domingo, 24 de março de 2013

Nazismo: Eles estão entre nós



Leandro Narloch 

No dia 20 de abril de 1940, Adolf Hitler completava seus 51 anos. Para comemorar o aniversário do Führer, que nos dois meses seguintes dominaria Holanda, Bélgica e Dinamarca e, em junho, descansaria à sombra da torre Eiffel, em Paris, o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels preparou uma festa. Desde a manhã milhões de pessoas foram às ruas e curtiram o feriado ouvindo discursos inflamados ou seguindo desfiles nas principais cidades alemãs. Longe de sua terra natal, 456 alemães preferiram uma festa reservada, mas também animada. No salão social do Clube de Atiradores de Blumenau, em Santa Catarina, eles se reuniram para um almoço típico, brindaram e deram vivas a Hitler. Na véspera, os 815 alunos entre 7 e 15 anos da Escola Alemã da Vila Mariana, em São Paulo, chegaram às 7 da manhã, como todos os dias. Como todos os dias, saudaram a chegada dos professores em coro: “Heil, Hitler”. Na mesma época, no Rio de Janeiro, uma enorme bandeira vermelha com a suástica preta podia ser vista hasteada, tremulando no alto do morro de Santa Tereza.
A existência de simpatizantes nazistas no Brasil, nos anos 30 e 40, não é novidade. Porém, a partir de 1997, quando se tornaram públicos os arquivos da Delegacia de Ordem Política e Social (Deops) do governo Getúlio Vargas, os pesquisadores não passam um dia sem descobrir algo novo e surpreendente sobre o nazismo no país. É o caso da historiadora Ana Maria Dietrich, professora da Universidade de São Paulo, que há anos pesquisa os milhares de documentos entre inquéritos, fotos, panfletos, depoimentos e relatórios do Deops, atualmente sob a guarda do Arquivo do Estado de São Paulo. Segundo Ana Maria, os documentos revelam um nível surpreendente de influência do nazismo na sociedade brasileira, detalhando não apenas atividades partidárias e de propaganda, mas de espionagem e fraudes, além da conivência, e até da simpatia, com que essa ideologia contou entre as autoridades brasileiras.
Amigos, amigos
Para entender o fenômeno do nazismo entre nós, é preciso lembrar como era o Brasil nos anos 30. Vivíamos sob a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas. Partidos haviam sido proibidos, políticos foram cassados, jornais e revistas que não fossem simpáticos ao governo eram perseguidos. A Constituição imposta pelo getulismo era praticamente uma cópia da carta do ditador fascista italiano Benito Mussolini, de quem Getúlio não escondia ser admirador. Uma sofisticada máquina publicitária que incluía centenas de emissoras de rádio propagava a imagem do presidente e fomentava o sentimento ultranacionalista. Dito assim, não parece um ambiente tão impróprio para o surgimento de ideais totalitários. E não era. No Brasil ainda circulavam idéias de dominância racial formuladas no século 19 e defendidas por intelectuais como Sílvio Romero. Jovens que se tornariam figurões da nossa cultura, como o poeta Vinicius de Moraes e o folclorista Câmara Cascudo, declaravam-se integralistas – a corrente de ultradireita que queria um Brasil totalitário e cujos membros se metiam em espancamentos de negros, estrangeiros e judeus (veja quadro na pág. 29).
“A política e a sociedade brasileiras refletiam as influências internacionais”, afirma Priscila Ferreira Perazzo, historiadora da USP e autora de O Perigo Alemão e a Repressão Policial no Estado Novo. De fato, mundo afora os ideais fascistas vicejavam. “Entre 1918 e 1920, dois Estados europeus fecharam seus parlamentos e implementaram governos absolutistas. Nos anos 20 foram seis, e na década seguinte mais nove países sucumbiram a governos ditatoriais”, afirma o historiador britânico Eric Hobsbawm, em Era dos Extremos. “Na América, a lista de países não-autoritários incluía apenas Canadá, Colômbia, Estados Unidos, Costa Rica e Uruguai.”
Além de compartilhar ideais autoritários, o Brasil de Vargas mantinha relações para lá de amistosas com a Alemanha nazista. Na década de 30, os alemães viraram o segundo maior mercado consumidor de produtos brasileiros, saltando de 10% para 22% de nossas exportações. Em 1936, policiais e militares brasileiros visitaram a Alemanha, onde treinaram com a Gestapo, a polícia política de Hitler. Em retribuição, o governo brasileiro entregou aos nazistas comunistas e judeus alemães residentes no Brasil, como Olga Benário, Erna Krüger, Elise e Arthur Ewert. Dito assim, parece que Getúlio estava muito mais próximo de apoiar o Eixo que os Aliados, na guerra que se aproximava.
Nazismo legal
Datam de 1924 os primeiros registros sobre um grupo chamado genericamente de Landesgruppe Brasilien (ou “o grupo do país Brasil”), que pode ser identificado como um partido nazista no Brasil. Segundo Ana Maria Dietrich, desde o início a organização não era uma célula isolada e integrava uma rede mundial com outras filiais do partido presentes em 83 países, com 29 mil integrantes. Quando foi oficializado, em 1928, seu líder, Hans Henning von Cossel, estava apenas a dois degraus hierárquicos do próprio Hitler. “O partido chegou a ter 2 900 integrantes e era, de longe, o maior entre os partidos nazistas que operavam fora da Alemanha”, diz Ana Maria. O segundo maior era o da Holanda, com 1 600 membros.
Em dez anos de atuação, o partido teve estatuto, uma sede nacional em São Paulo, escritórios regionais em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, então capital federal, e sedes municipais. Dos quase 3 mil membros, 785 estavam em São Paulo, 528 em Santa Catarina, 447 no Rio de Janeiro. Havia “agentes de divulgação” em Pernambuco e Bahia. Alguns de seus líderes, como o chefão Von Cossel e o tesoureiro Otto Braun, receberam treinamento especial em Munique, na Alemanha, para se tornarem “agentes políticos”. Os membros também se organizavam em associações, como a Juventude Hitlerista, a Associação de Professores e a Associação de Mulheres Nazistas.
Ao contrário do que se pensa, o tipão mais comum de um nazista no Brasil tinha pouco a ver com os colonos alemães que chegaram no século 19. Geralmente, eram técnicos e empresários urbanos que viam o Brasil como uma gastland – “terra de hospedagem”, um abrigo temporário. “A principal missão dos membros era difundir o nazismo entre os alemães longe da Alemanha”, diz Ana Maria. “Professores foram enviados de Berlim para lecionar em escolas alemãs e pregar o nazismo para os alunos.”
Foi o que ocorreu na Escola Alemã da Vila Mariana, hoje Escola Benjamin Constant, em São Paulo. Ali, as crianças estudavam em alemão, davam vivas a Hitler e entoavam canções nazistas como a patriótica “Alemanha Acima de Tudo”, que começava assim: “Levanta a bandeira da luta e da liberdade,/ as fileiras bem unidas,/ e marcha com os passos calmos e firmes”. No Colégio Visconde de Porto Seguro, também em São Paulo, o diretor Gustaf Hoch foi denunciado pelo pai de um aluno em carta ao próprio Goebbels por não defender o nazismo.
“Tudo indica que o nazismo no Brasil se difundiu, pelo menos no início, para os alemães e entre os alemães. Eles não queriam saber da política interna, de tomar o poder do Brasil ou convencer mestiços e não-arianos a adotarem as idéias de Hitler”, diz Priscila Perazzo. O partido trabalhava de olho nos problemas da Alemanha e dos alemães que viviam no exterior. Sequer estavam registrados no Tribunal Superior Eleitoral, e descendentes nascidos no Brasil eram proibidos de entrar. “Não acredito e não há indício confiável de que os nazistas pretendessem influenciar drasticamente a política brasileira”, afirma Priscila. No entanto, um estudo do historiador Francisco Teixeira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, baseado em documentos do Arquivo Federal da Alemanha, mostra que diante da iminência da guerra, entre 1936 e 1939, o partido recebeu do III Reich a missão de paquerar a opinião pública brasileira. Para isso, os nazistas controlavam pelo menos 15 emissoras de rádios espalhadas pelo país que transmitiam noticiários em português feitos em Berlim. Notícias da rádio Tupy, de São Paulo, em outubro de 1936, diziam que a Alemanha estava uma maravilha sob o comando do Führer. A produção industrial crescia, os alimentos abundavam, o perigo semita estava sendo afastado e, em breve, a raça alemã estaria toda reunida. Os ideais nazistas chegavam ao grande público brasileiro ainda em panfletos, livros e pelo jornal Deutscher Morgen (ou “Aurora Alemã”), que custava 200 réis e publicava na capa trechos de discursos de Hitler como esse, de junho de 1934: “Devemos assegurar a permanência da nossa raça e de nosso povo, o alimento de nossos filhos, preservar a pureza do sangue, a liberdade e independência da pátria”. Editado no bairro da Mooca, em São Paulo, o jornal convidava os leitores a participar de reuniões sobre o nazismo e para tomar um chope Antarctica na Gruta Alemã, bar na avenida São João que estampava uma suástica atrás do balcão.
Em abril de 1938, no auge da onda nacionalista, o governo Vargas restringiu a participação política partidária aos brasileiros natos e o Partido Nazista – tanto quanto o Comunista – foi extinto. Mas não acabou. Documentos encontrados no arquivo do Itamaraty pela historiadora Ana Maria Dietrich mostram que, antes de o decreto começar a valer, o presidente recebeu o embaixador alemão no Brasil, Karl Ritter, para uma conversa. “Getúlio disse ao diplomata que a medida não era punitiva aos alemães, à Alemanha ou ao Partido Nazista”, afirma Ana Maria. Como compensação pela proibição, o embaixador aceitou a doação de sacas de café, para ajudar no Programa de Auxílio Alemão de Inverno. O que não se sabe se ficou combinado entre Getúlio e o embaixador foi a garantia de que os nazistas não seriam perseguidos. Mas o fato é que, pelo menos nos primeiros anos após a proibição, o governo nada fez para reprimir as atividades dos nazistas. “Até a entrada do Brasil na guerra, em agosto de 1942, mesmo ilegal o partido seguiu funcionando numa boa”, diz a historiadora. Na embaixada alemã no Rio, uma bandeira nazista permaneceu hasteada até outubro de 1941. Em abril de 1942, uma passeata reuniu cerca de 2 mil nazistas uniformizados à luz do dia, no centro de Florianópolis.
Agora é guerra
Em janeiro de 1942, após o ataque dos japoneses a Pearl Harbor, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo. E em 31 de agosto, depois de seis navios brasileiros serem afundados por submarinos alemães em quatro dias, Getúlio declarou guerra. “Não há como negar que a Alemanha e a Itália praticaram atos de guerra, criando uma situação de beligerância que seremos forçados a reconhecer, em defesa de nossa soberania, da nossa segurança e da América, e a repelir, na medida de nossas forças”, discursou o presidente. A declaração pôs fim à pendular atuação de Vargas, que ora adulava os alemães – num discurso em 1940, no dia em que os nazistas tomaram Paris, ele elogiou as “nações fortes que se impõem pela organização baseada no sentimento da pátria e sustentando-se na convicção da própria superioridade” –, ora sorria para os aliados, de olho nos investimentos que os americanos prometiam fazer por aqui.
