segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Amarguras de engenho: A Revolta da cachaça

Revolta “da cachaça” espelhou as tensões da elite fluminense em relação aos desmandos da poderosa família Sá

Bruna Milheiro Silva

Durante o período colonial, nem sempre a pena capital foi utilizada para punir revoltosos.Ainda mais quando eles pertenciam à elite. O exemplo de execução mais conhecido da história do Brasil é o de Tiradentes que, no entanto, era apenas um militar de baixa patente. Outro caso bem menos famoso foi o de Jerônimo Barbalho Bezerra (1616-1660), integrante de uma das principais famílias donas de terras que povoaram o Rio de Janeiro nos primeiros séculos da colonização.
O movimento do qual participou Jerônimo ficou conhecido como “revolta da cachaça”, pois a proibição de produzir e comercializar aguardente gerou grande descontentamento entre os donos dos engenhos. No Rio de Janeiro, esse produto era mais importante economicamente do que o açúcar, que não alcançava grande qualidade e perdia fácil na concorrência com outras regiões, como Pernambuco. Mas a cachaça foi apenas o estopim de insatisfações bem mais antigas.
Os membros da elite local não formavam uma classe homogênea e harmônica: discordavam em vários pontos e se dividiam em grupos com interesses divergentes. Os debates eram constantes e as desavenças também. Com vastas posses e enorme prestígio junto à Coroa portuguesa, a família Sá dominou os dois primeiros séculos da vida colonial carioca e fluminense. Mem de Sá foi o terceiro governador-geral do Brasil, Estácio de Sá foi capitão-mor, Salvador Correia de Sá, o Velho, foi governador da cidade, assim como seu filho, Martim de Sá, e seu neto, Salvador Correia de Sá e Benevides, que teve vários mandatos como governador nas décadas de 1640, 1650 e 1660. Tamanho poder, por tão longo período, resultou em um acúmulo de insatisfações que, vez por outra, vieram à tona.
Em 1635, João de Castilho Pinto, provedor da Câmara, escreveu uma petição condenando a atuação de pessoas poderosas que impediam que o trabalho de medição de terras fosse feito como deveria ser: pela Câmara da cidade, visando ao bem comum de seus moradores. Também ele membro de uma das principais famílias da terra, tradicional ocupante de postos na Câmara, Castilho Pinto queixava-se de que não havia justiça que pudesse fazer frente ao poder que tinham algumas pessoas diante do rei e dos magistrados em Portugal. O recado tinha endereço certo: era uma crítica às prerrogativas da família Sá, que possuía vastas extensões de terra dentro da Capitania e que, além disso, estaria se utilizando de sua rede de relações e se beneficiando de seu prestígio para manipular cargos e obter vantagens pessoais.
A disputa entre membros da elite e entre os poderes da cidade não teria maior repercussão se não fosse a crise econômica que se abatia sobre o Rio de Janeiro. O comércio começava a sofrer com a escassez de dinheiro, e o açúcar passou a circular como moeda. Como era um produto de baixa qualidade, na hora da troca por outras mercadorias, ele perdia valor de mercado, o que vinha causando prejuízo aos senhores de engenho locais. Oficialmente, o açúcar circulava no Rio de Janeiro com o valor arbitrado de 1$200 (um conto e duzentos mil-réis) por arroba. Convertido em dinheiro, porém, ninguém pagava por ele mais de $700, enquanto em Lisboa o açúcar era cotado a 3$200. Era por este preço que a Companhia de Comércio do Brasil, uma empresa com acionistas, sediada em Lisboa, e responsável pelo abastecimento de gêneros alimentícios aos habitantes do Brasil, o vendia, auferindo os seus maiores lucros do negócio.
A tensão na Câmara cresceu após a sugestão do governador D. Luís de Almeida, em 1653, de transferir os encargos ao povo através da compra do açúcar encalhado. Ao fim e ao cabo, o governador e a Câmara concordaram em enviar um representante ao rei para expor a situação crítica em que se encontravam aquela praça e seus moradores desde a fundação da Companhia de Comércio do Brasil, em 1649.
Enquanto esse debate agitava os oficiais e o povo, Salvador Correia de Sá e Benevides conseguia uma vantagem do Conselho Ultramarino, de acordo com a qual todas as embarcações que tivessem carregamentos no Rio de Janeiro deveriam reservar 10% de sua carga para o transporte do açúcar dos engenhos locais. Era claro que Sá e Benevides tinha benefícios que outros senhores de engenho, mesmo os de famílias importantes, não tinham. Sem contar que ele já recebera uma concessão para a construção do trapiche da cidade e recebia benefícios da Companhia de Comércio do Brasil, como a tal garantia da reserva logística – todos os demais senhores de engenho dependiam de negociações.
