como benéficas pelos egípcios e não como uma vingança dos deuses, como na Mesopotâmia. O livro do professor Mário Giordani mostra o uso de instrumentos para medir a variação das cheias (nilômetros), relata os conhecimentos sobre fertilizantes naturais, como esterco, o trabalho das minhocas e a própria lama do Nilo, que era transportada para áreas a princípio estéreis. Foram os primeiros também a utilizar o arado manual.
Por volta de 2300 a.C. eles já aplicavam técnicas de irrigação artificial, por meio de canais com vazão controlada. Criaram um sistema de bombeamento de água chamado shaduf. Consistia em um processo elevatório que levava a água até locais naturalmente não inundados, para aumentar a área produtiva. O shaduf é usado até hoje, principalmente no bombeamento de pequenas quantidades de água ou situações em que o custo da implantação de sistema automático não é compensador. A roda para bombear água movida a tração animal também vem do Egito, no tempo dos romanos, entre 30 a.C. e 395 d.C.
Greves e telhado de vidro
Na construção civil, os egípcios foram grandes mestres. Construções como as grandes pirâmides, a esfinge e as estátuas no Vale dos Reis estão entre as estruturas mais belas e requintadas da Antiguidade, mas os exemplos do impressionante uso da pedra, da marcenaria e da fabricação do vidro estão por todo o Egito. E, mais uma vez, o modo de vida e a religião estão diretamente ligados ao desenvolvimento de técnicas de construção. “Os egípcios queriam durar para sempre e isso fazia parte de vários aspectos de sua cultura. Seus templos eram construídos com a expectativa de serem eternos. As paredes de pedra serviam, ainda, como suporte para sua história, seu contato com o passado”, diz Antonio Brancaglion.
Os egípcios são considerados precursores do uso de pedras para obras em larga escala. Os primeiros registros datam de quase 5 mil anos atrás. Na Terceira Dinastia, por volta de 2700 a.C., já se cortavam pedras no tamanho e no formato dos tijolos atuais. As construções em rocha e a precisão nos cortes mostram os conhecimentos geológicos avançados dessa civilização. Eles já sabiam que a dureza das rochas variava conforme sua composição mineralógica e que elas tinham pontos frágeis em sua estrutura, por meio dos quais se aplicavam as técnicas de corte. Nas fissuras eram introduzidos instrumentos de madeira, posteriormente molhados. Expandidos, eles forçavam a quebra da rocha no ponto desejado. Os egípcios criaram também os primeiros serrotes de metal. Eram utilizados em rochas menos duras, como o calcário.
Desenvolveram técnicas de polimento com areia e modernas formas de encaixe, tanto da madeira quanto da pedra. “Recortes tipo macho e fêmea vieram daí”, afirma Antonio. “O pó que sobrava do corte e polimento das rochas era misturado a cal, gesso e água, formando uma massa usada para tapar buracos ou corrigir irregularidades nas paredes: um antepassado do cimento.” Ainda na construção civil, os discípulos dos faraós foram os primeiros a estudar profundamente o solo para a colocação de fundações e a construir sistemas de calhas para escoamento da água da chuva.
A estrutura de dutos e calhas também era montada no campo, para evitar deslizamentos de terra e inundação de áreas férteis pela chuva que escorria das encostas. A primeira barragem pluvial de que se tem notícia data do final da Segunda Dinastia (2750 a.C.). Tinha 10 metros de altura e 1,5 quilômetro de extensão. Cedeu numa tempestade quando estava em fase final de construção. A engenharia egípcia também foi a primeira a utilizar réguas, esquadros e prumos. Eles foram os inventores do vidro moldado, processo ainda presente em alguns setores da fabricação de vidro opaco. A técnica do sopro foi desenvolvida posteriormente na Mesopotâmia. A base da tecnologia da fundição do bronze e de outros metais no mundo todo também veio do Antigo Egito.
Os egípcios eram caprichosos joalheiros e marceneiros. A técnica de solda e montagem de jóias é a mesma dos tempos atuais e, na marcenaria, se destacaram pelos detalhes no entalhamento dos móveis e modernidade dos projetos. Já produziam móveis dobráveis e foram os precursores das camas com estrado. “Os egípcios de classes mais altas foram os primeiros a dormir em camas de madeira com estrado”, conta o especialista do Museu Nacional.
Com tanto trabalho por fazer, era natural que as primeiras organizações entre os operadores dessa incrível máquina de construir se formassem por ali. O Antigo Egito foi palco das mais antigas greves de que se tem notícia. O registro mais remoto de uma paralisação desse tipo aconteceu no Novo Império (entre 1570 e 1070 a.C.), durante o reinado de Ramsés III. Os operários da construção de um templo decidiram cruzar os braços por não receber no prazo combinado comida, roupas e maquiagem que usavam para trabalhar. O sacerdote tentou negociar com os grevistas, mas o patrão, ou melhor, o faraó não cumpriu a promessa. Só o fez dois meses depois, quando os operários não apenas cruzaram os braços novamente, mas também ocuparam o templo que estavam construindo.
Se por um lado fizeram greves, por outro criaram técnicas de policiamento utilizadas até hoje, como o uso dos animais na captura de malfeitores. Há registros de policiais fazendo patrulhamento acompanhados por macacos e cenas de babuínos pegando ladrões em mercados.
Azul do céu e das tintas sintéticas
“Nem sempre os egípcios foram inventores desta ou daquela tecnologia. Muita coisa feita por outros povos eles aperfeiçoaram”, diz Antonio Brancaglion. Seu papel no mundo antigo não era o de produtor de matéria-prima, mas o de transformador de tecnologia e exportador. “Poderia ser comparado aos Estados Unidos de hoje, um grande centro de pesquisa e comércio internacional.”
A criação da cerveja, por exemplo, costuma ser atribuída a eles, mas os mesopotâmicos também conheciam o método de fermentação e fabricavam bebida semelhante. “Só que ninguém se aperfeiçoou tanto nos aromas e na variedade de sabores como os egípcios. O que possivelmente tenha sido idéia deles foram as grandes cervejarias, aonde as pessoas iam para beber e conversar já em 1500 a.C. A indústria da panificação também vem dos egípcios, bem como a adição de frutas e temperos aos pães”, afirma o professor.
Além de estudiosos da Terra, os egípcios gostavam de desvendar os mistérios do céu. O mapeamento celeste foi feito por egípcios e mesopotâmicos. Aos egípcios coube o reconhecimento das estrelas para contar as horas de noite e a montagem do primeiro calendário solar, com 365 dias em 12 meses. Foram eles também que dividiram o dia em 24 horas, 12 para a noite e 12 para o dia. Identificaram planetas como Vênus e Marte e estrelas como Sirius e Órion e localizaram o norte pelo posicionamento das estrelas.
Os egípcios foram químicos valiosos. Pioneiros na indústria de perfumes e excelentes técnicos na área de cosméticos – a maquiagem tinha uma grande importância para a saúde, pois sua composição protegia a pele dos efeitos do sol –, eles foram os primeiros a fabricar uma tinta sintética. “Os artistas usavam tintas com base mineral em vez de vegetal, como faziam outros povos. O branco vinha do cal, o amarelo do ferro, o preto do carvão e assim por diante. Muita gente pensa que o azul vinha do lápis-lazúli moído, o que não é verdade. Essa rocha gera pó branco e não azul. Para chegar ao azul eles misturavam óxidos de cobre e cobalto com bicarbonatos de sódio e cálcio e fundiam a mais de 700 graus Celsius.
Essa fusão resultava em uma pedra azul que era moída e misturada com um aglutinante natural, como clara de ovo ou goma arábica, e virava uma espécie de guache”, diz o estudioso. Os vernizes criados naquela época à base de damar, uma resina vegetal, são utilizados até hoje. Eles conheciam o betume e usavam uma espécie de piche como selante.
Instrumentos como harpa, flauta, trombeta de metal, oboé e dois tipos de alaúdes, o menor com um som parecido ao do violino, também são originários da terra dos faraós, bem como jogos de tabuleiro e brincadeiras infantis como cabra-cega e amarelinha. Com toda essa herança, por mais que as origens de cada um de nós não passe nem perto das etnias do Antigo Egito, essa civilização faz parte dos nossos hábitos e costumes.
Eles queriam ser eternos. Ordenaram todas as suas energias, corações e mentes para isso. Construíram seus templos de pedra, onde gravavam suas memórias nas paredes, mumificavam os mortos para que seus corpos vivessem até a eternidade e, assim, desenvolveram a ciência, a arte e os costumes. Não resta dúvida: eles conseguiram.