De um dia para o outro, alemães, italianos e japoneses viraram inimigos da pátria. Os alemães residentes ou de passagem pelo Brasil foram convidados a deixar o país e intimados a comparecer à delegacia mais próxima. Alguns foram presos acusados de “falar alemão em público”. Como mostra o filme Cinema, Aspirinas e Urubus, do cineasta Marcelo Gomes, que estreou no fim de 2005, empresas alemãs como a Bayer, que difundia pelo país as pílulas para dores de cabeça, sofreram intervenção federal. Mas, se por um lado a perseguição policial causou vítimas inocentes, também revelou uma bem organizada rede de espionagem.
Uma das primeiras pessoas detidas pelo Deops, em setembro de 1942, se tornaria um dos mais famosos espiões nazistas no Brasil. Era o alemão Otto Braun, tesoureiro e membro da direção nacional do Partido Nazista Brasileiro. Nos sete meses em que ficou preso, Braun não pôde falar com a família nem com amigos, permanecendo, como diz seu prontuário, “em regime de rigorosa incomunicabilidade”. Em seus mais de 200 depoimentos aos agentes do Deops, ele nomeou, um a um, todos os integrantes do partido, inclusive os que ocupavam cargos de direção. “Morando no Brasil desde 1924, Braun conhecia tudo e revelou detalhes de ações de espionagem e fraudes cambiais”, conta Ana Maria. Funcionário do Banco Alemão Transatlântico, Braun coordenava uma série de transações proibidas de câmbio. O dinheiro de alemães residentes no Brasil era enviado para cofres na Suíça e de lá chegava à Alemanha e às mãos do III Reich. Pelo menos 12 funcionários do banco eram membros do partido ou ligados a ele. Acabaram presos.
Otto Braun declarou também que o partido era “uma instituição conhecida pelas autoridades brasileiras, que muitas vezes compareceram às reuniões e festejos da mesma”. Era verdade. O governo brasileiro monitorava os nazistas havia dez anos. Os policiais estavam infiltrados em igrejas luteranas e clubes como o Germânia, no Rio de Janeiro, e enviavam relatórios às vezes semanais, descrevendo de animadas perseguições de suspeitos, no melhor estilo James Bond, a tediosas tocaias, que só servem para quem quer conhecer o cotidiano de pessoas supostamente nazistas e falam de fins de semana na praia, partidas de biriba e aniversários de família.
“Esses relatos mostram que grande parte das fontes de informação do serviço de espionagem nazista era composta por amadores. Gente comum que falava o que sabia ou ouvia dizer aos informantes do III Reich”, diz a historiadora Priscila Perazzo. Entre esses faladores havia operários, comerciantes e industriais, gente que, às vezes, ocupava cargos importantes e até estratégicos em empresas brasileiras. Frederico Weissflog, dono da Companhia Melhoramentos de São Paulo, ouviu de alguns amigos americanos que os Estados Unidos preparavam um golpe para derrubar Getúlio. Tudo bobagem, é claro, mas, em vez de informar o governo brasileiro, Weissflog contou o boato para Niels Christian Christensen.
Christensen (que, aliás, não acreditou na lorota) era um espião de carteirinha, um dos mais profícuos informantes nazistas que atuaram no país. As transcrições de suas mensagens interceptadas pelo Deops somam quase oito pastas. “Ele era a face profissional da rede de informações nazista no Brasil”, diz Priscila. Treinado pelo serviço de informação alemão, ele liderou uma das seis células que operavam no país. Sua base era a cidade de Santos, no litoral paulista, onde se apresentava como dinamarquês e comerciante. Christensen na verdade era alemão e chamava-se Josef Starziczny. Havia chegado ao Brasil em abril de 1941 e montado uma estação de rádio que funcionou secretamente por mais de um ano, passando informações sobre o porto e sobre a presença de navios aliados na costa brasileira.
Em 1940, em São Paulo, o alemão Hans Christian von Kotze abriu um escritório comercial no centro da cidade. Os vizinhos pensavam que ele administrava investimentos para empresários graúdos. Balela. Kotze era um espião nazista e o que ele conseguia saber com os endinheirados era passado para a Alemanha por uma rádio clandestina no bairro do Jabaquara.
Você deve estar se perguntando: o que tanto queriam os espiões nazistas no Brasil? A resposta pode ser simples: como todos os alemães – ou pelo menos a esmagadora maioria deles –, eles queriam que a Alemanha ganhasse a guerra. Por isso, passavam informações que pudessem ajudar a máquina de guerra alemã contra os aliados.
Mas há quem ache que Hitler tivesse outros planos para o Brasil. Primeiro, como fonte de recursos para uma guerra prolongada. Depois para, vencido o inimigo, contar com um aliado de porte para se recuperar dos esforços de guerra. “Entre as autoridades havia o medo, mesmo que remoto, de Hitler invadir o Brasil depois de conquistar a Europa”, diz a historiadora Ana Maria Dietrich. E o próprio Führer dava corda para essa desconfiança. “Precisamos de dois movimentos no exterior: um leal e um revolucionário. Não vamos desembarcar tropas e conquistar o Brasil com armas na mão. As armas que temos não se vêem”, afirmou Hitler em 1933.
Se isso fosse verdade, gente como Gustav Engels, um pacato pai de família que chegara ao Rio de Janeiro nos anos 20 para trabalhar na Siemens, estaria pronto a ajudar. Em 1939, Engels passou um tempo na Alemanha. Voltou com um codinome – Alfredo – e a missão de proliferar espiões, estações clandestinas e códigos telegráficos pela América do Sul. Durante três anos, ele coordenou uma extensa rede que contava com informantes em companhias aéreas, funcionários do governo, jornalistas, executivos de empresas de energia, num total de mais de 50 pessoas, entre elas o engenheiro Ludwig Weber e o mecânico Alberto Hofstetter, ambos funcionários da Vasp. No fim de 1942, a polícia interceptou uma série de mensagens enviadas por Engels via rádio que surpreenderam as autoridades pela precisão e diversidade. Há dados sobre o trânsito de aviões norte-americanos nas bases aéreas do Nordeste, informações sobre a capacidade dos depósitos de gasolina nos portos e o comprimento das pistas dos aeroportos brasileiros. Além de transmitir o que sabia para a Alemanha, Engels compartilhava tudo com colegas no Chile, Argentina e Equador. Para saber se uma mensagem havia chegado à Alemanha, ele pedia sinais pelo noticiário da rádio alemã: “Como confirmação mandar tocar algumas passagens da marcha ‘Fridericus’ ao terminar o programa em ondas curtas às 22 horas hora do Rio”, telegrafou “Alfredo” em janeiro de 1942. Preso em novembro, foi condenado a 14 anos e cumpriu cinco.
Outro suposto chefão da espionagem nazista foi revelado em 1983 (bem antes, portanto, de os arquivos do Deops serem abertos), quando o historiador americano Stanley Hilton lançou A Guerra Secreta de Hitler no Brasil. Nele, Hilton apontava o alemão Hans Curt Werner Meyer-Clason como líder da rede que funcionava no Rio Grande do Sul. Foi um espanto. Não tanto para os historiadores, mas para os literatos brasileiros. É que Meyer-Clason é o maior tradutor de literatura brasileira para a língua alemã. Ele, que passou cinco anos preso em Ilha Grande, nega até hoje a acusação (leia entrevista na pág. 33).
Caça aos nazistas
Quando foi declarada guerra entre Brasil e Alemanha, houve em São Paulo e no Rio uma debandada de empresários alemães rumo ao país natal. Já os imigrantes alemães do Sul não tiveram a mesma chance. Em 1942, espionagem era – e ainda é – crime no Brasil. Segundo o Código Penal Militar (pela convenção de Genebra, de 1929, espiões são criminosos de guerra), o acusado pode ser condenado de quatro a 20 anos de prisão. Mas a aplicação da lei no Brasil, já naquele tempo, teve excessos de um lado e “jeitinhos” do outro.
Numa tarde, no verão de 1942, o estudante Max Will, então com 12 anos, voltava da escola em Agrolândia, em Santa Catarina. “Em casa, encontrei todo mundo chorando. Os policiais tinham invadido nossa casa e levado meu pai”, lembra. O pai de Max, o agricultor Leopoldo Will, viera da Alemanha quando criança e jamais aprendera o português. Na praça da cidade, os policiais obrigaram-no a beber óleo de rícino com diesel e defecar em público. “Enfiaram-lhe o fuzil na boca e passaram o diesel por ali”, conta Max, hoje com 75 anos.
Com medo de atos assim, um grupo de 12 marinheiros alemães fez uma tentativa desesperada durante o Carnaval de 1942. Em São Vicente, litoral de São Paulo, eles tentaram fugir, atravessando o Atlântico num barco de 10 metros de comprimento. “No segundo dia no mar, depois de uma tempestade, vimos que era preciso voltar à terra para consertar o barco. Acabamos naufragando pouco antes de atingir o litoral de Praia Grande”, conta Heinz Lange, hoje com 85 anos, o único tripulante da aventura ainda vivo. “A polícia nos pegou e fomos direto para a cadeia.”
Heinz e os amigos faziam parte da tripulação do Windhuk, um navio de turismo que zarpou da Alemanha em julho de 1939 rumo à África com cerca de 650 pessoas a bordo. Quando a guerra estourou, a maioria resolveu ficar na África, mas cerca de 250 resolveram permanecer a bordo e tentar voltar à Alemanha. No caminho, para fugir de navios de guerra britânicos, o Windhuk teve que mudar de rumo e virar à esquerda. “Eles chegaram ao Porto de Santos em dezembro de 1939 e ficaram morando no barco até 1942”, conta Peter Böhme, filho de um tripulante do Windhuk, que prepara um livro baseado no diário que seu pai escreveu na época. Os tripulantes do Windhuk chegaram a trabalhar em Santos como carpinteiros, mecânicos e cozinheiros, mas depois da entrada do Brasil na guerra acabaram em campos de prisioneiros acusados de “nazismo leve”. De 1942 a 1945, cerca de 3 mil alemães, japoneses e italianos foram presos pelo governo em 13 campos de concentração em oito estados. Em Santa Catarina foram 200 presos num hospício desativado de Joinville. Em Curitiba e Porto Alegre foram colocados em presídios comuns. Em Recife, o campo de Chã de Estevam abrigou os funcionários da Companhia Paulista de Tecidos (que depois viraria Casas Pernambucanas), cujos donos, os Lundgren, eram alemães. “Quase ninguém ali tinha nada a ver com nazismo”, diz a historiadora Susan Lewis, da Universidade Federal de Pernambuco.
Os maiores campos foram montados em Pindamonhangaba e Guaratinguetá, em São Paulo, para abrigar a turma do Windhuk. No primeiro, os prisioneiros criaram um grupo de teatro e a orquestra do navio seguiu tocando todas as noites. Heinz Böhme escreveu em seu diário: “Domingo fizemos jogo de futebol entre os com-camisa e sem-camisa. Consegui ler um jornal contando que uma bomba caiu em Berlim”.
Em 1945, com a rendição alemã, a coisa esfriou e, quando a guerra acabou, muitos processos foram abandonados e a maioria dos detidos foi simplesmente libertada. Do campo de Pindamonhangaba todos os presos saíram andando, pela porta da frente. A maioria ficou pelos arredores, outros partiram atrás de parentes, alguns não deixaram pistas. O cozinheiro do Windhuk, Kurt Brenneck, foi trabalhar num hotel em Campos do Jordão. Três de seus colegas se casaram com moças da região e seus filhos e netos ainda estão por lá. Os espiões graúdos, presos em Ilha Grande, também foram libertados. Niels Christensen, condenado a 30 anos, saiu em 1947. O carpinteiro Heinz Lange só voltou a sua terra no fim da década de 50. Encontrou um país transformado, bem diferente daquele que tinha deixado em 1939 a bordo do Windhuk. “Não gostei nem um pouco. Eu já estava acostumado com o Brasil”, diz. Sem pensar duas vezes, ele preferiu voltar e se aposentar como um tranqüilo mestre-de-obras em Praia Grande, no litoral de São Paulo.

