quinta-feira, 30 de maio de 2013

O corpo de Cristo

A festa católica do Corpus Christi, celebrada numa quinta-feira após o domingo da Trindade, tem sua origem no século XIII,  quando uma freira belga teve um sonho revelador
Marcello Scarrone
Imagem de Santa Juliana de Liège



A festa de Corpus Christi (Corpo de Cristo, em latim) deve sua origem a uma freira agostiniana belga, Juliana de Mont Cornillon ou Juliana de Liège (1193-1258). No começo do século XIII, a religiosa teve algumas visões: em uma delas, a Igreja teria aparecido no semblante de uma lua cheia, mas atravessada no
meio por uma faixa escura, como se faltasse uma festividade. Numa outra visão, o próprio Cristo teria pedido que ela se empenhasse para a criação de uma solenidade em homenagem à Eucaristia.

Foi o que Juliana fez: escreveu a várias autoridades religiosas na Europa do tempo. Até que, em 1246, um sínodo da diocese de Liège instituiu a festividade, limitando-a ao seu território. A história da festa, todavia, estava destinada a ter uma continuação surpreendente. Entre as pessoas consultadas por Juliana estava o eclesiástico Jacques Pantaléon, também da província de Liège, que aprovou o pedido da freira e trabalhou para a instituição da celebração. Anos depois ele foi nomeado bispo e, mais tarde, Patriarca Latino
de Jerusalém e em 1261 foi eleito papa, com o nome de Urbano IV.

Milagre motivou expansão da festa

Sem dúvida, o novo pontífice conservava dentro de si a recordação da festa instituída em sua terra natal e talvez já pensasse em estender sua celebração à toda a Igreja, mas um evento surpreendente veio acelerar as decisões. Em 1263 ou 1264, um sacerdote da Boemia, durante uma peregrinação na Itália em direção à Roma, tomado de dúvidas a respeito da presença real do corpo de Cristo na Eucaristia, celebra uma missa numa igreja da cidade de Bolsena. Durante a celebração, a hóstia se transforma em carne e algumas gotas de sangue caem no corporal - o pano de linho que se estende sobre o altar. Impressionado, esconde
carne e sangue no tecido, deixando-o na sacristia. Depois, sabendo que o papa se encontra a poucos quilômetros, na cidade de Orvieto, o procura e lhe narra o acontecido. Recuperadas as relíquias do milagre, elas são mostradas ao povo: a grande comoção que tomou conta da cidade levou à construção nas décadas seguintes da grande catedral de Orvieto, onde desde então as relíquias são conservadas.

O evento foi um motivo a mais para Urbano IV se decidir a instituir em 1264 a festa do Corpus Christi como solenidade a ser celebrada por toda a Igreja. O encarregado pela composição dos textos litúrgicos para a nova festividade foi um dominicano que também se encontrava em Orvieto naquele momento: Tomás de Aquino. Ainda hoje, ressoam, em ocasião da benção com o Santíssimo Sacramento nas igrejas católicas, as estofes do Tantum Ergo Sacramentum , por ele compostas.

Por quê quinta-feira?

Claramente, a presença real do corpo de Jesus no pão eucarístico e de seu sangue no vinho, após a consagração da missa, vinha sendo proclamada pela fé da igreja desde os primeiros séculos e os primeiros concílios, mas a nova festividade foi reforçando esta convicção. Ainda mais quando, no começo da Idade Moderna, a Reforma protestante discutirá essa presença, interpretando a missa como uma simples ceia comemorativa, e não como a reapresentação sobre o altar do sacrifício extremo de Jesus.

Então, ostensões públicas da hóstia consagrada e procissões eucarísticas foram se multiplicando.
Ainda hoje os católicos celebram esta festividade na quinta-feira que segue ao domingo da Trindade, primeiro domingo após o dia de Pentecostes. Uma quinta-feira: afinal, esse tinha sido o dia da semana em que fora instituída a Eucaristia, na ultima ceia que Jesus consumiu com seus apóstolos em Jerusalém, na véspera de sua morte.