As primeiras feministas
Afirmar que as egípcias foram as primeiras feministas da história pode parecer precipitado, já que o assunto dificilmente estaria em pauta naquela época. Mas, queimas de sutiãs à parte, no mundo dos faraós elas tinham poder e direitos de dar inveja a diversas sociedades contemporâneas. Dependendo da classe social, pode-se até concluir que tinham mais direitos e papel bem mais expressivo que muitas mulheres do século 21.
Conquista como o divórcio, que, no Brasil, só aconteceu na década de 1970, era uma prática aceita naquela sociedade, inclusive quando solicitado pela própria mulher, afirma a professora Margaret Bakos. Foram encontrados registros de pedido de divórcio por parte do homem e da mulher no Novo Império (1555 a 1090 a.C.).
Há documentos que mostram as preocupações com a situação dos bens do casal em caso de separação, quando a mulher costumava ficar com a casa e com os filhos. A poligamia não era proibida, mas a responsabilidade financeira que um egípcio tinha com suas mulheres o fazia pensar muito antes de ter mais de uma esposa.
A egiptóloga diz que não havia qualquer referência nos papiros em relação à virgindade ou à restrição do sexo apenas com finalidade de procriação. “Os egípcios não eram tímidos em relação ao sexo, tinham consciência de seus prazeres, mas não costumavam tornar o assunto público. Quanto ao aborto, sabe-se que existia, mas não era prática comum”, afirma Margaret. “Há registros de pessoas que foram incriminadas por terem conduzido um aborto que resultou na morte da mulher.”
A maioria de suas tarefas era voltada para o lar, mas havia sacerdotisas, agricultoras, escribas e donas de seus próprios negócios (padarias, peixarias) e galgavam com méritos próprios posições hierárquicas. Elas casavam cedo, normalmente próximo da primeira menstruação, mas isso não significa que não fossem sexualmente ativas antes da coabitação, lembra a historiadora. Pelos registros encontrados, o valor do pagamento por seus trabalhos era igual ao dos homens. O homem e a mulher tinham posição de igualdade perante a lei. A mulher podia herdar, deixar heranças, trocar e vender propriedades e escravos.
Conscientes ou não do conceito de feminismo, as devotas da deusa Ísis têm muito a ensinar àqueles que hoje ainda fazem distinção entre os direitos dos seres humanos, qualquer que seja a desculpa adotada.