Nazismo em verde e amarelo

Integralismo chegoua ter entre 600 mil e 1 milhãode membros no Brasil
Entre os brasileiros, as idéias de Hitler e Mussolini tinham um correspondente fiel: o integralismo. Assim como nazistas alemães e fascistas italianos, os integralistas pregavam disciplina militar, superioridade dos brancos, nacionalismo radical, anti-semitismo, governo autoritário e luta contra o comunismo. Eram liderados por intelectuais como o jornalista Plínio Salgado e os advogados Gustavo Barroso e Miguel Reale. O partido contava com uma milícia cujos membros, para se cumprimentar, levantavam o braço direito e diziam “anauê”, que, em tupi, significa “você é meu irmão”. Os “irmãos”, é claro, não incluíam negros, judeus e estrangeiros. O racismo por vezes acabava em violência, como em 1936, quando, durante um desfile, milicianos espancaram negros no centro do Rio. A Ação Integralista Brasileira, que chegou a dividir o mesmo escritório com sedes do Partido Nazista em cidades como Rio do Sul, em Santa Catarina, elegeu oito prefeitos nesse estado em 1936, quando chegou a ter entre 600 mil e 1 milhão de membros. Tamanha popularidade daria a Salgado grandes chances na eleição presidencial de 1938. No entanto, em setembro de 1937, Vargas deu um golpe de Estado e se tornou ditador. A desculpa para o surto autoritário foi a descoberta do Plano Cohen, que revelaria um projeto comunista contra o governo, mas que na verdade era uma papelada falsa de autoria do capitão do Exército Olympio de Mourão Filho, notório simpatizante das teses integralistas. Apesar de apoiar o golpe de Getúlio, foram alijados do poder e o partido foi proibido. Em maio de 1938, integralistas atacaram o Palácio Guanabara, sede do governo federal, foram reprimidos e alguns morreram fuzilados. Plínio Salgado acabou exilado. Depois da derrota dos nazistas na guerra, o integralismo perdeu o encanto. Mas seus líderes continuaram integrados à política. O capitão Mourão Filho se tornou o general que, em 1964, deflagrou o golpe contra o presidente João Goulart, apoiado por políticos como Miguel Reale, secretário de Estado de São Paulo. Outro integralista, Raymundo Padilha, virou deputado em 1952 e, em 1971, foi nomeado pela ditadura governador do Rio. Plínio Salgado se elegeu deputado várias vezes. A última pela Arena, em 1977.

"Nunca fui espião nazista"

Aos 95 anos, tradutoralemão preso por espionagemconta sua vida no Brasil
Seis décadas depois de ter sido preso no Brasil por crime de espionagem, o tradutor Hans Curt Werner Meyer-Clason, por meio de quem os alemães conheceram João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, vive em Munique, na Alemanha, de onde falou por telefone com História. Aos 95 anos, mantém um português impecável e é capaz de lembrar detalhes dos cinco anos que passou em Ilha Grande, época que, insiste em dizer, considera a melhor de sua vida. Membro correspondente da Academia Brasileira de Letras, ele sempre evitou falar sobre o tempo em que, segundo a polícia, foi espião em Porto Alegre, mas diz que as acusações não passam de um engano: “Não tenho nada a encobrir ou silenciar”. Para Priscila Perazzo, uma das maiores especialistas no estudo dos documentos do Deops sobre o período, no entanto, ele pode não ter sido um espião clássico, o tipo que se conhece no cinema, mas certamente cometeu atos de espionagem. “Vários alemães foram presos por engano, mas com condenados a 20 anos, como Meyer-Clason, há poucas dúvidas. Compreensivelmente, ele vai negar o vínculo ao nazismo até a morte”, acredita a historiadora.
História – O senhor é considerado chefe de uma rede de espionagem nazista no Brasil. É verdade?
Meyer-Clason – Não, as acusações não são verdadeiras. Eu era comerciante, não era espião. Fui para o Brasil justamente porque queria sair da Alemanha hitlerista. Meu contato em Porto Alegre foi única e exclusivamente comercial. No porto de Bremen, consegui um cargo no Brasil, como representante de uma empresa de Boston, Massachusetts, que controlava estoques de algodão. A polícia achou que eu era espião porque era um jovem alemão que dizia trabalhar para americanos, falava muitas línguas e viajava pela costa falando com empresas alemãs na Bahia, no Recife.
Mas, na época, o senhor confessou ter sido espião, não?
A polícia foi muito violenta com a gente. Os policiais nos mandavam abrir os braços e brincar de “Cristo Redentor”. Ficávamos encostados em uma parede com os braços levantados e eles batiam no peito e do lado sem que pudéssemos abaixar o braço. Depois, fizeram uma confissão de espionagem falsa e fui condenado a 20 anos de prisão. Embora maltratado pela polícia, o melhor da minha vida devo ao Brasil. Eu temia ser maltratado enquanto fiquei preso, mas na prisão, em Ilha Grande, acabei mudando radicalmente. Devo ao Brasil minha mudança filosófica, existencial. Depois de Ilha Grande, passei da vida européia, do “penso, logo existo”, para o jeito brasileiro, “sinto, logo existo”.
O senhor conheceu a literatura brasileira na prisão?
Em Ilha Grande tive acesso à literatura mundial. Foi ali que conheci meu grande professor de vida, o poeta e barão alemão Gerd von Rhein. Ele tinha sido preso pela Gestapo e depois deixou a Alemanha com seu parceiro – era homossexual. Por intermédio dele, conheci toda a literatura de Homero a Sartre. Eu fui educado como filho de oficial alemão, de uma família burguesa, sem educação literária. Não fosse a prisão, eu seria um empresário, não um escritor e tradutor.
Como o senhor conseguiu sair de lá?
Depois da guerra, consegui um advogado que me defendeu gratuitamente e a condenação foi arquivada. Fui inocentado, saí livre para a rua. Depois, passei mais uns anos trabalhando numa firma de importação de gêneros alimentícios no Rio, para ganhar dinheiro. Em 1954, voltei para a Alemanha para começar uma vida nova, de escritor, crítico literário e tradutor. De tanta saudade do Brasil, comecei a ir às festas do Consulado Geral do Brasil. Um dia, perguntei ao cônsul-geral qual era a novidade literária do Brasil. Ele me falou de um colega, também diplomata, um tal de Guimarães Rosa.
O senhor e Guimarães Rosa ficaram amigos?
Sim, ficamos amigos até a sua morte. Depois que o cônsul me falou de Grande Sertão: Veredas, eu escrevi para o Guimarães. Ele me respondeu e mandou o romance. Assim começou uma amizade de muitos anos. Depois, tive a sorte de lançar no mercado alemão os grandes gênios latino-americanos. Até hoje, recebo livros e cartas de poetas e romancistas brasileiros.

Saiba mais

Livros
Inventário Deops: Alemanha, Ana Maria Dietrich, Eliane Alves e Priscila Perazzo, Imprensa Oficial, 1997
Traz prontuários de todos os acusados de nazismo em São Paulo, fichas policiais e textos explicativos
A Guerra Secreta de Hitler no Brasil, Stanley Hilton, Nova Fronteira, 1983
Primeiro grande trabalho sobre os espiões alemães e a contra-espionagem brasileira, é uma referência
O Perigo Alemão e a Repressão Policial no Estado Novo, Priscila Perazzo, Imprensa Oficial, 1999
Cruza novos documentos com as afirmações publicadas por Hilton

Hiroshima - O abominável mundo novo


Seis de agosto de 1945. Uma superbomba explode sobre o Japão, matando cerca de 100 mil pessoas. As repercussões daquela manhã de sol mudariam as regras do jogo. A eliminação da raça humana era uma possibilidade real