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terça-feira, 21 de maio de 2013

Se Os Tubarões Fossem Homens


Bertold Brecht

Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes caixas do mar, para os peixes pequenos com todos os tipos de alimentos dentro, tanto vegetais, quanto animais.
Eles cuidariam para que as caixas tivessem água sempre renovada e adotariam todas as providências sanitárias, cabíveis se por exemplo um peixinho ferisse a barbatana, imediatamente ele faria uma atadura a fim que não morressem antes do tempo.
Para que os peixinhos não ficassem tristonhos, eles dariam cá e lá uma festa aquática, pois os peixes alegres tem gosto melhor que os tristonhos.
Naturalmente também haveria escolas nas grandes caixas, nessas aulas os peixinhos aprenderiam como nadar para a guela dos tubarões.
Eles aprenderiam, por exemplo a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes tubarões, deitados preguiçosamente por aí. A aula principal seria naturalmente a formação moral dos peixinhos.
Eles seriam ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam
acreditar nos tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria garantido se aprendessem a obediência.

Antes de tudo os peixinhos deveriam guardar-se antes de qualquer inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista e denunciaria imediatamente aos tubarões se qualquer deles manifestasse essas inclinações.
Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra entre sí a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam os peixinhos que entre eles os peixinhos de outros tubarões existem gigantescas diferenças, eles anunciariam que os peixinhos são reconhecidamente mudos e calam nas mais diferentes línguas, sendo assim impossível que entendam um ao outro.
Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos inimigos da outra língua silenciosos, seria condecorado com uma pequena ordem das algas e receberia o título de herói.
Se os tubarões fossem homens, haveria entre eles naturalmente também uma arte, havia belos quadros, nos quais os dentes dos tubarões seriam pintados em vistosas cores e suas guelas seriam representadas como inocentes parques de recreio, nos quais se poderia brincar magnificamente.
Os teatros do fundo do mar mostrariam como os valorosos peixinhos nadam entusiasmados para as guelas dos tubarões. A música seria tão bela, tão bela que os peixinhos sob seus acordes, a orquestra na frente entrariam em massa para as guelas dos tubarões sonhadores e possuídos pelos mais agradáveis pensamentos .
Também haveria uma religião ali.
Se os tubarões fossem homens, ela ensinaria essa religião e só na barriga dos tubarões é que começaria verdadeiramente a vida.
Ademais, se os tubarões fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima dos outros.
Os que fossem um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores, isso só seria agradável aos tubarões pois eles mesmos obteriam assim mais constantemente maiores bocados para devorar e os peixinhos maiores que deteriam os cargos valeriam pela ordem entre os peixinhos para que estes chegassem a ser, professores, oficiais, engenheiro da construção de caixas e assim por diante.
Curto e grosso, só então haveria civilização no mar, se os tubarões fossem homens.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

O Treze de Maio

Márcio Ramos
Hoje é a data em que se comemora os 125 anos da Abolição da escravatura. No dia 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea, pondo fim à escravidão no Brasil.


Durante muito tempo a Princesa Isabel, filha de D. Pedro II, foi considerada uma heroína libertadora, que preocupada com as condições de vida dos negros, os liberta. Porem sabemos que essa nao é toda a verdade. O fim da escravidão não foi fruto da bondade da princesa, mas de muita luta da sociedade brasileira, de muita resistência negra. Quando a lei foi assinada apenas 5 % dos negros brasileiros ainda eram escravizados, a grande maioria havia conquistado sua liberdade através da compra da carta de alforria ou de fugas e formação de quilombos.

A escravidão negra foi implantada no Brasil ainda no seculo XVI, na economia canavieira. Achar que os negros aceitavam pacificamente a exploração é  um erro, pois a existência dos  quilombos é uma prova dessa resistência. Não esqueçamos que o Quilombo de Palmares foi apenas o mais famoso.
O trabalho escravo negro foi utilizado na agricultura, na mineração,nos serviços domésticos, etc. Apesar da resistência a escravatura se manteve por mais de 300 anos. No século XIX surge no Brasil o Movimento Abolicionista, que reivindicava o fim da escravidão. Formado por varios setores da sociedade, como políticos liberais, advogados, poetas e negros libertos, o movimento pressionou o governo pelo fim da escravidão. O governo de D. Pedro II cria as leis abolicionistas : a Lei do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e finalmente a Lei Áurea.

