segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Ordem na baderna

Condenadas pelo uso da violência, os grupos populares nas revoltas da Colônia tinham suas regras e rituais. Sinal de que nem tudo era permitido

Gefferson Ramos Rodrigues

Armário gótico português do século XVI e louças do período colonial. Em Salvador, em 1711, revoltados com o aumento do preço do sal - item de primeira necessidade - entraram na casa do responsável pelo abastecimento e atiraram seus pertences pela janela.

Quando alguma medida de governo rompe com o equilíbrio social, as pessoas ganham rapidamente as ruas. O estopim para os descontentamentos pode ser o aumento de impostos, o abuso de poder de autoridades, o aumento do preço de gêneros de primeira necessidade, entre outros. Os rebeldes tomam conta das praças, cercam o palácio do governador e se dirigem à Câmara Municipal. Nesse momento é comum a circulação de panfletos divulgando suas queixas ou difamando seus algozes. Eles registram as reivindicações por escrito e encaminham requerimentos às autoridades. Caso sejam atendidos, retornam para suas casas e a vida volta ao normal. Do contrário, o protesto se estende por mais alguns dias, ou meses, até que suas lideranças são reprimidas com castigos exemplares.
Se essa narrativa soa familiar, não é por acaso. Existe um tipo de comportamento característico nas rebeliões populares desde a Europa do Antigo Regime, que se repetiu no Brasil Colonial e ainda pode ser identificado nas revoltas contemporâneas. Algumas eram mais radicais, outras nem tanto, mas é possível admitir que seguissem determinado padrão. Além disso, elas se apresentavam de maneira fortemente ritualizada.
Nos documentos de época, as sublevações são sempre descritas como movimentos desorganizados, desordeiros, caóticos. Mas uma leitura atenta sobre essas mesmas fontes permite outro tipo de interpretação, que revela uma “desordem ordeira” – como definiu o historiador inglês E. P. Thompson, em análise sobre os motins da fome na Inglaterra do século XVIII.
Padrões de comportamento similares aconteceram entre os moradores da América portuguesa. Nas primeiras décadas do século XVIII, os moradores da Bahia e de Minas Gerais se rebelaram violentamente contra as ordens da Coroa portuguesa, mas não de forma indiscriminada. O chamado “Motim do Maneta” em Salvador, no ano de 1711, e a revolta de 1736 no sertão do rio São Francisco, em Minas Gerais, são duas excelentes situações para se examinar a conduta da multidão.
Para os baianos, aquele século começou difícil. Os preços do açúcar não paravam de cair em razão da concorrência das Antilhas. A situação se agravou com a descoberta das minas de ouro, que atraíram a compra de escravos para as áreas de mineração e fizeram aumentar o preço dos cativos. Para piorar, instaurou-se um clima de desconfiança na capitania com a nomeação para governador do capitão-geral Pedro de Vasconcelos e Sousa, encarregado de implementar uma nova política tributária. Por determinação da Coroa, passou-se a cobrar uma dízima na alfândega (10% das mercadorias que entravam no porto de Salvador) e uma taxa sobre os escravos enviados para as Minas. Essas medidas tinham a finalidade de subsidiar despesas de segurança contra o assédio de nações estrangeiras atraídas pelo ouro recém-descoberto.
No dia 19 de outubro de 1711, em Salvador, a praça em frente ao Palácio do Governador ficou repleta de pessoas. Para convocar os moradores, o Juiz do Povo, que representava os “oficiais mecânicos” (artesãos como ferreiros, marceneiros e trabalhadores manuais em geral), ordenou que o sino da Igreja tocasse sem parar. O governador chegou a cogitar uma repressão violenta mas, aconselhado, desistiu da ideia.
Os rebeldes reivindicavam a suspensão dos 10% da alfândega e condenavam o abusivo aumento do preço do sal, que saltara de 480 para 720 réis o alqueire (em cálculos aproximados, 1 alqueire correspondia a 36,27 litros e 1 grama de ouro equivalia a 334,5 réis). Pedro de Vasconcelos argumentou que aquela reivindicação não deveria ser feita a ele, mas ao rei, o que serviu para deixar a população ainda mais furiosa. Nesse momento, os rebelados ganharam a liderança daquele que daria nome à revolta, o negociante João de Figueiredo da Costa, o Maneta, assim chamado em razão de uma deficiência.
Os amotinados acreditavam que o aumento vertiginoso do preço do sal – considerado um bem de primeira necessidade – era devido à interferência de Manuel Dias Filgueiras, responsável pelo abastecimento do gênero na cidade. A multidão marchou então até sua casa, localizada atrás da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, rompeu as portas do sobrado a machadadas, subiu ao andar superior e pela janela atirou às ruas seus refinados pertences. Em seu armazém, localizado na parte de baixo, quebraram vários barris de licor, derramando-o pelas ruas. A residência ficou quase toda destruída. 