Leandro Narloch
Sol, calor, nada para fazer: um baita domingo de verão na base aérea de Tinian, uma das ilhas Marianas, no Pacífico. De folga, os soldados americanos do 509º Grupo Misto aproveitaram para tirar um cochilo, bater papo, se divertir. O major Tom Ferebee, de 26 anos, passou o dia com a luva e a bola de beisebol – ex-jogador do Boston Red Sox, uma espécie de Flamengo do tradicional esporte americano – e não via a hora de voltar para casa. O sargento Bob Caron, de 21 anos, limpou sua máquina fotográfica. Muitos jogaram pôquer. No fim da tarde, a moleza foi interrompida com a convocação para uma reunião. O capitão da Marinha William Parsons queria dar uma notícia: no dia seguinte, 6 de agosto de 1945, aquele grupo de jovens lançaria sobre Hiroshima, no Japão, a arma mais terrível da história. “A bomba que vocês vão jogar é uma coisa nova nas guerras. É a mais poderosa arma já produzida. Vai destruir uma área de cinco quilômetros quadrados.”
Até aí, a missão para a qual os soldados do 509º estavam se preparando havia um ano era desconhecida mesmo para eles. Envolvera milhares de pessoas, entre cientistas e militares, três anos de trabalho e dois bilhões de dólares. Tudo para construir uma bomba inédita, tecnologicamente revolucionária e com o poder de 12 mil toneladas de dinamite. Mas por que os americanos precisavam de uma arma tão poderosa? Em maio de 1945 a guerra na Europa havia terminado. Hitler estava morto, e Berlim, em ruínas, ocupada pelo Exército Vermelho. Os aliados já discutiam o mundo pós-guerra e dividiam os territórios libertados pelos nazistas. Só que, enquanto a Europa era fatiada, o Japão resistia.
No dia 25 de julho, em seu gabinete improvisado no cruzador USS Augusta, no meio do Atlântico, o presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, tomou sua decisão e ordenou o ataque nuclear ao Japão. Tinha na mão uma lista de cidades-alvo, feita pelo secretário de Guerra, Henry Stimson: Hiroshima, Kyoto, Kokura, Niigata e Nagasaki. Segundo a biografia oficial de Truman, da jornalista Nancy Lewis, o presidente excluiu uma, Kyoto, que fora capital imperial do Japão, e insistiu na escolha de um alvo militar. Hiroshima, com 40 mil soldados e 220 civis, tornou-se, assim, o alvo prioritário. No navio, o presidente escreveu em seu diário: “A arma finalmente será usada contra o Japão. Parece a coisa mais terrível já descoberta”.
Restava escolher o homem certo para a missão. O piloto da marinha Paul Tibbets, um comandante nascido em Quincy, era o favorito. Apesar de seus 30 anos de idade, já acumulava grande experiência em combate. Sua ficha, no entanto, ficou três meses nas mãos do FBI. Sua vida familiar, seus parentes e amigos da faculdade, suas preferências partidárias, tudo foi vasculhado. Afinal, Tibbets teria sob seu comando a mais mortal arma de guerra jamais construída. Nada poderia dar errado. E se desse, o comandante da missão deveria estar preparado. Tibbets receberia cápsulas de cianureto para toda a equipe. Se alguém se negasse a tomá-las, ele deveria executar o colega. Isso, porém, ainda era segredo naquele domingo de sol.
O tempo também estava claro e calorento a 2700 quilômetros dali, em Hiroshima. Mesmo sendo domingo, o trabalho não parava: a cidade era um dos poucos centros industriais do Japão que não tinham sido atacados pelos bombardeios dos B-29, que incendiavam quarteirões inteiros. “Todos sabiam que seríamos os próximos”, lembra Takashi Morita, policial militar japonês que sobreviveu ao ataque e que, hoje, aos 82 anos, é comerciante e mora no bairro Jabaquara, em São Paulo. Ao som dos rotineiros alarmes antiaéreos das últimas semanas, os moradores gastaram o dia levando móveis para casas de parentes longe do centro ou improvisando abrigos. Grupos de meninas estudantes – os meninos com mais de 12 anos estavam no Exército – desmontavam as casas de madeira para minimizar os incêndios quando a cidade fosse bombardeada.
Em Tinian, onde o sol se punha magnífico nas águas azuis do Pacífico, os soldados inteiravam-se da missão. Partiriam em três aviões: o primeiro, apelidado de Straight Flush, examinaria o clima em Hiroshima e daria sinal verde para o ataque. O segundo lançaria a bomba e o terceiro avaliaria e registraria os resultados. O avião da bomba foi batizado pelo capitão Tibbets com o nome de sua mãe, Enola Gay, provocando a ira de Robert Lewis, que geralmente pilotava aquele B-29, mas que foi apenas co-piloto da missão. “Perguntei a ele que diabos estava fazendo. Era o meu avião e eu é que deveria escolher o nome”, diria Lewis ao historiador britânico Gordon Thomas, autor de Enola Gay: Mission to Hiroshima (Enola Gay: Missão Hiroshima, inédito em português).
Lewis e Tibbets não se falaram mais até a hora do vôo. Às duas da manhã, a bomba de cinco toneladas, apelidada de Little Boy (“garotinho”), foi colocada no avião. “Com quase sete mil galões de combustível, a bomba e 12 homens a bordo, o bombardeiro estava perigosamente pesado”, afirma o historiador americano Malcolm McConnell, autor de A Última Missão. Um acidente na decolagem, coisa comum, poderia fazê-la explodir ali na base. O jeito era levar a bomba desarmada e montar o dispositivo de disparo a bordo, trabalho que ficou a cargo do capitão Parsons. Às 2h45 do dia 6 de agosto, o Enola Gay decolou de Tinian rumo aos livros de história.
O avião levaria cinco horas e meia para chegar ao destino, mas durante toda a madrugada soaram alarmes antiaéreos em Hiroshima. O fotógrafo Yoshito Matsushige passou a noite revelando as fotos que tirara no dia anterior para o jornal local, o Chigoku Shimbun. De manhã, às 7h30, ele ouviu mais um alarme antiaéreo. “Pela janela, vi o avião americano. Ele me pareceu enorme”, diz Matsushige. Era o Straight Flush verificando o clima na cidade. Se houvesse nuvens e pouca visibilidade, o alvo mudaria para Kokura ou para Nagasaki. Mas a manhã era de sol. “As nuvens cobrem menos de 3/10 em todas as altitudes. Aviso: alvo primário”, foi a informação que chegou ao Enola Gay.
Se permitiu que os aviões americanos avistassem seu alvo, o céu claro sobre Hiroshima também possibilitou que seus habitantes percebessem a aproximação de seus algozes. Perto das oito horas, o médico Masakazu Fujii resolveu ler o jornal no terraço de seu consultório, de onde viu o grupo de meninas retornando ao trabalho do dia anterior. No avião, o major Thomas Ferebee ajustou os aparelhos e mirou para que a bomba atingisse uma ponte que cortava um dos sete rios da cidade. A jovem Ayako, de 20 anos, que depois se tornaria esposa do militar Takashi, olhava para o relógio do seu escritório: 8h15. Nesse momento a bomba foi lançada, livre do peso, o B-29 deu um salto para cima. O “garotinho” estava a caminho. Em segundos, um clarão silencioso foi visto na cidade. Do avião, o sargento Bob Caron fotografou o enorme cogumelo. Espantado com o impacto da explosão, o co-piloto Lewis escreveu em seu diário: “Meu Deus, o que fizemos?” Essa é a versão mais conhecida. Segundo o historiador Gordon Thomas, porém, essa frase veio depois que o coronel Tibbets pediu que ele reescrevesse algo mais educado. A frase verdadeira teria sido algo como “Caramba, que filha-da-puta!”