A ciência da mumificação
A preocupação com os mortos revelou importantes segredos do corpo humano
Os grandes avanços da medicina praticada pelos povos do Antigo Egito devem-se, principalmente, aos sofisticados processos de mumificação. Por meio deles, conheceu-se detalhadamente todo o sistema circulatório, as vísceras, bem como o funcionamento do coração, que os egípcios acreditavam ser o gerenciador do corpo e das emoções. Com o objetivo de preservar os cadáveres, eles desenvolveram técnicas de embalsamamento e estudaram profundamente métodos de retirada de órgãos. Para tanto, eles estudaram a fundo a anatomia e criaram instrumentos específicos para cada função, tataravôs dos bisturis, agulhas e pinças encontrados nas mãos dos cirurgiões modernos. Os médicos registravam cada avanço em papiros estudados até os dias de hoje.
SALGADOS
Os corpos e órgãos eram tratados com nitrão, um sal mineral comum na região, para evitar a decomposição
ATADURA
As faixas de linho que envolviam os mortos eram banhadas em resina e goma
LAVAGEM
Fígado, estômago e intestinos eram lavados diversas vezes antes de serem envasados
SOBRAS
Resíduos resultantes das incisões para retirada de órgãos durante a mumificação eram jogados no rio
COM AS TRIPAS DE FORA
As vísceras eram cuidadosamente retiradas e colocadas em jarros de barro, chamados canopos. Eles eram guardados nas tumbas próximo aos sarcófagos. As tampas reproduziam imagens sagradas
BOLETIM MÉDICO
Os conhecimentos científicos eram registrados por meio de relatos e desenhos em documentos chamados papiros médicos. Tais registros indicavam que os médicos egípcios se dividiam em especialidades. Durante a mumificação os papiros usados não eram os científicos, mas aqueles que continham trechos das orações encontradas no Livro dos Mortos
FACA AFIADA
Os métodos mais sofisticados de mumificação previam a retirada das vísceras antes do início do enfaixamento do corpo. A extração acontecia por meio de cortes precisos, feitos por lâminas afiadas que deram origem a alguns instrumentos cirúrgicos contemporâneos, como o bisturi. O cérebro costumava ser extraído pelas narinas. Graças a essas incisões é que os egípcios conheceram o interior do corpo humano
BANHO DE CHEIRO
Antes de enfaixar os mortos, os egípcios costumavam besuntar o cadáver com óleo perfumado. As faixas de linho engomadas eram colocadas primeiro na cabeça, depois nas mãos – respectivamente na direita e na esquerda – nos pés, primeiro no direito e posteriormente no esquerdo, e só depois na outras partes do corpo. Uma múmia podia ter até 20 camadas de tiras de pano sobrepostas
CACHORRÃO
A espiritualidade do ritual era garantida por um sacerdote usando uma máscara do deus Anúbis

Linha do tempo
A evolução de uma civilização milenar
Períodos Pré-Dinástico e Arcaico – 5500 a 3000 a.C.
Unificação do Egito (aprox. 3100 a.C.)
Dinastias 1 e 2
Antigo Império e 1º período intermediário – 3000 a 2061 a.C.
Construção das Grandes Pirâmides – Quéfren, Quéops e Miquerinos
Dinastias 3 a 11
Médio Império e 2º período intermediário – 2061 a 1570 a.C.
Grande desenvolvimento literário Invasão dos Hicsos
Dinastias 11 a 17
Novo Império e 3º período intermediário – 1570 a 656 a.C.
Construção do Vale dos Reis
Reinados de Tutancâmon e Ramsés III
Batalha Naval contra os Povos do Mar (aproximadamente 1100 a.C.)
Dinastias 18 a 25
Períodos Saíta e Baixa Época – 656 a 343 a.C.
Dinastias 26 a 30
Fim da era dinástica
Períodos Persa e Greco-Romano 343 a.C. a 395 d.C.
Conquista de Alexandre
Reinado de Cleópatra

