domingo, 5 de maio de 2013

Assim surge um revolucionário

Em um mundo polarizado entre capitalismo e comunismo, vem à tona o idealismo de jovens dispostos a pegar em armas contra a opressão

Edson Teles

O que levou uma série de grupos de esquerda, nacionalistas e revolucionários, a empreenderem insurreições armadas no Brasil? E o que levou milhares de jovens a aderirem a um projeto de transformação radical do país?

Como consequência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a década de 1960 vai ser uma época de reconstrução das nações e das instituições de relações internacionais. O fim deste conflito ocorreu com o avanço das tropas aliadas, capitaneadas pelos Estados Unidos, e das forças nacionais ou de resistência  ligadas à União Soviética. Ambas se dirigiram para a Alemanha a fim de derrotar o nazismo e seus aliados fascistas. Berlim foi simbolicamente colocada no centro do encontro dessas grandes forças vencedoras, iniciando o período histórico conhecido como Guerra Fria. A Europa, então, se dividiu entre a parte ocidental – sob a hegemonia do bloco que defendia “a democracia e a liberdade” – e a oriental –  “socialista”.
O termo Guerra Fria descreve bem aquele momento: oposição entre os dois blocos, mas sem ações militares diretas. Combates armados ocorriam somente em contextos locais ou nacionais. No imaginário das democracias liberais do ocidente, o inimigo encontrava-se dentro de seus territórios, alimentado pela denominada subversão comunista. A repressão aos movimentos revolucionários tornou-se prática constante nos países ocidentais, enquanto nos socialistas impunha-se o apoio ideológico e logístico às ações que visavam derrubar o regime capitalista.

Foi nas décadas de 1950 e 1960 que eclodiram golpes militares interrompendo projetos de reformas nacional-estatistas, como ocorreu com a derrubada de governos eleitos na Argentina (Perón, em 1955), Bolívia (Paz Entessoro,em  1964) e Brasil (João Goulart, em 1964), todos apoiados pelos norte-americanos sob a justificativa de bloquear a expansão do perigo comunista. Os países alinhados ao bloco capitalista substituíram as declarações de estados de exceção por ideologias de segurança nacional. Não bastava, como em momentos anteriores, incluir aspectos autoritários no ordenamento jurídico e na política das repúblicas liberais. Tratava-se, a partir de então, de instituir ditaduras com a justificativa de proteger a Nação contra seus inimigos, que encontravam-se no interior do país e eram constituídos pelos próprios cidadãos. No Brasil, a Doutrina de Segurança Nacional, política brasileira de caça aos inimigos internos, surge nas Forças Armadas a partir dos contatos com os militares norte-americanos, iniciado durante as ações da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra. Sua elaboração e divulgação como discurso ideológico ficaram sob o comando da Escola Superior de Guerra (ESG), a instituição que mais formou militares para os principais postos de comando da ditadura. Antes do golpe de 1964, a ESG  já fazia a ponte entre empresários e militares e a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), instituído em junho daquele ano. Assim fortalecia as estratégias de controle e repressão ao inimigo interno.
Em resposta à produção de ditaduras na América Latina, grupos de esquerda, em especial os partidos comunistas, passaram a debater sobre o melhor modo de continuar a luta política contra os regimes autoritários alinhados ao modelo político norte-americano. É quando um evento histórico tem forte impacto no imaginário daqueles grupos e de milhares de jovens: a Revolução Cubana, em 1959. Comandada pelo líder estudantil e popular Fidel Castro e pelo revolucionário itinerante argentino Che Guevara, o movimento vitorioso em Cuba instalou entre as esquerdas a discussão da alternativa da luta armada e da necessidade de organização do processo revolucionário.

Além da Revolução Cubana, os movimentos nacionalistas e de esquerda tomaram outros acontecimentos revolucionários como referência para a luta contra as ditaduras e pela revolução socialista na América Latina. Por exemplo,  a conquista de independência da Argélia, em 1962, os movimentos anticolonialistas da África e do mundo árabe e a guerra do povo vietnamita contra a potência militar norte-americana.

Os anos 1950 foram tempos em que havia uma divisão forte na sociedade, um antagonismo crescente que iria estourar na década seguinte. De um lado, o Brasil vivia o otimismo de uma burguesia nacional, beneficiada pelos investimentos dos grandes países capitalistas, e de crescimento da classe operária e suas demandas por direitos. Do outro, espalhava-se pelas ruas a luta pela reforma agrária. Entre outros movimentos, surgiram as Ligas Camponesas em Pernambuco e ganhou força o Partido Comunista Brasileiro (PCB), especialmente no governo do presidente João Goulart.

Em 1964, com o apoio explícito do governo norte-americano e de parte de setores conservadores, como os partidos de direita e a Igreja Católica, além da grande imprensa, os militares associados a setores civis deram um golpe de estado derrubando João Goulart e encerrando os dezenove anos de democracia (1945-1964). A força da ideia de revolução era tamanha que mesmo o movimento golpista se autodenominou “revolucionário” [Ver RHBN nº 83]. O Ato Institucional  nº 1, editado pelas Forças Armadas em 9 de abril de 1964, estabelece por decreto a relação entre o governo e a vontade da nação: “A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”.

À época já era clara a contradição entre o programa político dos partidos alinhados a Moscou, de cunho reformista – de conciliação com as burguesias nacionais e etapas democrático-capitalistas no caminho para a Revolução – e a prática dos militantes, envoltos na atmosfera revolucionária imediata. No Brasil, surgem novos agrupamentos políticos, alguns de origem marxista, outros nacionalistas, influenciados pelos ares da luta revolucionária. Diante do acirramento da repressão, que atingiria patamar inédito com a publicação do Ato Institucional nº 5, de 1968, ganha corpo a luta armada contra a ditadura.

O revolucionário comunista Carlos Marighella publica, em 1966, sua carta de rompimento com o PCB e dá o tom da opção pela luta armada: “Falta o impulso revolucionário, a consciência revolucionária, que é gerada pela luta. A saída do Brasil – a experiência atual está mostrando – só pode ser a luta armada, o caminho revolucionário, a preparação da insurreição armada do povo, com todas as consequências e implicações que daí resultarem”.
Construía-se, a partir dali, um “sujeito revolucionário”, cuja figura mais universal foi a de Che Guevara – representante daqueles que não aceitam viver sob a opressão de um regime autoritário ou diante de injustiças sociais. O que os fazia agir? O que os levou à luta armada, à revolução? Uma geração de jovens acreditou com todas as forças em um mundo igualitário e se dispôs, “com as consequências e implicações que daí resultarem”, a doar suas vidas por este imaginário. Enquanto os partidos queriam a tomada do Estado e a construção de outro regime político, o sujeito revolucionário não aceitava o papel que o mundo capitalista lhe propunha, e apostava na construção de outras formas de relação humana.

Consentir com o esquecimento dessas memórias leva à renúncia de valores que a ditadura  se esforçou para  destruir .  O novo Estado de direito, cuja existência dependeu em boa parte daquela luta, ainda não fez o reconhecimento necessário.

Edson Teles é professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo e co-organizador de O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010).

Saiba mais
ALMEIDA, Criméia; TELES, Janaína; LISBOA, Suzana. Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: Imprensa Oficial, 2009.
 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Editora Ática, 1987.
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca Mais. São Paulo: Vozes, 1985.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/assim-surge-um-revolucionario

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