Por quê?
Sessenta anos depois que aquele flash gigantesco e silencioso disparou a 580 metros de altura, Hiroshima é hoje uma cidade moderna e tranqüila. Tem 2,8 milhões de habitantes, é conhecida por abrigar a fábrica de carros Mazda e um dos melhores e mais populares times de beisebol do país, o Hiroshima Carps. Tem estacionamentos verticais, canteiros de azaléias e placas Enjoy Coca-Cola pela rua. A maioria dos habitantes fala inglês e é comum as clínicas de cirurgia plástica oferecerem a chamada ocidentalização das pálpebras, intervenção que transforma olhos puxados em arredondados. Da destruição da cidade, restou uma ruína, o Domo de Hiroshima, antigo palácio de exposições. E uma pergunta: por que fazer um ataque nuclear ali?
Em agosto de 1945, a guerra contra o Japão estava quase vencida. Desde março, o país vinha cedendo o domínio de ilhas importantes no Pacífico sul, como Iwo Jima, diante do avanço dos americanos comandados pelo general Douglas MacArthur. Cidades importantes como Nagoya e Okinawa estavam arrasadas. A capital Tóquio havia sido destruída por um bombardeio de 334 aviões B-29. Oitenta mil habitantes foram mortos. “Em julho, a guerra no pacífico estava ganha”, afirma o professor Justin Libby, especialista em Relações Internacionais da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. “A rendição, porém, era um tema polêmico tanto para japoneses, quanto para americanos. Mas, pelo menos quatro tentativas de rendição negociada foram feitas por japoneses antes de Hiroshima.”
Duas delas aconteceram por iniciativas de embaixadores japoneses na Europa impressionados com o caos na Alemanha. “Em maio de 1945, o representante japonês na Alemanha, Yoshiro Fujimura, trocou telegramas secretos com autoridades de Tóquio, apresentando as propostas de paz defendidas pelo diretor do Escritório de Serviços Estratégicos na Europa, Allen Dulles, e outros oficiais americanos na Suíça”, diz Libby. Como o cargo de Fujimura era pequeno demais para negociar o fim da guerra, ele foi ignorado por japoneses e americanos. O mesmo aconteceu com o adido militar japonês em Estocolmo, Makoto Ono. Ele entrou em contato com o rei Gustavo V, que mantinha boas relações com o imperador japonês. A idéia era chegar até o governo britânico e convencer Churchill a interceder pela paz. Ono não foi feliz. E acabou investigado por militares japoneses por querer a paz enquanto seu país queria a guerra.
A tentativa de paz mais consistente envolveu o primeiro-ministro japonês Suzuki Kantaro e foi feita via Moscou. A União Soviética e o Japão, mesmo em lados opostos, não estavam em guerra, e o japoneses acreditavam que poderiam usar a diplomacia e a força de Stálin para impor a paz negociada aos Estados Unidos. Mensagens dessas tentativas foram decodificadas pelos americanos, que as utilizaram para pressionar os soviéticos a declarar guerra aos japoneses. As mensagens mostram também que muito antes do ataque nuclear os americanos sabiam da possibilidade de rendição.
No Japão, todo mundo sabia que a guerra estava perdida. Com sua indústria de guerra paralisada, os aviões americanos B-29 passeavam pelo espaço aéreo do país quase sem resistência. Mas render-se era demais para os militares. Seria o fim do sonho expansionista que começara nos anos 30, com o Japão estendendo seus braços sobre Coréia e China. Significaria, ainda, a primeira derrota em séculos e poderia derrubar o imperador Hiroito, considerado o arahitogami, “sucessor direto dos tempos eternos”.
Por isso, os manda-chuvas do Conselho japonês, incluindo o primeiro-ministro, estavam divididos. Alguns aclamavam a população para lutar a ketsu-go, a “batalha decisiva pela pátria”. Entre eles estava o ministro da Guerra, Korechika Anami, um fanático pela tradição guerreira do país, que, como um antigo samurai, escrevia poesia clássica e dominava o kendo, luta em que um sujeito dá pauladas no outro com uma vara de bambu. Em Kyushu, no sul do país, Anami mantinha 570 mil homens à espera dos americanos. Ele também ordenara a convocação de 13 milhões de crianças e velhos que estavam sendo treinados às pressas para lutar.
O próprio imperador Hiroito assumira uma posição aparentemente contraditória: apoiava as iniciativas de paz dos embaixadores, mas também aplaudia os esforços militares de resistir à invasão, o que lhe daria melhores condições de negociar.
Mas militares e políticos americanos tinham seus próprios problemas em aceitar a paz. A opinião pública apoiava a guerra total contra o Japão e exigia a rendição absoluta. O ataque à base militar de Pearl Harbor, no Havaí, em dezembro de 1941, quando 2,4 mil americanos morreram, não fora esquecido. Uma pesquisa do Instituto Gallup de 29 de junho de 1945 revelou que 70% dos americanos queriam o Japão destruído e o imperador Hiroito retirado do cargo e julgado como criminoso de guerra. Mais: a maior parte, 33%, queria a cabeça do homem. Harry Truman, sucessor de Franklin Roosevelt, reconhecia a importância dos números. Entre os documentos liberados recentemente pelo governo americano, há um bilhete do ex-secretário de Estado Cordell Hull dirigido ao presidente e datado do dia da partida de Truman para a Europa: “Concessões aos japoneses poderão causar repercussões políticas terríveis em casa”. Hull era um dos signatários de um estudo que a guerra contra o Japão poderia durar até 1946, ano de eleições para o Congresso.
Só que Truman tinha ainda outros números com que se preocupar. Desde que assumira, a quantidade de soldados mortos era quase a metade do total dos três anos de guerra do Pacífico. Em junho, os militares apresentaram um plano de invasão ao Japão. Seriam duas operações: a Olympic e a Coronet. O presidente pediu um cálculo das baixas na empreitada. A projeção do Pentágono foi de 220 mil soldados mortos e 150 mil feridos. “Depois da guerra, essas estimativas foram ‘corrigidas’ por Washington, primeiro para 500 mil e depois para um milhão de mortos à medida que se tornou preciso justificar a bomba atômica”, diz o historiador Samuel Walker, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos e autor de Prompt and Utter Destruction – Truman and the Use of Atomic Bombs Against Japan (Destruição total e imediata – Truman e a utilização das bombas atômicas contra o Japão, inédito no Brasil).
Para Walker, o maior empecilho para a paz com os japoneses estava longe do Japão. “Apesar da guerra continuar no oriente, em julho, duas semanas antes de Hiroshima, o foco de Truman era outro: ele estava em Potsdam, na Alemanha, onde se reuniria com os líderes da Grã-Bretanha e da União Soviética”, afirma. “Se ao sair dos Estados Unidos, Truman ainda tinha dúvidas, em Potsdam ele selou o destino de Hiroshima.” Na tarde do dia 16, Truman recebeu uma notícia que havia muito aguardava. Num ultra-secreto experimento no deserto do Novo México, militares e cientistas do projeto Manhattan realizaram com sucesso a primeira explosão nuclear. Truman não se conteve e durante o encontro com Churchill e Stálin, cochichou no ouvido do ditador soviético: “Temos um explosivo muito poderoso que iremos usar contra os japoneses e pôr fim à guerra”.
Segundo David S. Painter, professor de história da Universidade de Georgetown, em Washington, foi aí que nasceu a tese de que o ataque a Hiroshima foi um recado para Stálin. “Pôr a bomba em prática mostrou a Stálin que, apesar de ter vencido a guerra na Europa, levando sua influência a boa parte do continente, ele não ditaria as regras. E, do ponto de vista militar, a bomba atômica mostrou que havia algo mais poderoso que o Exército Vermelho”, diz Painter. “Não é à toa que muitos apontam a detonação da bomba – e não a construção do Muro de Berlim –, como o marco inicial da Guerra Fria.”
Não deixa de ser irônico: a Guerra Fria, o conflito velado entre americanos e soviéticos que marcou a segunda metade do século 20, começou com uma arma cujo núcleo chegou a 50 milhões de graus centígrados.

Memorial de guerra

Em desenhos simples, vítimas eternizaram a tragédia
8h15, dia 6
“Um flash de luz prata como se dezenas de milhares de câmeras tivessem sido disparadas ao mesmo tempo iluminou a área. Surpreso, eu virei e, no instante seguinte, ouvi um estrondo que parecia forte o suficiente para arrancar a Terra de seu eixo. Então, uma coluna gigante de fumaça subiu ao céu. Sirenes começaram a soar por toda a ilha enquanto o grande avião de bombardeio fugiu para o sul.”
Eiji Horio
Idade na época: 32 anos
Distância da explosão: 5 km
9h10, dia 6
“Eu engatinhei desesperado para sair de baixo da minha casa. Alguns dos vizinhos estavam cambaleando pela rua com feridas enormes, com pedaços de pele pendurados pelo corpo. Outros eu nem reconheci, estavam sentados no chão, olhando para o nada. Ver as pessoas naquele estado vai além da nossa imaginação.”
Mitsuko Matsutomi
Idade na época: 13 anos
Distância da explosão: 1,2 km
11h15, dia 6
“No meio de um monte de ruínas a gente via corpos queimados e inchados.”
Michie Matsushima
Idade na época: 17 anos
Distância da explosão: 450 metros
13h15, dia 6
“Vi os corpos carbonizados de uma mulher e de uma criança que pareciam que estavam tentando sair do bonde. Foi o que mais me impressionou.”
Miyoshi Kokubo
Idade na época: 26 anos
Distância da explosão: 1,2 km
17h, dia 6
“Entre as pessoas anônimas queimando, eu achei meu tio chamando minha tia com uma voz fraca. Ele deu seu último suspiro quatro horas depois.”
Yukiko Migitani
Idade na época: 22 anos
Distância da explosão: 1,7 km
6h30, dia 7
“Andei com a minha bicicleta pelas ruínas. No nariz, cheiros muito esquisitos.”
Yoshio Kawata
Idade na época: 23 anos
Distância da explosão: 2,3 km
14h, dia 8
“Me lembro de ter seis anos de idade e estar procurando por minha mãe, que estava desaparecida. Vi um corpo com o rosto queimado todo vermelho e inchado, apenas a área ao redor dos olhos ainda era branca. Sob o sol do verão, o cheiro era insuportável.“
Katsuko Kuwamoto
Idade na época: 6 anos
Distância da explosão: 1,7 km

A cara do horror

Sobreviventes relembram o dia mais longo de suas vidas
“Eu tinha acabado de tomar café-da- manhã e me preparava para ir ao jornal onde trabalhava. De repente, o mundo ao meu redor ficou branco e brilhante, como se tivessem disparado um flash na minha cara. Depois, veio a explosão. A sensação era de centenas de alfinetes me penetrando ao mesmo tempo. Após cerca de 40 minutos, peguei minha câmera, vesti uma roupa que achei no meio dos escombros e saí para a rua. Na ponte Miyuki, encontrei estudantes do Colégio para Mulheres de Hiroshima, mobilizadas para derrubar casas. Estavam cobertas de queimaduras. Puxei minha câmera, mas não consegui apertar o botão. Eu tinha sofrido apenas ferimentos leves causados por estilhaços de vidro, e aquelas pessoas estavam morrendo. Hesitei por uns 20 minutos, até tomar coragem. Lembro que o visor da câmera ficou embaçado pelas minhas lágrimas. Endureci o coração para fotografar. Depois, vi um bonde queimando. Dentro estavam 15 ou 16 passageiros, mortos uns sobre os outros, com as roupas arrancadas. Meus cabelos arrepiaram e as minhas pernas tremeram. Caminhei para tirar uma foto. Não consegui. Havia outros fotógrafos lá, mas nenhum deles conseguiu fotografar. É uma pequeno consolo ter sido capaz de tirar pelo menos cinco fotografias que se tornaram registro daquela atrocidade”.
Yoshito Matsushige
Único fotógrafo a registrar o cenário desolador logo após a explosão da bomba.
Idade na época: 32 anos
Distância da explosão: 2.7 Km
À flor da pele
“Posso até dizer que tive sorte dupla naquele dia. Eu trabalhava em um departamento do governo a 500 metros do epicentro da explosão. Mas, por estar doente, estava cumprindo o expediente em outro prédio, mais distante do local da bomba. E, no momento exato da explosão, eu tinha ido beber água. Longe da janela, fiquei protegida da radiação. Saí do prédio coberta de sangue por causa dos ferimentos causados pelos estilhaços de vidro e fui correndo para casa, que não estava mais lá. No caminho, vi uns meninos pendurando alguma coisa no corpo. Quando cheguei perto, percebi que seguravam a própria pele. Nos dias que se seguiram, diziam que viveríamos apenas dois anos, e que nenhuma planta nasceria em Hiroshima. Como o capim começou a crescer, pensamos que também sobreviveríamos. E sobrevivemos. Um ano depois, conheci meu marido e viemos para o Brasil. Estamos juntos há quase 60 anos e temos dois filhos saudáveis. Mas eu ainda sonho com aquele dia.”
Ayako Motita
Estudante
Idade na época: 20 anos
Distância da explosão: 1.2 Km
Chuva negra
“Eu estava levando 15 prisioneiros americanos para construírem um abrigo antiaéreo. Caminhávamos, quando senti uma luz nas minhas costas que me jogou uns 10 metros para frente. Depois, caiu uma chuva negra. Corri para o abrigo em construção e fui enviado pelo meu superior para saber o que estava acontecendo. Levei três horas para percorrer um quilômetro, vendo pelo caminho gente pegando fogo. A cena que mais marcou foi a de um bonde cheio de corpos carbonizados. Dava para ver a expressão de susto nos cadáveres. Eu já tinha presenciado o bombardeio a Tóquio meses antes, que matou muita gente, mas parecia bem pior. Os rios estavam cheios de corpos. Eu e meus colegas militares lutaríamos até a morte naquela guerra. Pode ser até que merecêssemos a morte. Nunca nos renderíamos aos americanos. Mas nossas mulheres e crianças não tinham nada a ver com isso.”
Takashi Morita
Policial militar
Idade na época: 22 anos
Distância da explosão: 1.3 Km
“Quantos nós matamos?”
“O clarão foi terrível. Quando viramos o avião e pudemos observar os resultados da nossa ação, vimos a maior explosão que o homem já testemunhou. Mais de 90% da cidade estava coberta de fumaça, e por uma coluna de nuvem branca que em menos de três minutos alcançou 30 mil pés. Tenho certeza que toda a tripulação experimentou uma sensação maior do que qualquer ser humano podia suportar. É impossível de compreender. Quantas pessoas nós matamos? Meu Deus, o que fizemos? Se eu viver 100 anos, nunca vou tirar aqueles poucos minutos da minha cabeça.”
Robert Lewis
Co-piloto do enola gay. O depoimento foi tirado do seu diário de bordo.
Idade na época: 26 anos
Almas penadas
“Eu tinha acabado de chegar no hospital e dizia ‘bom dia’ para as pessoas, quando um brilho vermelho invadiu a sala. Fiquei inconsciente por 30 segundos. Acordei atordoado e caminhei até a janela, de onde vi um cogumelo de fumaça perto da companhia de gás. Nesse momento alguém me chamou para atender feridos. Comecei a trabalhar, com a ajuda de enfermeiras e residentes. Aí ouvimos um barulho. Eram dezenas de pessoas caminhando na direção do hospital. Estavam queimadas e tinham vidros quebrados ou madeira no corpo. Pareciam fantasmas. Eu vi fantasmas. Uma hora, quando parei o trabalho para respirar, uma mulher grávida pegou na minha perna e disse: ‘Eu sei que vou morrer, mas posso sentir meu filho se mexendo. Se eu fizer o parto agora, ele se salva’. Mas não dava para fazer um parto aquela hora. Tudo que eu pude fazer foi dizer que voltaria. A imagem daquela mulher nunca saiu da minha cabeça. Naquele dia atendi 200 ou 300 pacientes. Foi o dia mais longo da minha vida.”
Hiroshi Sawachika
Médico
Idade na época: 28 anos
Distância da explosão: 5.1 Km