A complexidade da escrita hieroglífica
Os hieroglifos chamam atenção pela beleza de seus traços e pela riqueza de detalhes. Juntamente com os ideogramas chineses, eles atraem o olhar de muita gente que não faz a menor idéia de seu significado, mas que propaga seu uso em objetos de decoração e adornos. Com sintaxe complexa, os hieroglifos surgiram entre 3500 e 3000 a.C. e eram usados em escrituras oficiais e religiosas.
Ciro Flamarion Cardoso, professor de História Antiga e Medieval da Universidade Federal Fluminense, afirma que os hieroglifos têm três tipos de representação. “Eles podiam aparecer como signos fonéticos indicando um, dois ou três sons equivalentes a consoantes ou semiconsoantes, já que as vogais não eram representadas; como complementos fonéticos da leitura ou ainda como signos puramente ideográficos”, afirma Ciro. Por exemplo: um homem sentado podia indicar que a palavra anterior se referia a alguém do sexo masculino, sem que essa representação tivesse algum valor fonético. “Cada palavra egípcia tem uma raiz invariável, à qual se agregam desinências indicativas de gênero, número, flexões verbais. Essas indicações vêm sempre no fim da palavra”, diz o especialista
Segundo ele, a elipse alongada (cartouche) em torno dos nomes ou referências dos reis indica proteção divina. Na inscrição relativa a Tutancâmon (ao lado), o primeiro cartouche contém o nome de trono do monarca. O segundo, seu nome pessoal e o terceiro, sua função. As frases podiam ser escritas em colunas ou linhas e a direção da leitura era indicada pelos signos que representam os seres animados (insetos e aves, por exemplo), que sempre olham para o início da frase. Em geral, o egiptólogo tem de separar as palavras e frases entre si pela lógica ortográfica e gramatical do período em que o texto se gerou. “Os egípcios procuravam mostrar os signos de maneira estética, em função disso dispunham-nos às vezes em cima um do outro ou até mesmo superpondo-os”, afirma o especialista.

Aprenda como ler
A inscrição sagrada no túmulo de Tutancâmon
1. Os textos podiam aparecer em linhas ou colunas, ou cada trecho de uma forma, como nesta inscrição com três colunas e uma linha
Como se lê?
Como se fala? - ntr nfr nbtzwy nb h ‘w
O que significa? - O Deus perfeito, senhor das duas terras, senhor das coroas
2. As linhas ao redor das palavras serviam para proteger nomes sagrados, como o do trono do rei aqui descrito
Como se lê?
Como se fala? - nsw-bity (nb-hprw-r’)
O que significa? - o rei do alto e baixo egito, neb-kheperu-ra
3. A leitura costumava ser da esquerda para a direita e de cima para baixo. Aqui, o nome de Tutancâmon aparece protegido por uma linha
Como se lê?
Como se fala? - sz r’ (twt-’nh-imn hkz iwnw sm’)
O que significa? - o filho do sol, tutancâmon, governante de heliÓpolis meridional
4. As posições das figuras de animais indicavam a direção em que se deveria ler o texto. Nesta, a cobra mostra leitura da direita para a esquerda
Como se lê?
Como se fala? - di ‘nh dt
O que significa? - dotado de vida eternamente
A frase escrita diz:
ntr nfr nbtzwy nb h ‘w nsw-bity (nb-hprw-r’) sz r’ (twt-’nh-imn hkz iwnw sm’) di ‘nh dt
“O deus perfeito, senhor das duas terras, senhor das coroas, o rei do Alto e Baixo Egito, Neb-kheperu-ra (o senhor das transformações é o deus solar), o filho do sol, Tutancâmon, governante de Heliópolis meridional, dotado de vida eternamente.”

Para saber mais
NA LIVRARIA:
O que São Hieroglifos, Margaret Bakos, Brasiliense, São Paulo, 1996
O Legado do Egito, Organização S.R.K Glanville, Universidade de Oxford, Inglaterra, l948
NA INTERNET
www.mempphis.edu/egypt/main.html
www.egipto.com/museo/
www.egyptianmuseum.gov.eg/



segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ordem na baderna

Condenadas pelo uso da violência, os grupos populares nas revoltas da Colônia tinham suas regras e rituais. Sinal de que nem tudo era permitido

Gefferson Ramos Rodrigues

Armário gótico português do século XVI e louças do período colonial. Em Salvador, em 1711, revoltados com o aumento do preço do sal - item de primeira necessidade - entraram na casa do responsável pelo abastecimento e atiraram seus pertences pela janela.

