segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Gente indomável

O Brasil passou por 300 anos de tensões e motins que tinham em comum a tentativa de restabelecer a ordem pública. "Rebeliões coloniais - quando os povos dizem não" é a capa da Revista de História do mês de dezembro de 2013

Rodrigo Elias

Há algum tempo a historiografia abandonou a crença de que tenha existido, durante a Época Moderna, um efetivo “poder absoluto” exercido pelos reis. Se associarmos aquele tempo que se estende entre os séculos XV e XVIII – quando se consolidaram os Estados com seus corpos burocráticos e seus exércitos permanentes – à centralização política irresistível que em geral deduzimos do termo “absolutismo”, estaremos muito longe de uma ideia razoável sobre as formas de ação política dos nossos antepassados coloniais.
Se nem mesmo Luís XIV da França, o Rei Sol, tinha todo o poder para si de forma incontestável, o que garantiria o domínio inegociável dos monarcas de Portugal sobre seus súditos no ultramar? Do início ao fim do período colonial, o que se viu foi uma contínua busca por manutenção de soberania – na América portuguesa, do século XVI ao XIX, de norte a sul, colonizadores, colonizados e agentes do poder real foram protagonistas de uma sucessão de conflitos que deixam bem clara a distância que separava o desejo metropolitano e a realidade do exercício do poder na colônia.
Desde os tempos mais primevos, a soberania portuguesa precisou se entender com as necessidades locais criadas pelo esforço de colonização. Um caso evidente de desordem interna a colocar em risco a ação do poder metropolitano aconteceu quando Pero do Campo Tourinho, donatário de Porto Seguro a partir de 1534, caiu na malha da Inquisição.
Disposto a auferir a qualquer custo os prometidos lucros que atraíam seus conterrâneos para o além-mar, espremido por grupos indígenas e piratas franceses, Tourinho arregimentou inimigos e colocou em risco o edifício colonial logo durante o início da sua construção. Tido como desbocado, violento e imoral, ao exercer o que acreditava serem as suas prerrogativas, ele instaurou a cizânia entre os colonos. Nos documentos da Inquisição, testemunhas – ou conspiradores – desfiaram um longo rosário de atitudes que demonstravam o quanto Tourinho estava disposto a renunciar às regras que imperavam no governo português na época para atender aos seus interesses: teria dito que trabalhava sem a ajuda de Deus, acusado o papa de agir por dinheiro, ofendido autoridades clericais, espancado um padre. Mais do que demonstrações de anticlericalismo, o donatário acabou despertando a fúria dos colonos contra a sua autoridade aparentemente sem limites, inclusive a de um dos seus filhos, André do Campo, um dos conspiradores.
Tourinho foi preso e enviado para Lisboa, onde enfrentou um processo por blasfêmia. Em depoimento prestado em 1547, relatou as dificuldades que enfrentou para dar início à colonização e chamou seus acusadores de preguiçosos e corruptos. Apesar de inocentado da acusação, Tourinho foi proibido de retornar ao Brasil – na prática, uma vitória dos conspiradores.
Ao longo do século XVI e no início do seguinte, ficaria cada vez mais clara para as autoridades metropolitanas a necessidade de um controle mais efetivo sobre essas populações progressivamente indomáveis que se formavam ao sabor das necessidades e à margem da ordem nas colônias – a posse dos territórios não estava se convertendo em vantagem econômica para as cabeças coroadas na Europa.
Por outro lado, seria justamente na virada do século XVI para o XVII que os colonos de origem ibérica, agora em número maior e com interesses cada vez mais enraizados, desenvolveriam uma percepção muito particular da vida política. Os acontecimentos europeus, assim como toda a discussão que se travou por conta da União Ibérica entre 1580 e 1640, finalizada com uma rebelião contra o rei espanhol, motivaram um longo e complexo debate sobre a origem e a finalidade do poder político, recuperando teses medievais sobre a relação entre príncipes e súditos.
Os jesuítas ibéricos, envolvidos até o pescoço na vida intelectual e no ensino em Portugal, na Espanha e em seus domínios, expunham suas teses que, ao fim, chegaram a difundir a ideia de que os súditos tinham o direito de se levantar contra as injustiças dos governantes – a palavra “tirania” se tornaria muito comum nos mais variados protestos que tiveram o espaço colonial como palco.
A contradição básica, por fim, se estabeleceu. A Coroa portuguesa precisava entrar no circuito do “excedente colonial” (o lucro com a exploração dos produtos americanos), fosse estabelecendo privilégios comerciais, regulando preços, fosse exercendo pressão fiscal; os súditos, por sua vez, enfrentavam as agruras da vida na América, faziam empréstimos, entravam em operações de risco e esperavam receber de uma longínqua Coroa o reconhecimento por seus esforços e mesmo o respeito pelo “bem comum” na colônia.
A partir do século XVII, essas tensões assumiram diversas formas, raramente em um conflito explícito contra a soberania portuguesa, quase sempre preservada (pelo menos no discurso). O que se via, em geral, além das revoltas ou outras formas de resistência dos escravos contra a sua condição, eram protestos de colonos contra o exercício do poder por parte dos operadores do poder régio na colônia. A fórmula “viva o rei, morra o mau governo” foi a que predominou no período, reiterando a ordem monárquica, mas lembrando os anseios de grupos locais.
Mais do que mero reflexo das relações metrópole-colônia, as populações da América portuguesa eram formações complexas e dinâmicas, com disputas no seu seio, tensões econômicas, religiosas e políticas. As diversas formas de coexistência entre os interesses internos e externos tiveram que se ajustar e reajustar durante um período de quase 300 anos, entre grupos às vezes muito dependentes uns dos outros e outras vezes isolados ou opostos entre si. Não faltam exemplos de ocasiões nas quais habitantes do Brasil antigo se levantaram, não poucas vezes de forma violenta, por aquilo que julgavam ser certo.
Rodrigo Elias é professor das Faculdades Integradas Simonsen e autor da dissertação “As letras da tradição: o Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga e as linguagens políticas na época pombalina (1750-1772)”, (UFF, 2004).

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