Duelos entre mulheres: damas de espada


Entre os séculos 13 e 17, os duelos eram moda nas classes mais abastadas da Europa. E as mulheres nãoficavam de fora. Amarradas por espartilhos ou travestidasde homens, rotagonizaram lutas legendárias

Natalia Yudenitsch 
O ano era o de 1552. Na secular cidade de Nápoles, atual Itália, então sob domínio do Império Espanhol, um triângulo amoroso estava prestes a entrar para a história. Oriundas da mais fina nata da sociedade napolitana, duas belas jovens da nobreza, Isabella de Carazi e Diambra de Petinella, descobriram que amavam o mesmo homem, Fabio de Zeresola. Decididas a não abrir mão do rapaz, elegeram o duelo de espadas para resolver a disputa. Contrariando a imagem de serena passividade que se esperava delas na época, as duas mulheres partiram para uma luta sangrenta. Sequer trocaram as finas túnicas coloridas e as delicadas sandálias de couro. Na presença de ninguém menos do que o vice-rei espanhol, Marqués del Vasto, empunharam suas rapieiras de cerca de 1,25 quilo e pouco mais de 1 metro de comprimento e começaram as estocadas. Não houve trégua nem piedade. Com ferimentos em ambos os lados, o duelo só terminou com a morte de uma delas – Isabella. O evento foi tão comentado na corte que inspirou o pintor valenciano José de Ribeira, mais conhecido como El Españoleto (O Espanholzinho), a pintar o quadro Duelo de Mulheres, imortalizando a cena.
Diambra e Isabella eram crias da idade de ouro dos duelos. Apesar de oficialmente ilegais, foram práticas cotidianas entre os séculos 13 e 17 nas classes mais abastadas de países como França, Inglaterra, Alemanha, Espanha e Rússia. E, ao contrário do que se possa imaginar ao ver representações de damas com vestidos rebuscados e mãos suavemente pousadas no colo em pose de contemplação, os duelos femininos pipocavam por toda a Europa para provar que o sexo frágil não era tão indefeso assim. “Para entender os duelos é preciso conhecer a história da espada”, diz o professor Wolfgang Henzler, especialista em armas medievais da Universidade de Freiburg, na Alemanha. “Quando surgiu na Era do Bronze, por volta de 3000 a.C., a espada era pesada e usada com as duas mãos. Durante o Império Romano, os gladiadores já utilizavam a versão para uma mão só, evoluindo até a chegada do fino e longo florete italiano e da rapieira, a arma predileta dos duelistas da Renascença por sua capacidade de corte e perfuração.”
Lei Magna
A forte conexão da espada como símbolo de justiça, honra e poder levou ao surgimento de torneios em 1135 na Inglaterra. E as mulheres não ficaram de fora dessa moda. Mesmo escondidas, aprendiam e participavam das competições. Há relatos, datados de 1348, do aparecimento de grupos com até 50 mulheres britânicas, sempre solteiras, algumas lindíssimas e todas vestidas como homens, que não só competiam como não raro ganhavam. “Adquirir uma espada exigia uma situação financeira bem abastada, algo impensável para alguém do povo ou até para o soldado comum. Daí enraizou-se a idéia de que a esgrima é um esporte de esnobes. Os duelos mostravam o status social de quem os praticava”, diz Christina Baulch, autora da tese Women, Gender and Fencing (“Mulheres, Questões de Gênero e Esgrima”), de 2005, pelo Programa de Estudos Femininos da Vanderbilt University, nos Estados Unidos. Aliás, a espada era algo tão precioso que tinha suas próprias etiquetas. Por exemplo: não podia ser desembainhada à toa e sua lâmina nunca poderia tocar o chão. Como só os nobres e cavaleiros a empunhavam, sua imagem associou-se a uma série de qualidades místicas, que acabavam por refletir o valor de um homem de acordo com o código europeu de honra. O efeito moral era tamanho que poucos júris, em especial os ingleses e franceses, condenavam duelistas, apesar do veto à prática em ambos os países.
A possibilidade de perdão extra-oficial, no entanto, não era suficiente para fazer as esgrimistas assumirem a identidade feminina em duelos e competições. Por conta do preconceito, exímias duelistas laçavam mão dos disfarces para poderem lutar. Viúva e jovem, a dama inglesa Mary Bingham, por exemplo, viu-se obrigada a defender sua propriedade e honra da cobiça de um tenente britânico no século 17. Vendo seus pedidos ignorados, travestiu-se de homem e desafiou o incauto militar para um duelo, fingindo ser o pai da senhorita ameaçada. No dia e hora combinados, além de vencer o oponente, desarmou o jovem inglês, revelando sua identidade e complementando a humilhação do moço com as seguintes palavras: “Por favor lembre-se: quando uma mulher diz não, é não mesmo”.
Um detalhe interessante é que as donzelas não usavam armas diferentes dos homens, até porque seria impensável forjar uma espada para mulheres, já que elas – em tese – não lutavam. “As espadas da Renascença não eram pesadíssimas como se imagina. Essa idéia de que pesavam 8 quilos, 10 quilos, 20 quilos é totalmente equivocada. No famoso Wallace Collection Museum, em Londres, que possui espadas originais de diversos períodos, não há nenhuma que pese mais de 3 quilos. Nos duelos, seguramente o peso máximo não ultrapassava a 2 quilos”, diz John Clements, diretor da Arma (sigla em inglês para Associação de Artes Marciais da Renascença). Outra peculiaridade da participação das mulheres nas lutas de espada é que elas eram mais mortais do que os homens. “Sabemos que entre 1589 e 1610, apenas na França, a capital dos duelos, mais de 10 mil pessoas morreram desta forma. Considerando que nos duelos femininos oito de cada dez terminavam em morte, enquanto que nos masculinos esta média caía para quatro, não é irreal afirmar que entre 200 e 500 dessas baixas eram de mulheres”, diz Suzanne Cherrin, professora da Universidade de Delaware, nos Estados Unidos, e especialista em Estudos Femininos.
Além de mais letais, as mulheres também eram mais cruéis. Menos afeitas a seguir as rígidas regras impostas pelo chamado “duelo de cavalheiros”, a moda entre as damas de espada era desfigurar o rosto da adversária. Isso porque uma cicatriz no rosto podia ser mais mortal para uma mulher do que a própria morte. “Os duelos femininos eram conhecidos por serem bem mais cruéis e impiedosos do que os masculinos. Nas lutas de espadas, elas costumavam untar as pontas das lâminas com substâncias que faziam cortes mais profundos e que infeccionavam na hora”, diz Cherrin. Não era só isso: as oponentes miravam exatamente os pontos que deixavam as piores deformidades.
Catarina, a escrimista
Como acontecia com todas as modas européias, os duelos femininos também chegaram à Rússia, só que de uma forma inusitada. Aos 15 anos, a princesa alemã Sophia Augusta Frederika Von Anhalt-Zerbst foi desafiada para um duelo de espadas por sua prima, Anna Ludwig Anhalt, da mesma idade. O motivo da briga perdeu-se no tempo, mas uma coisa é certa: se o duelo entre as adolescentes tivesse tido um final trágico, o mundo não viria a conhecer Sophia pelo nome que a imortalizou: Catarina, a Grande, a mais famosa tsarina russa. Sua escalada ao poder, em 1762, levou o embate feminino para o país que a adotou. Defensora dos direitos femininos, Catarina foi madrinha de vários duelos. “Só no ano de 1765 foram documentados mais de 20 duelos femininos na Rússia, isso considerando que os registros eram bastante irregulares e quase inexistentes fora das grandes cidades como São Petersburgo”, analisa Nina Alekceevna Ivanitskaia, especialista em História Russa da Universidade de Moscou. “Desses 20 duelos, a própria Catarina figurava como madrinha em oito.”
O reinado das espadas deixou de ser absoluto com a chegada das armas de fogo. Apesar dos primeiros registros de seu uso datarem de 1346, caíram no uso popular no século 16. E, na França do século 17, um duelo de pistolas entre duas damas entrou para a história. A condessa de Polignac desafiou a marquesa de Nesle. O motivo: o conde de Boulogne, amante de ambas. No pôr-do-sol as duas mulheres encontraram-se no bosque de Boulogne, em Paris, para o confronto mortal. Sem abrir mão dos babados, das amplas saias de tecidos nobres ou das cinturinhas de pilão mantidas à custa de espartilhos, elas concordaram com uma regra: a vencedora ficaria com o conde. Após o soar do primeiro tiro, apenas uma permaneceu de pé. Desfalecida, a marquesa de Nesle sangrava em abundância. Exultante, a condessa de Polignac conclamava a rival caída a levantar-se para terminar de sofrer as conseqüências de lhe roubar o amante. Um espectador ultrajado levantou a voz e pediu moderação nas palavras cruéis da dama. “Silêncio, jovem tolo. Não lhe cabe me dizer o que fazer”, foi a resposta da condessa, que saiu de cena vitoriosa. Ficou com seu conde, mesmo quando descobriu-se mais tarde que a marquesa havia sido apenas ferida no ombro. O duelo foi tão falado na época que atravessou fronteiras e chegou a ser publicado muito depois, em 1825, no popular tablóide inglês The Terrific Register.
A febre dos duelos – de espada ou de pistolas – caiu em desuso em toda a Europa após 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial e a mortandade que a acompanhou. A crescente onda feminista, em ascensão desde o século 19, acabou também tirando o interesse das mulheres pelo embate, já que surgiam aos poucos novas atividades antes impensáveis onde podiam testar suas habilidades. A herança desses tempos, contudo, permanece. Elas, que eram proibidas pelos gregos até de assistir aos Jogos Olímpicos sob pena de morte, estrearam como esgrimistas olímpicas em 1924, mostrando que sempre estiveram en guarde.