Quando alguma medida de governo rompe com o equilíbrio social, as pessoas ganham rapidamente as ruas. O estopim para os descontentamentos pode ser o aumento de impostos, o abuso de poder de autoridades, o aumento do preço de gêneros de primeira necessidade, entre outros. Os rebeldes tomam conta das praças, cercam o palácio do governador e se dirigem à Câmara Municipal. Nesse momento é comum a circulação de panfletos divulgando suas queixas ou difamando seus algozes. Eles registram as reivindicações por escrito e encaminham requerimentos às autoridades. Caso sejam atendidos, retornam para suas casas e a vida volta ao normal. Do contrário, o protesto se estende por mais alguns dias, ou meses, até que suas lideranças são reprimidas com castigos exemplares.
Se essa narrativa soa familiar, não é por acaso. Existe um tipo de comportamento característico nas rebeliões populares desde a Europa do Antigo Regime, que se repetiu no Brasil Colonial e ainda pode ser identificado nas revoltas contemporâneas. Algumas eram mais radicais, outras nem tanto, mas é possível admitir que seguissem determinado padrão. Além disso, elas se apresentavam de maneira fortemente ritualizada.
Nos documentos de época, as sublevações são sempre descritas como movimentos desorganizados, desordeiros, caóticos. Mas uma leitura atenta sobre essas mesmas fontes permite outro tipo de interpretação, que revela uma “desordem ordeira” – como definiu o historiador inglês E. P. Thompson, em análise sobre os motins da fome na Inglaterra do século XVIII.
Padrões de comportamento similares aconteceram entre os moradores da América portuguesa. Nas primeiras décadas do século XVIII, os moradores da Bahia e de Minas Gerais se rebelaram violentamente contra as ordens da Coroa portuguesa, mas não de forma indiscriminada. O chamado “Motim do Maneta” em Salvador, no ano de 1711, e a revolta de 1736 no sertão do rio São Francisco, em Minas Gerais, são duas excelentes situações para se examinar a conduta da multidão.
Para os baianos, aquele século começou difícil. Os preços do açúcar não paravam de cair em razão da concorrência das Antilhas. A situação se agravou com a descoberta das minas de ouro, que atraíram a compra de escravos para as áreas de mineração e fizeram aumentar o preço dos cativos. Para piorar, instaurou-se um clima de desconfiança na capitania com a nomeação para governador do capitão-geral Pedro de Vasconcelos e Sousa, encarregado de implementar uma nova política tributária. Por determinação da Coroa, passou-se a cobrar uma dízima na alfândega (10% das mercadorias que entravam no porto de Salvador) e uma taxa sobre os escravos enviados para as Minas. Essas medidas tinham a finalidade de subsidiar despesas de segurança contra o assédio de nações estrangeiras atraídas pelo ouro recém-descoberto.
No dia 19 de outubro de 1711, em Salvador, a praça em frente ao Palácio do Governador ficou repleta de pessoas. Para convocar os moradores, o Juiz do Povo, que representava os “oficiais mecânicos” (artesãos como ferreiros, marceneiros e trabalhadores manuais em geral), ordenou que o sino da Igreja tocasse sem parar. O governador chegou a cogitar uma repressão violenta mas, aconselhado, desistiu da ideia.
Os rebeldes reivindicavam a suspensão dos 10% da alfândega e condenavam o abusivo aumento do preço do sal, que saltara de 480 para 720 réis o alqueire (em cálculos aproximados, 1 alqueire correspondia a 36,27 litros e 1 grama de ouro equivalia a 334,5 réis). Pedro de Vasconcelos argumentou que aquela reivindicação não deveria ser feita a ele, mas ao rei, o que serviu para deixar a população ainda mais furiosa. Nesse momento, os rebelados ganharam a liderança daquele que daria nome à revolta, o negociante João de Figueiredo da Costa, o Maneta, assim chamado em razão de uma deficiência.
Os amotinados acreditavam que o aumento vertiginoso do preço do sal – considerado um bem de primeira necessidade – era devido à interferência de Manuel Dias Filgueiras, responsável pelo abastecimento do gênero na cidade. A multidão marchou então até sua casa, localizada atrás da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, rompeu as portas do sobrado a machadadas, subiu ao andar superior e pela janela atirou às ruas seus refinados pertences. Em seu armazém, localizado na parte de baixo, quebraram vários barris de licor, derramando-o pelas ruas. A residência ficou quase toda destruída. 
A fúria dos amotinados voltou-se ainda contra o seu sócio Manoel Gomes Lisboa. Também invadiram a sua casa e lançaram pela janela objetos caros, inclusive ouro em pó – “ficando aquele metal pisado então da plebe vil”, conforme narrou Sebastião da Rocha Pita em História da América portuguesa (1730). Em nenhum dos casos houve registro de que os rebeldes tenham se apossado de qualquer bem.
A política fiscal da Coroa portuguesa continuou agressiva nas décadas seguintes e provocou constante instabilidade em Minas Gerais. A extração aurífera trazia prosperidade a alguns moradores, enquanto muitos viviam na pobreza, e quase todos contestavam o sistema de cobrança do quinto – taxa de 20% sobre a extração de ouro. Em 1736, essa regra de arrecadação passou a incluir até as áreas onde não havia extração aurífera, incidindo sobre escravos e o comércio. Isso deixou os moradores do sertão do rio São Francisco em polvorosa, pois se sustentavam basicamente da criação de gado e da agricultura.
O resultado foi uma série de levantes que se espalharam por diversas localidades, reunindo grandes proprietários rurais, religiosos, escravos, forros, índios e mestiços. Durante as sublevações, os rebeldes realizaram recrutamentos forçados, assaltaram mercadores e invadiram propriedades. Um dos pontos altos do protesto foi no dia 6 de julho, quando invadiram o arraial de São Romão e registraram no cartório local um requerimento endereçado ao governador reivindicando o não pagamento daquela cobrança. O protesto acabou disperso pela ação de um proprietário da região acompanhado de parentes e amigos. Ainda assim, os amotinados prometeram voltar no prazo de um mês para ver se a sua reivindicação fora atendida. Enquanto isso, a Coroa preparava a repressão e deslocava tropas para o arraial.
Aproximando-se o prazo estabelecido, os sertanejos marcharam novamente em direção à localidade. No caminho pilharam mercadores, invadiram fazendas, mataram animais e incendiaram engenhos. Domingos Álvares Ferreira e seu cunhado João de Meireles foram os que sofreram os maiores prejuízos, e não sem motivo: eles haviam sido os reponsáveis por dispersar o protesto em junho. Do primeiro pouca história restou para contar, uma vez que teve a sua casa reduzida às cinzas. Do segundo sabe-se que passou por vários tipos de humilhação e contabilizou perdas de mais de 20 mil cruzados, ou 24 quilos de ouro em pó, aproximadamente. Os rebeldes demoraram cinco dias em sua casa, considerada “uma das mais aparamentadas desse sertão”, matando bois e vacas, levando pertences pessoais e deixando-o só de ceroulas.
Ao chegarem a São Romão, pretendiam colocar fogo em todo o arraial, alegando que os moradores haviam agido como traidores por terem permitido a presença de tropas na localidade. Mas se contentaram em promover o saque geral em todas as casas, exceto na de alguns religiosos. Ao fim, não tiveram suas reivindicações atendidas, acabaram se dispersando pelo sertão e suas lideranças terminaram penalizadas pela Coroa.
Tanto na Bahia como em Minas Gerais, os alvos dos rebeldes eram cuidadosamente escolhidos, e a violência não era cometida a esmo: variava em meio a um repertório amplo de punições. As maiores eram reservadas àqueles que agiam em estreita cooperação com as autoridades – seus bens eram destruídos ou incendiados. E quando as propriedades não eram completamente arrasadas, os saques nunca serviam para o proveito pessoal, mas eram distribuídos pelas ruas, o que não configurava roubo. A queima de propriedades tinha forte efeito simbólico, com o fogo representando um ideal purificador. Para pessoas que tinham poucos recursos de luta, a utilização do fogo era sempre uma arma acessível e eficiente.
Diante de ações que pareciam barbárie, desordem e caos aos olhos das autoridades, havia decisões bastante lógicas, fundamentadas em causas consideradas justas e sacramentadas por rituais cheios de significação. Só não compreende quem está do lado oposto.