Enfim, veio a gota d'água, em forma de cachaça: em Carta Régia de 13 de setembro de 1654, proibia-se a produção de aguardente, decisão que beneficiava a já contestada Companhia de Comércio, que tinha o monopólio da venda de vinhos no Brasil. A cachaça era o produto que ainda gerava algum lucro para os engenhos, evitando a falência em massa dos produtores de cana. Nos anos que se seguiram, assumiram cargos no governo da capitania pessoas ligadas à Companhia: Tomé Correa de Alvarenga e o próprio Salvador Correa de Sá e Benevides.
Assim que tomou posse do governo pela terceira vez, Sá e Benevides propôs a criação de novos impostos, com o objetivo de pagar os soldos atrasados da guarnição de infantaria. Em meio a vários debates com a Câmara, ainda determinou a criação de um imposto no valor de 8$000 aos mais ricos da capitania.
A revolta eclodiu em 1660, reunindo representantes das principais famílias que exerciam cargos na Câmara e possuíam terras na Freguesia Rural de São Gonçalo de Amarante (atualmente a cidade de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio). Dos 76 revoltosos, ao menos 37 tinham ligações com a dita freguesia, incluindo seus principais líderes. Eles eram contrários aos desmandos de Sá e Benevides e ao favorecimento da Companhia de Comércio no Rio de Janeiro, além de condenarem sua interferência nos assuntos concernentes à Câmara.
As conversas sobre a conspiração ocorriam na residência dos Barbalho, na Ponta do Bravo, em São Gonçalo, para fugir dos olhares das autoridades a serviço dos Correia de Sá. No dia determinado, houve a deposição do governador interino Tomé Correia de Alvarenga, e a população aclamou Agostinho Barbalho Bezerra como novo governador revolucionário. Enquanto ele e seus companheiros procuravam reorganizar a cidade com o novo governo, Salvador buscava reforços em São Paulo e informações seguras sobre os eventos no Rio de Janeiro para promover o contra-ataque.
O fato é que a revolta não se limitou à polêmica proibição da cachaça: foi consequência dos pequenos conflitos pendentes, que se arrastaram ao longo dos primeiros anos do século e levaram a uma segmentação dos grupos dominantes em dois principais, cada qual buscando atender aos seus próprios interesses. Dito de outra forma: o verdadeiro gerador do litígio foi o acesso aos bens e às prerrogativas da política e da economia da cidade.
Ao fim do movimento, quatro foram os participantes que sofreram as maiores punições. Além de Jerônimo Barbalho Bezerra – de tradicional família são-gonçalense, o único a ser condenado à morte em praça pública para servir como exemplo – estavam entre os principais responsáveis pela revolta Lucas da Silva, alferes, do qual não se tem muitas referências, o capitão Diogo Lobo Pereira que, ao que tudo indica, possuía rixas pessoais com o bando do governador, e Jorge Ferreira de Bulhões, um dos primeiros povoadores da região, proprietário de terras e, em vários momentos de sua vida, oficial camarário, exercendo funções em prol do bem comum dos habitantes, como medição de terras para a construção de casas, abastecimento de água, preço dos alimentos etc. Bulhões não viveu para ver sua absolvição pelo rei D. Afonso VI, pois faleceu no cárcere, em Portugal. Anos depois foram revogadas as disposições sobre a aguardente e a região voltou a produzi-la, reorganizando sua economia.
O conflito não impediu que, após o desfecho do levante, famílias importantes daquela região continuassem sua política matrimonial e de apadrinhamento com a poderosa família Sá. Afinal, a nobreza jamais deixou de manter laços entre si, reforçando mutuamente seu estatuto.
A condenação e a pena de morte não eram consequências comuns em revoltas do gênero. Na maioria dos casos, preferia-se a negociação e até o perdão real para recuperar a estabilidade social. A morte de Jerônimo Barbalho, entretanto, nos faz crer que este foi mais um conflito envolvendo pessoas poderosas do que uma revolta popular.

Bruna Milheiro Silva é autora da dissertação “Homens d’el Rei: Estratégias e trajetórias familiares da nobreza principal da Terra do Rio de Janeiro (Séculos XVI e XVII)”, (UFRJ, 2012).


Saiba mais - Bibliografia

CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Entre a sombra e o sol: A revolta da cachaça, a freguesia de São Gonçalo de Amarante e a crise política fluminense (Rio de Janeiro, 1640-1667). Dissertação de mestrado em História, UFF, 2003. Disponível em: www.historia.uff.br.
CASTRO, João Henrique Ferreira de. “A punição às revoltas na literatura política portuguesa do século XVII”. Atas do XVII Encontro Regional Anpuh-MG, Mariana, julho de 2012.

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