Caprichos de diva

No Quartier Latin, acantora de ópera Maupin fezfama com a espada
Vestida de homem, a cantora de ópera Mademoiselle de Maupin fez a sua fama de esgrimista nas ruas do boêmio bairro parisiense Quartier Latin. Nascida em 1673, na região de Armagnac, ela ficou conhecida por dois dons: a habilidade com a espada e a voz de diva. Com a mesma desenvoltura com que se apresentava na ópera de Paris, Maupin desafiava seus desafetos. A moça de olhos azuis e cabelos negros cacheados gostava de se vestir de homem e virou uma espécie de duelista profissional do famoso bairro. Comentava-se na corte que a filha do conde d´Armagnac era bissexual. E a culpa seria do pai dela, que permitiu que fosse treinada no manejo da espada desde criança. Sedutora e geniosa, Maupin colecionava amantes e inimigos,. Trajada como homem ou como dama da sociedade, desafiava todos os rapazes que a ofendiam. Em uma ocasião, decidiu ensinar uma lição a um colega da ópera, Duménil, ex-cozinheiro promovido a tenor que a incomodava com suas bravatas. Vestida de homem, chamou-o para um duelo na saída do teatro. Assustado, o cantor negou-se a lutar. Maupin então atacou-o, roubando-lhe o relógio e o dinheiro. No dia seguinte, a diva ouviu-o contar a todos no teatro como fora assaltado por três bandidos. Aproveitando a atenção pública, Maupin humilhou o colega ao revelar que os tais bandidos eram apenas ela mesma e devolveu seu relógio como prova. A duelista morreu com 32 anos, pouco tempo depois de ter decidido aposentar-se da ópera. Suas aventuras inspiraram o escritor Theophile Gautier em seu famoso romance Mademoiselle de Maupin, escrito em 1834.

O código das espadas

Os duelos começamsempre ao pôr-do-sol
Participar de um duelo não exigia só habilidade. Era preciso conhecer as regras: a parte ofendida devia desafiar a ofensora, esbofeteando o adversário com uma luva. O segundo passo era crucial: definir um padrinho (ou madrinha, no caso das mulheres) para cada duelista. Os padrinhos coordenavam a parte operacional do evento. Ou seja: determinar o local do duelo, que tradicionalmente começava ao pôr-do-sol e devia ser o mais isolado possível, verificar as armas e não raro até duelar entre si se a coisa esquentasse. Dependendo da ofensa, os duelos terminavam quando fosse derramada a primeira gota de sangue, quando um dos oponentes ficasse ferido e sem condições físicas de continuar a lutar ou, claro, quando alguém morresse. No caso de duelo de pistolas, os padrinhos definiam quantos tiros poderiam ser disparados e a quantos passos de distância.

Sempre guerreiras

As mulheresencaram a briga desdea Grécia antiga
A disputa violenta entre mulheres tem raízes muito antigas. A imagem mais forte vem de Roma, com a confirmação da existência das gladiadoras no Circo Romano. Há um relevo da época exposto no Museu Britânico, em Londres. Apesar de serem poucas e vistas como diversão exótica, elas incomodaram. Foram banidas em 200 a.C. pelo imperador Severus por virem de uma camada social elevada, ao contrário dos gladiadores, pobres ou servos. Mas os primeiros registros escritos de embates femininos são do historiador grego Heródoto, que falava de lutas com bastões entre mulheres, uma tradição que reunia multidões. Outras adeptas das disputas eram as vikings, que desafiavam os gigantes barbudos quando se sentiam lesadas. Só que eles, segundo suas leis, adotavam medidas especiais para tornar a briga justa: enfrentá-las enterrados em um buraco até a cintura ou lutar com o braço esquerdo amarrado nas costas.

Saiba mais

Livros
The Duel: A History of Duelling (“O Duelo: a História dos Duelos”), de Robert Baldick, Hamlyn Publishing Group,1965 - Coletânea interessante e divertida, com pesquisa caprichada, sobre os mais famosos duelos da história, incluindo o da condessa de Polignac contra a marquesa de Nesle
Gentleman’s Blood (“Sangue de Cavalheiro”), de Barbara Holland, Bloomsbury, 2003 - Sobre como a sociedade percebia as mulheres esgrimistas e as dificuldades em aprender a arte

Os sete mitos da conquista da América


Como poucas centenas de espanhóis submeteram milhões de índios, alguns tão desenvolvidos quanto as mais avançadas civilizações européias?