Gefferson Ramos Rodrigues é autor da dissertação “No Sertão, a revolta: grupos sociais e formas de contesttação na América portuguesa, Minas Gerais – 1736” (UFF, 2009).

Saiba mais - Bibliografia

DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Tradução Mariza Corrêa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. “A revolta é uma festa: relações entre protesto e festas na América portuguesa”. In: JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Íris. Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. Vol. 1. São Paulo: Edusp/ Hucitec/  Fapesp/ Imprensa Oficial, 2001. p. 263-276.
RUDÉ, George. A Multidão na História. Estudos dos Movimentos Populares na França e na Inglaterra 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Conjuração Mineira: Inconfidentes desde sempre

Em Minas Gerais, como em todo o Brasil, elites locais promoveram motins quando se sentiram prejudicadas pelas autoridades

Luiz Carlos Villalta
Reunião política em Pernambuco em gravura francesa do século XIX. A capitania foi palco de um movimento controverso em 1801 e de uma dramática revolução em 1817.
Quatro movimentos de oposição ao poder constituído, todos ocorridos durante o período colonial, são hoje conhecidos pela mesma qualificação. Teriam sido “Inconfidências”, tanto a mais famosa, em Minas Gerais (1788-1789), quanto as posteriores, no Rio de Janeiro (1794), na Bahia (1793-1798) e em Pernambuco (1801). O termo em comum tem o significado de traição à Coroa. Mas ele encobre grandes diferenças entre cada uma dessas manifestações políticas.
Mesmo antes delas, desde o meado do século XVII, houve vários outros “motins”. E depois, já no início do século XIX, finalmente uma “Revolução”: a de Pernambuco, em 1817.
Independentemente do nome que as define, certo é que, num período de pouco mais de um século, a América portuguesa viveu uma série de inquietações, conspirações e transformações políticas. Muitas vezes com motivações parecidas. Outras, com muitas especificidades a diferenciá-las.
A Inconfidência Mineira foi uma conspiração abortada, protagonizada por membros das elites intelectual, política, social e econômica, quase todos brancos (a única exceção foi um mulato, sem importância no movimento). Com a intenção de reter em suas mãos as riquezas geradas na capitania, combatiam o monopólio da Coroa sobre o comércio e sobre a extração de diamantes, pediam o perdão de dívidas e defendiam a liberdade para estabelecer manufaturas. O que os inconfidentes queriam era participar do poder e de oportunidades de lucro, fossem elas lícitas ou ilícitas (o contrabando). Para isso, cogitaram diferentes soluções: implantar uma República (sua proposta predominante), ou que a família real (ou um de seus membros) viesse para o Brasil, ou que se fizesse alguma negociação com a Coroa portuguesa. Falavam na transferência da capital para São João del-Rei, na criação de uma Universidade em Vila Rica e na criação de milícias formadas pelos cidadãos, no lugar de um exército permanente. Sonhavam com apoios da França e dos Estados Unidos. Pensavam em alforriar mulatos e crioulos (escravos nascidos na colônia), mas houve oposição à ideia. A Restauração Portuguesa (1640) e a Independência dos Estados Unidos (1776) foram as fontes inspiradoras do movimento, além das ideias dos pensadores iluministas Raynal (1713-1796) e Montesquieu (1689-1755).
As teorias corporativas de poder da Segunda Escolástica, cujos expoentes foram os teólogos espanhóis Luís de Molina (1536-1600), Francisco Suarez (1548-1617) e Francisco de Vitória (1483-1546), formavam a base da cultura política na época, e assim também inspiraram a Inconfidência Mineira. Segundo elas, o poder vinha de Deus para a comunidade e desta, por meio de um pacto, passava para o soberano – que devia fazer o bem comum, respeitar os privilégios específicos de cada grupo e a religião católica. Caso um rei ou autoridade local se tornasse tirânico, desrespeitando as leis e os privilégios e ignorando o bem comum, poderia ser objeto de rebelião. Alguns teóricos defendiam até mesmo o regicídio. Esses princípios escolásticos embasaram o sermão do padre Antônio Vieira (1608-1697) apropriado por Tiradentes, e estavam implícitos na postura dos inconfidentes de se insurgirem contra o poder instituído na capitania – classificado como “tirânico” por Tomás Antônio Gonzaga, e como “despótico” por Tiradentes.
A “Inconfidência” do Rio de Janeiro, em 1794, não foi sequer uma conspiração. Resumiu-se a discussões e conversas sobre o momento político, social e religioso da época. Os supostos inconfidentes pertenciam a um espectro social mais amplo que o dos mineiros, mas ainda restrito à limitada camada dos homens livres: professores, artesãos, proprietários de terras e um médico. Seus sonhos envolviam a dessacralização do poder real e a rejeição ao absolutismo, aos privilégios da nobreza e à preeminência do clero. Inspirados pela Revolução Francesa e pelo pensamento de filósofos das Luzes, particularmente Jean-Jacques Rousseau, defenderam ideias de liberdade e igualdade, bem como a forma republicana de governo. Mas não cogitaram nenhuma ação concreta contra a monarquia portuguesa ou contra o domínio colonial. As teorias corporativas de poder lhes serviram de forma residual para sustentar uma ou outra argumentação.