A assinatura da Lei Áurea não mudou as condições de vida da população negra e mestiça, que teve que se virar sozinha, sem nenhum auxílio do governo ou da sociedade escravocrata.  Largados à própria sorte foram ocupando os piores postos de trabalho e lugares para moradias. Ao longo do século XX e nesse inicio do século XXI, muita coisa ainda precisa ser feita para que todos os brasileiros, independentemente de sua raça/etnia tenham condições decentes de vida.

domingo, 5 de maio de 2013

Assim surge um revolucionário

Em um mundo polarizado entre capitalismo e comunismo, vem à tona o idealismo de jovens dispostos a pegar em armas contra a opressão

Edson Teles

O que levou uma série de grupos de esquerda, nacionalistas e revolucionários, a empreenderem insurreições armadas no Brasil? E o que levou milhares de jovens a aderirem a um projeto de transformação radical do país?

Como consequência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a década de 1960 vai ser uma época de reconstrução das nações e das instituições de relações internacionais. O fim deste conflito ocorreu com o avanço das tropas aliadas, capitaneadas pelos Estados Unidos, e das forças nacionais ou de resistência  ligadas à União Soviética. Ambas se dirigiram para a Alemanha a fim de derrotar o nazismo e seus aliados fascistas. Berlim foi simbolicamente colocada no centro do encontro dessas grandes forças vencedoras, iniciando o período histórico conhecido como Guerra Fria. A Europa, então, se dividiu entre a parte ocidental – sob a hegemonia do bloco que defendia “a democracia e a liberdade” – e a oriental –  “socialista”.
O termo Guerra Fria descreve bem aquele momento: oposição entre os dois blocos, mas sem ações militares diretas. Combates armados ocorriam somente em contextos locais ou nacionais. No imaginário das democracias liberais do ocidente, o inimigo encontrava-se dentro de seus territórios, alimentado pela denominada subversão comunista. A repressão aos movimentos revolucionários tornou-se prática constante nos países ocidentais, enquanto nos socialistas impunha-se o apoio ideológico e logístico às ações que visavam derrubar o regime capitalista.

Foi nas décadas de 1950 e 1960 que eclodiram golpes militares interrompendo projetos de reformas nacional-estatistas, como ocorreu com a derrubada de governos eleitos na Argentina (Perón, em 1955), Bolívia (Paz Entessoro,em  1964) e Brasil (João Goulart, em 1964), todos apoiados pelos norte-americanos sob a justificativa de bloquear a expansão do perigo comunista. Os países alinhados ao bloco capitalista substituíram as declarações de estados de exceção por ideologias de segurança nacional. Não bastava, como em momentos anteriores, incluir aspectos autoritários no ordenamento jurídico e na política das repúblicas liberais. Tratava-se, a partir de então, de instituir ditaduras com a justificativa de proteger a Nação contra seus inimigos, que encontravam-se no interior do país e eram constituídos pelos próprios cidadãos. No Brasil, a Doutrina de Segurança Nacional, política brasileira de caça aos inimigos internos, surge nas Forças Armadas a partir dos contatos com os militares norte-americanos, iniciado durante as ações da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra. Sua elaboração e divulgação como discurso ideológico ficaram sob o comando da Escola Superior de Guerra (ESG), a instituição que mais formou militares para os principais postos de comando da ditadura. Antes do golpe de 1964, a ESG  já fazia a ponte entre empresários e militares e a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), instituído em junho daquele ano. Assim fortalecia as estratégias de controle e repressão ao inimigo interno.
Em resposta à produção de ditaduras na América Latina, grupos de esquerda, em especial os partidos comunistas, passaram a debater sobre o melhor modo de continuar a luta política contra os regimes autoritários alinhados ao modelo político norte-americano. É quando um evento histórico tem forte impacto no imaginário daqueles grupos e de milhares de jovens: a Revolução Cubana, em 1959. Comandada pelo líder estudantil e popular Fidel Castro e pelo revolucionário itinerante argentino Che Guevara, o movimento vitorioso em Cuba instalou entre as esquerdas a discussão da alternativa da luta armada e da necessidade de organização do processo revolucionário.