A fúria dos amotinados voltou-se ainda contra o seu sócio Manoel Gomes Lisboa. Também invadiram a sua casa e lançaram pela janela objetos caros, inclusive ouro em pó – “ficando aquele metal pisado então da plebe vil”, conforme narrou Sebastião da Rocha Pita em História da América portuguesa (1730). Em nenhum dos casos houve registro de que os rebeldes tenham se apossado de qualquer bem.
A política fiscal da Coroa portuguesa continuou agressiva nas décadas seguintes e provocou constante instabilidade em Minas Gerais. A extração aurífera trazia prosperidade a alguns moradores, enquanto muitos viviam na pobreza, e quase todos contestavam o sistema de cobrança do quinto – taxa de 20% sobre a extração de ouro. Em 1736, essa regra de arrecadação passou a incluir até as áreas onde não havia extração aurífera, incidindo sobre escravos e o comércio. Isso deixou os moradores do sertão do rio São Francisco em polvorosa, pois se sustentavam basicamente da criação de gado e da agricultura.
O resultado foi uma série de levantes que se espalharam por diversas localidades, reunindo grandes proprietários rurais, religiosos, escravos, forros, índios e mestiços. Durante as sublevações, os rebeldes realizaram recrutamentos forçados, assaltaram mercadores e invadiram propriedades. Um dos pontos altos do protesto foi no dia 6 de julho, quando invadiram o arraial de São Romão e registraram no cartório local um requerimento endereçado ao governador reivindicando o não pagamento daquela cobrança. O protesto acabou disperso pela ação de um proprietário da região acompanhado de parentes e amigos. Ainda assim, os amotinados prometeram voltar no prazo de um mês para ver se a sua reivindicação fora atendida. Enquanto isso, a Coroa preparava a repressão e deslocava tropas para o arraial.
Aproximando-se o prazo estabelecido, os sertanejos marcharam novamente em direção à localidade. No caminho pilharam mercadores, invadiram fazendas, mataram animais e incendiaram engenhos. Domingos Álvares Ferreira e seu cunhado João de Meireles foram os que sofreram os maiores prejuízos, e não sem motivo: eles haviam sido os reponsáveis por dispersar o protesto em junho. Do primeiro pouca história restou para contar, uma vez que teve a sua casa reduzida às cinzas. Do segundo sabe-se que passou por vários tipos de humilhação e contabilizou perdas de mais de 20 mil cruzados, ou 24 quilos de ouro em pó, aproximadamente. Os rebeldes demoraram cinco dias em sua casa, considerada “uma das mais aparamentadas desse sertão”, matando bois e vacas, levando pertences pessoais e deixando-o só de ceroulas.
Ao chegarem a São Romão, pretendiam colocar fogo em todo o arraial, alegando que os moradores haviam agido como traidores por terem permitido a presença de tropas na localidade. Mas se contentaram em promover o saque geral em todas as casas, exceto na de alguns religiosos. Ao fim, não tiveram suas reivindicações atendidas, acabaram se dispersando pelo sertão e suas lideranças terminaram penalizadas pela Coroa.
Tanto na Bahia como em Minas Gerais, os alvos dos rebeldes eram cuidadosamente escolhidos, e a violência não era cometida a esmo: variava em meio a um repertório amplo de punições. As maiores eram reservadas àqueles que agiam em estreita cooperação com as autoridades – seus bens eram destruídos ou incendiados. E quando as propriedades não eram completamente arrasadas, os saques nunca serviam para o proveito pessoal, mas eram distribuídos pelas ruas, o que não configurava roubo. A queima de propriedades tinha forte efeito simbólico, com o fogo representando um ideal purificador. Para pessoas que tinham poucos recursos de luta, a utilização do fogo era sempre uma arma acessível e eficiente.
Diante de ações que pareciam barbárie, desordem e caos aos olhos das autoridades, havia decisões bastante lógicas, fundamentadas em causas consideradas justas e sacramentadas por rituais cheios de significação. Só não compreende quem está do lado oposto.

Gefferson Ramos Rodrigues é autor da dissertação “No Sertão, a revolta: grupos sociais e formas de contesttação na América portuguesa, Minas Gerais – 1736” (UFF, 2009).

Saiba mais - Bibliografia

DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Tradução Mariza Corrêa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. “A revolta é uma festa: relações entre protesto e festas na América portuguesa”. In: JANCSÓ, Istvan & KANTOR, Íris. Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa. Vol. 1. São Paulo: Edusp/ Hucitec/  Fapesp/ Imprensa Oficial, 2001. p. 263-276.
RUDÉ, George. A Multidão na História. Estudos dos Movimentos Populares na França e na Inglaterra 1730-1848. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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