Também na Bahia os ideais franceses ganharam adeptos, dos estratos superiores aos inferiores da sociedade, das elites locais aos homens forros e cativos, e particularmente entre militares e artesãos. Um ou mais projetos de revolução circularam entre 1793 e 1798, envolvendo a instalação de uma república na capitania, o fim do monopólio comercial e das desigualdades jurídicas entre brancos e homens de cor e, tudo indica, apoios de franceses em algum nível. Embora almejado por alguns, o fim da escravidão não fazia parte das propostas. A revolução foi abortada antes de se concretizar. O governador da capitania, D. Fernando Portugal e Castro, provavelmente alertou os membros das elites sobre os perigos que corriam com os devaneios revolucionários: repressão por parte da Coroa ou perda do controle sobre as pessoas mais humildes. Quando a repressão de fato veio, ele protegeu figuras de destaque da sociedade baiana.
Historiadores divergem sobre o que foi a chamada Inconfidência dos Suassunas, ocorrida em 1801, em Pernambuco. Alguns a consideram um ensaio de conspiração, liderado por dois aristocratas do Engenho Suassuna: Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque e seu irmão José Francisco, que de Lisboa lhe mandava cartas sediciosas. O objetivo seria formar em Pernambuco uma república sob a proteção de Napoleão. Para outros, não foi mais que uma inquietação política.
Todas essas inconfidências não tiveram em mira o Brasil como um todo, circunscrevendo-se a uma capitania. No caso mineiro, quando muito, pode-se conjecturar alguma articulação com pessoas do Rio de Janeiro e de São Paulo. É provável – mas não certo – que maçons tenham participado da Inconfidência Mineira (caso talvez de José Álvares Maciel, o filho) e no Rio de Janeiro, com certeza, houve uma associação inspirada em regras da maçonaria: na Sociedade Literária, em que vigoravam o segredo e a democracia durante sua breve reabertura em 1794. Na Bahia, houve uma organização propriamente maçônica, ou protomaçônica, chamada Cavaleiros da Luz.
A famosa Inconfidência de Minas Gerais não foi a primeira revolta naquelas terras. Desde a primeira metade do século XVIII houve naquela capitania motins por razões variadas, em torno de questões como tributação, abastecimento de alimentos e ações das autoridades. Enquanto alguns levantes buscavam apenas a restauração de um equilíbrio de poder, outros afrontaram a imposição da soberania régia. Foi o caso da sedição do sertão do rio São Francisco, ocorrida em 1736, e que se voltou contra as autoridades reais e a capitação – cobrança dos quintos reais (impostos) feita com base no número de escravos. Durante o reinado de D. José I (1750-1777), eclodiram inconfidências em locais isolados de Minas – Curvelo (1760-1763), Mariana (1769), Sabará (1775) e de novo Curvelo (1776) sempre em funçaão de atritos com autoridades e seus aliados. No interior das elites havia grupos rivais, chamados de “partidos”, que constituíam verdadeiras “redes clientelares”, isto é, pessoas ligadas entre si por interesses políticos, sociais e econômicos, numa cadeia de dependência mútua e com hierarquia que muitas vezes tinha seu vértice em Lisboa. Ao contrário da Inconfidência Mineira, esses motins anteriores implicavam manifestações concretas de violência, com a população na rua, arruaças, vivas à liberdade e referência a apoios de outras potências colonizadoras.
Pasquins foram utilizados nos motins locais, enquanto a Inconfidência Mineira, mais ampla por reunir homens de várias comarcas, teve como base a comunicação oral e textos impressos, juntando a discussão literária ao debate político. Os inconfidentes falaram explicitamente em República e em ruptura dos laços com a mãe-pátria. Nenhum motim ou inconfidência anterior fez este tipo de proposição, talvez sendo exceção o tentado em Pernambuco em 1710. No máximo afrontaram o rei, sem defender a separação da América ou de parte dela do resto do império português.
Movimentos com as mesmas características dos motins mineiros ocorreram ainda em outras partes do Brasil, e já aconteciam no século anterior. Exemplo disto é a Revolta da Cachaça [ver artigo de Bruna Milheiro Silva], ocorrida no Rio de Janeiro ainda em 1660. Ela foi motivada, sobretudo, pela cobrança de uma nova taxa sobre todos os moradores para a defesa da cidade e pela “tirania” do governador Salvador de Sá Correia e Benevides, evidenciada pela nomeação de parentes para altos postos da capitania e por sua aproximação da Companhia de Jesus contra a escravidão dos índios. Na madrugada de 8 de novembro daquele ano, proprietários de engenhos de açúcar no entorno da Baía de Guanabara atravessaram a baía e reuniram em torno de si uma multidão.Ocuparam a Câmara municipal, destituíram seus conselheiros, depuseram o governador da capitania, gritaram por liberdade, dispararam a tocar o sino da Câmara, dirigiram palavras de ódio às autoridades e saquearam casas de pessoas identificadas com o governo. Ao mesmo tempo, deram Vivas a Sua Majestade. Além disso, ofenderam e atacaram jesuítas e beneditinos. Desses tumultos emergiu um novo governo, que administrou a cidade por seis meses, fazendo-se eleições para a Câmara e promulgando-se uma espécie de Constituição.
Outra revolta anterior aos motins mineiros foi a ocorrida em Pernambuco, em 1710, quanto aristocratas quiseram depor o governador Castro e Caldas, “tirano, inimigo da nobreza e perseguidor do clero [...], francófilo e traidor”, e tinham a utopia de instaurar um regime republicano oligárquico, como havia em Veneza e na Holanda – antecipando, de certo modo, as aspirações da Inconfidência Mineira.
O mesmo cenário acolheria, um século depois, a contestação mais radical e ousada já vista no Brasil até então, a ponto de receber o nome de Revolução. Mas os episódios que inflamaram Pernambuco em 1817 vieram em contexto inteiramente diferente de todos os motins e inconfidências que os precederam. A transferência da Corte portuguesa e o Rio de Janeiro como capital do Império inaugurariam um novo período de revoltas, movidas por oposição a outras relações de poder.