Além da Revolução Cubana, os movimentos nacionalistas e de esquerda tomaram outros acontecimentos revolucionários como referência para a luta contra as ditaduras e pela revolução socialista na América Latina. Por exemplo,  a conquista de independência da Argélia, em 1962, os movimentos anticolonialistas da África e do mundo árabe e a guerra do povo vietnamita contra a potência militar norte-americana.

Os anos 1950 foram tempos em que havia uma divisão forte na sociedade, um antagonismo crescente que iria estourar na década seguinte. De um lado, o Brasil vivia o otimismo de uma burguesia nacional, beneficiada pelos investimentos dos grandes países capitalistas, e de crescimento da classe operária e suas demandas por direitos. Do outro, espalhava-se pelas ruas a luta pela reforma agrária. Entre outros movimentos, surgiram as Ligas Camponesas em Pernambuco e ganhou força o Partido Comunista Brasileiro (PCB), especialmente no governo do presidente João Goulart.

Em 1964, com o apoio explícito do governo norte-americano e de parte de setores conservadores, como os partidos de direita e a Igreja Católica, além da grande imprensa, os militares associados a setores civis deram um golpe de estado derrubando João Goulart e encerrando os dezenove anos de democracia (1945-1964). A força da ideia de revolução era tamanha que mesmo o movimento golpista se autodenominou “revolucionário” [Ver RHBN nº 83]. O Ato Institucional  nº 1, editado pelas Forças Armadas em 9 de abril de 1964, estabelece por decreto a relação entre o governo e a vontade da nação: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”.

À época já era clara a contradição entre o programa político dos partidos alinhados a Moscou, de cunho reformista – de conciliação com as burguesias nacionais e etapas democrático-capitalistas no caminho para a Revolução – e a prática dos militantes, envoltos na atmosfera revolucionária imediata. No Brasil, surgem novos agrupamentos políticos, alguns de origem marxista, outros nacionalistas, influenciados pelos ares da luta revolucionária. Diante do acirramento da repressão, que atingiria patamar inédito com a publicação do Ato Institucional nº 5, de 1968, ganha corpo a luta armada contra a ditadura.

O revolucionário comunista Carlos Marighella publica, em 1966, sua carta de rompimento com o PCB e dá o tom da opção pela luta armada: “Falta o impulso revolucionário, a consciência revolucionária, que é gerada pela luta. A saída do Brasil – a experiência atual está mostrando – só pode ser a luta armada, o caminho revolucionário, a preparação da insurreição armada do povo, com todas as consequências e implicações que daí resultarem”.
Construía-se, a partir dali, um “sujeito revolucionário”, cuja figura mais universal foi a de Che Guevara – representante daqueles que não aceitam viver sob a opressão de um regime autoritário ou diante de injustiças sociais. O que os fazia agir? O que os levou à luta armada, à revolução? Uma geração de jovens acreditou com todas as forças em um mundo igualitário e se dispôs, “com as consequências e implicações que daí resultarem”, a doar suas vidas por este imaginário. Enquanto os partidos queriam a tomada do Estado e a construção de outro regime político, o sujeito revolucionário não aceitava o papel que o mundo capitalista lhe propunha, e apostava na construção de outras formas de relação humana.

Consentir com o esquecimento dessas memórias leva à renúncia de valores que a ditadura  se esforçou para  destruir .  O novo Estado de direito, cuja existência dependeu em boa parte daquela luta, ainda não fez o reconhecimento necessário.

Edson Teles é professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo e co-organizador de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010).

Saiba mais
ALMEIDA, Criméia; TELES, Janaína; LISBOA, Suzana. Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Ática, 1987.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. São Paulo: Vozes, 1985.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/assim-surge-um-revolucionario