Luiz Carlos Villaltaé professor da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de 1789-1808: O Império Luso-Brasileiro e os Brasis (Companhia das Letras, 2000).

Contra o absolutismo fluminense

Nove anos após a chegada da Corte, em 1817,  em meio ao aumento de importância das lojas maçônicas, a Revolução Pernambucana exprimiu o descontentamento das capitanias do norte com o governo absoluto sediado no Rio de Janeiro. O movimento se expandiu por Alagoas (então comarca de Pernambuco), Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Ele anunciava o antagonismo entre brasileiros e portugueses. O Correio Braziliense, jornal publicado em Londres, afirmou que o movimento teria sido causado por “um rumor, que se levantou, sem o menor fundamento, de que havia entre os habitantes daquela cidade certa rivalidade e ódio dos Portugueses Europeus com os Portugueses Brasilianos”.
A Revolução se iniciou no dia 6 de março entre os militares, que conquistaram a população civil e conseguiram expulsar o governador da capitania, Caetano Pinto de Miranda Montenegro. A República foi apoiada por pessoas de diferentes níveis sociais: aristocratas, senhores de terras, grandes comerciantes “brasileiros”, clérigos, magistrados e oficiais militares, forros sem escravos e terras, pequenos proprietários de terras e, por fim, escravos.
O novo governo convocou uma Assembleia Constituinte, criou uma bandeira própria e adotou o termo “patriota” para designar os seus, aumentou os soldos dos oficiais e soldados, aboliu vários impostos e seguiu como princípios a liberdade de consciência, de imprensa e a tolerância religiosa (embora a católica fosse a oficial), além de conceder facilidades aos portugueses para se naturalizarem.
A República dentro do reino do Brasil durou 64 dias, caindo em 21 de maio.

Saiba mais - Bibliografia

ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes. Violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.
JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec: Salvador: UFBA, 1996.
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa. Inconfidência Mineira. Brasil-Portugal. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates. Pernambuco. 1666-1715. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.