Beto Gomes
Nem bem o sol iluminou o lago Texcoco, no imenso Vale do México, os dois maiores líderes do Novo Mundo colocaram-se frente a frente. Era 8 de novembro de 1519 e havia anos que espanhóis e nativos se pegavam em violentas batalhas nas terras recém-descobertas da América. De um lado, Hernán Cortez personificava a figura do conquistador europeu como ninguém. Do outro, o todo-poderoso imperador asteca Montezuma II permanecia impassível. Apesar da expectativa de um encontro amigável, a tensão era tão óbvia quanto inevitável. Espanhóis e astecas trocavam olhares, até que Montezuma desceu de sua pequena tenda e foi em direção aos invasores. Cortez repetiu o gesto. Saltou do cavalo e seguiu ao encontro do imperador. A tensão aumentava a cada passo. Olhos nos olhos, eles esboçaram saudações de respeito mútuo, mas não trocaram mais do que poucas palavras, com a ajuda de um intérprete. De qualquer forma, a diplomacia prevaleceu. E, pacificamente, todos tomaram o rumo de Tenochtitlán, a capital do império asteca. Alguns meses depois, os dois lados voltariam a se encontrar. Mas, desta vez, numa sangrenta batalha que culminaria com a morte de Montezuma e faria de Cortez o homem mais poderoso do América espanhola.
Até hoje, muitos historiadores consideram este episódio como o maior símbolo do encontro entre dois continentes. E não por acaso. Pela primeira vez, um imperador nativo acolheu em suas terras o representante de um povo que estava ali justamente para conquistá-las. Além disso, as diferenças culturais entre os dois grupos nunca estiveram tão expostas quanto naquela manhã de novembro. Estas diferenças, além das idiossincrasias do século 16, ajudaram a perpetuar pelos séculos o que o historiador americano Matthew Restall, professor da Universidade da Pensilvânia, chama de “sete mitos da conquista espanhola das Américas” em seu livro Seven Myths of the Spanish Conquest (inédito em português)
Esses mitos podem ser identificados na figura de Cortez, até hoje citado por sua genialidade militar, pela forma como usou e inovou a tecnologia disponível na época, pela maneira astuta como manipulou “índios supersticiosos” e pelo modo heróico com que levou algumas centenas de espanhóis à vitória, contra um império de milhares de guerreiros. Mas a história não foi bem assim. Desde a primeira vez que Cristóvão Colombo pisou nas ilhas do Caribe, os homens enviados para cá se encarregaram de capitalizar o feito em benefício próprio, aumentando uma coisinha aqui, inventando uma ali.
Meia dúzia de aventureiros
O mito dos homens excepcionais e seus feitos extraordinários
Cristóvão Colombo estava em algum lugar do Atlântico, em 1504, quando a rainha da Espanha enviou uma esquadra para prendê-lo e levá-lo acorrentado para a Europa. Desde sua primeira viagem pelo Novo Mundo, seu prestígio já não era o mesmo. Sua insistência na mentira de que havia achado uma nova rota para as Índias, fato que lhe rendeu títulos e status, havia deixado a coroa espanhola irritada depois que Vasco da Gama contornou o Cabo da Boa Esperança e deu aos portugueses a liderança na corrida por um caminho mais curto para o Oriente.
A fama de Colombo estava irreversivelmente abalada, ele caiu em descrédito e tornou-se um pária. Mas como, depois de morto, ele se tornaria um herói? Para Restall, a idéia de que ele foi um visionário, um homem à frente de seu tempo surgiu durante as comemorações do tricentenário da descoberta da América, num país que também acabava de nascer: os Estados Unidos. Colombo foi tomado como símbolo dessa nova terra: aventureiro, destemido, um gênio a frente de seu tempo. “Mas a coisa mais espetacular sobre a visão geográfica de Colombo era a de que estava errada. A percepção de que a Terra era redonda, fato geralmente citado para imputar-lhe a condição de visionário, por exemplo, era comum a qualquer pessoa escolarizada da época”, diz Restall.
Esse é só um exemplo do mito de que a conquista da América só foi possível graças à coragem e à genialidade de meia dúzia de conquistadores e que surgiu desde os primeiros relatos dos colonizadores enviados à Espanha. Para obter a permissão de explorar novas terras, eles precisavam provar que a colonização era rentável e, para tanto, escreviam qualquer lorota: omitiam fatos, inventavam histórias, exaltavam a si mesmos. Hernán Cortez e Francisco Pizarro, responsáveis pelos tombos dos impérios asteca e inca, respectivamente, foram especialmente beneficiados por tais relatos e elevados à categoria de heróis. Biógrafos, cronistas e religiosos que participaram das expedições ajudaram a construir esta imagem, por meio das cartas enviadas à coroa, chamadas de probanzas de mérito (ou “provas de mérito”).
Pelo menos num ponto, porém, os relatos tinham razão: a desvantagem numérica dos espanhóis – fato que os levou a derrotas freqüentemente ignoradas nas tais probanzas de mérito. Como, então, os conquistadores conseguiram expandir seus domínios e subjugar milhares de nativos? A resposta não está na genialidade militar de Cortez ou Pizarro. Em nenhum momento eles apresentaram novas táticas de guerra e, na maior parte do tempo o que fizeram foi seguir rotinas adotadas em conflitos anteriores ao descobrimento. Uma das mais importantes foi a aliança com os nativos (que veremos mais adiante). Mesmo assim, eles não abriram mão de procedimentos igualmente eficientes, mas que nada tinham de inventivos: o uso da violência indiscriminada para intimidar os resistentes. Nos casos extremos, pessoas eram decepadas ou queimadas vivas em praça pública, tinham braços e mãos amputados e suas famílias recebiam seus corpos, o que costumava garantir a submissão de outros nativos.
Nem pagos, nem forçados
O mito de que os espanhóis que desembarcaram na América eram todos militares
A esquadra de Colombo mal aportou na praia da ilha de Hispaniola, no Caribe, e um grupo de soldados já estava perfilado na areia. Vestiam armaduras reluzentes, carregavam as mais potentes armas da época e aguardavam apenas a ordem de seu capitão para marchar em direção às terras do Novo Mundo. Disciplinados, estavam prontos para enfrentar o inimigo. Faziam parte de uma grande operação militar. Afinal, eram soldados. Esta cena jamais aconteceu, mas passa a idéia, constantemente repetida em filmes, ilustrações e livros, de que os conquistadores eram militares enviados pelo rei e faziam parte de uma máquina de guerra.
Mas, então, quem eram eles? Nobres aventureiros ou plebeus em busca da terra prometida? A rigor, nem uma coisa, nem outra. Em sua maioria, os espanhóis eram artesãos, comerciantes e empreendedores de pequeno porte, com menos de 30 anos de idade, alguma experiência em viagens desse tipo e sem qualquer treinamento militar. Armavam-se como podiam e entravam na primeira companhia que pudesse lhes render a quantia necessária para investir em outras expedições. Assim, poderiam acumular riquezas até receber as chamadas encomiendas – ou seja, o direito de cobrar taxas e impostos sobre a produção de uma determinada área conquistada e faturar em cima do trabalho de um grupo de nativos.
A maioria dos conquistadores não recebia ajuda financeira da coroa. Em geral, viajava por sua conta e risco em busca de status e dinheiro. Ou, no máximo, tinha um vínculo com eventuais patrocinadores, em nome dos quais as terras recém-descobertas eram exploradas. De qualquer forma, eles não eram pagos, tampouco obrigados a viajar. E muito menos soldados aptos a lutar pelos interesses da Coroa.
Guerreiros invisíveis
O mito de que poucos soldados brancos venceram milhares de guerreiros índios
Quando o conquistador Bernal Díaz de Castillo viu a capital asteca pela primeira vez, não conseguiu descrever a visão que teve do alto do Vale do México. A metrópole pontilhada de pirâmides, irrigada por canais navegáveis, engenhosamente construída para ser a referência de outras grandes cidades do império, poderia ser comparada às maiores capitais européias. Uma pergunta talvez lhe tenha surgido: como poucos de nós poderemos subjugá-la? Seguindo o mesmo raciocínio, como apenas centenas de europeus poderiam vencer os milhões de índios espalhados pelo continente? Nem a “genialidade” de seus líderes, a pólvora ou o aço espanhol dariam conta. Há algumas respostas para essas questões.
A primeira é que os espanhóis sempre foram minoria nos campos de batalha da América, mas jamais lutaram sozinhos. Os nativos nunca formaram uma unidade política, nem no caso de astecas e maias, que fosse imune às rivalidades e intrigas. E os conquistadores se aproveitaram, desde muito cedo, dessa desunião, conseguindo formar verdadeiros exércitos índios, dispostos a eliminar seus inimigos. Na primeira vez que Cortez chegou a Tenochtitlán, mais de 6 mil aliados davam cobertura aos espanhóis, que eram cerca de 200. Na batalha final, alguns meses depois, ele conseguiu reunir mais de 200 mil homens para tomar a capital asteca. “As pessoas tendem a imaginar que os povos americanos eram unidos em torno de uma identidade nativa. Na verdade, acontecia o contrário. Quando os espanhóis chegaram à América, encontraram várias tribos rivais, que não precisavam de mais que um empurrãozinho para entrar em conflito”, afirma Restall.
Além disso, no final do século 16, cerca de 100 mil africanos desembarcaram na América. A princípio, eles trabalhavam como serventes e auxiliares dos espanhóis, mas, sempre que necessário, recebiam armas para lutar contra os inimigos. Como recompensa, ganhavam a liberdade e logo eles também se tornavam conquistadores.
Sob a tutela do rei
O mito de que, em pouco tempo, toda a América estava sob jugo espanhol
Palavras de Cortez: “Deixei a província de Cempoala totalmente segura e pacificada, com 50 mil guerreiros e 50 cidades. Todos estes nativos têm sido e continuam sendo fiéis vassalos de Vossa Majestade. E acredito que eles sempre serão”. A carta de Cortez enviada ao rei da Espanha dá uma boa idéia de como funcionava a burocracia da conquista. Para o monarca, não bastava o conquistador encontrar uma terra e reivindicar o direito de explorá-la. Ele precisava convencê-lo de que aquela região era economicamente viável, de preferência com minas de ouro e prata, e contava com mão-de-obra para tirar dali tais riquezas. Como resultado, os líderes espanhóis não pensavam duas vezes antes de carregar seus pedidos com informações exageradas.
Essa combinação de fatores contribuiu para a criação do mito de que a conquista total dos povos americanos foi alcançada logo nos primeiros anos da presença espanhola. Muitas cidades, no entanto, resistiram à dominação durante décadas. No Peru, alguns estados independentes só foram dominados depois de 1570, após a morte de líderes como Túpac Amaru. Quando os espanhóis fundaram Mérida, em 1542, boa parte da península de Yucatán, na América Central, permaneceu sob a influência dos maias – e muitas políticas elaboradas por eles sobreviveram até 1880. A experiência espanhola na atual Flórida, nos Estados Unidos, foi ainda mais desastrosa. Pelo menos seis expedições foram enviadas para lá entre 1513 e 1560, quando a região finalmente foi controlada pelos europeus. Mas um dos exemplos mais curiosos vem da bacia do Prata, onde os fundadores de Buenos Aires, em 1520, viraram jantar de tribos canibais.
Outro aspecto que mostra que a conquista não foi total era a relativa autonomia que alguns nativos mantiveram em relação aos seus dominadores – condição sancionada pelos próprios oficiais espanhóis, que procuravam não intervir nas regras que vigoravam antes de eles chegarem. E não por acaso. Esta era mesmo a melhor forma de garantir a manutenção das fontes de trabalho e da produção agrícola. Além disso, membros da elite nativa participavam dos conselhos das cidades coloniais, onde eram tomadas as decisões mais importantes. Ou seja, além de continuar influenciando politicamente, eles mantiveram o status que tinham antes da descoberta.
As palavras de La Malinche
O mito de que a falta de comunicação levou ao massacre indígena
Foi na praça central da cidade inca de Cajamarca que Pizarro e Atahualpa se viram pela primeira vez, em 1532, numa espécie de versão peruana do encontro entre Montezuma e Cortez. Ao lado do conquistador, menos de 200 homens armados pareciam não temer os mais de 5 mil nativos leais ao imperador. E, de fato, eles não tinham porque se intimidar: a maioria dos locais não possuía uma arma sequer. O primeiro espanhol a se aproximar de Atahualpa foi um frei dominicano que segurava uma pequena cruz numa das mãos e a Bíblia na outra. Em poucos minutos, a batalha havia começado. Mas, apesar da desvantagem numérica, os invasores conseguiram dizimar um terço dos nativos. Atahualpa foi capturado.
Há várias versões sobre os motivos que causaram a briga e sobre como a batalha de Cajamarca começou. Francisco de Jerez, presente no local, escreveu que o imperador atirou a Bíblia ao chão, porque não a entendia. A blasfêmia teria sido o motivo para Pizarro dar o sinal de ataque. Na versão inca, no entanto, a ofensa partiu dos espanhóis, que teriam se recusado a tomar uma bebida sagrada oferecida por Atahualpa.
É praticamente impossível saber o que aconteceu de fato naquele dia, mas o encontro sangrento entre incas e espanhóis é um bom exemplo de como as supostas falhas na comunicação serviram para justificar as ações dos europeus e, por conseqüência, a própria conquista. Mas estas falhas não eram tão freqüentes assim. O diálogo entre Montezuma e Cortez, por exemplo, apesar de ter gerado diferentes interpretações, mostra que os dois lados podiam se entender muito bem. Isso graças a uma figura central durante todo o processo de colonização: os intérpretes. O papel deles foi tão importante que um dos principais procedimentos de guerra era justamente encontrar e “formar” tradutores. Alguns destes tradutores se deram tão bem que alcançaram status inimagináveis para um nativo. Receberam encomiendas e chegaram a ser citados nas cartas enviadas ao rei. O exemplo mais famoso é o de La Malinche, a amante e intérprete que acompanhou Cortez durante anos e esteve presente no encontro com Montezuma.
O fim dos índios
O mito de que a conquista só trouxe desgraça para os nativos
A derrota de Cortez era inevitável. Havia horas que ele e seus guerreiros lutavam contra a união de três exércitos inimigos na grande praça central de Tlaxcala, uma comunidade nativa aliada aos espanhóis, e a derrocada do conquistador se aproximava a cada golpe. Finalmente ele seria vencido. E foi mesmo. Ainda no chão, Cortez pôde ouvir os aplausos efusivos da platéia. Aquela encenação do dia de Corpus Christi ficou conhecida como o evento teatral mais espetacular e sofisticado do ano de 1539. Numa curiosa inversão de papéis, o conquistador interpretou o Grande Sultão da Babilônia e Tetrarca de Jerusalém. O papel dos reis da Espanha, Hungria e França ficou com os nativos da comunidade.
O Corpus Christi de Tlaxcala não foi o único festival do século 16 no Novo Mundo. A imensa maioria das colônias da Mesoamérica e dos Andes encenou, dançou e até representou as batalhas contra os espanhóis. Muitas dessas manifestações culturais sobrevivem até hoje. Mas o curioso é que o objetivo não era reconstruir a conquista como algo traumático. Ao contrário. Para os nativos, os festivais significavam uma celebração de sua integridade e vitalidade cultural. “Eram eventos que transcendiam aquele momento histórico particular e não estavam associados à lembrança de algo ruim. Até porque o sentimento de derrota não era algo comum a todos os povos nativos”, afirma Restall.
Manifestações desse tipo eram apenas uma das formas pelas quais os nativos mostravam que o impacto da conquista não foi tão traumático quanto sugere boa parte da retórica comum. Muitas comunidades mantiveram seu estilo de vida e outras tantas evoluíram rapidamente com a necessidade de se adaptar às novas tecnologias e demandas trazidas pelos espanhóis. Aprenderam novas formas de contar, construir casas, planejar cidades e, sobretudo, guerrear. Assim, houve nativos que enriqueceram com o comércio de alimentos e com o aluguel de mulas. O povo Nahua, por exemplo, depois de lutar ao lado dos espanhóis por anos, organizaram campanhas militares próprias e expandiram seus domínios para além das terras onde hoje estão Guatemala, Honduras e parte do México.
Macacos e homens
O mito da superioridade e da predestinação dos europeus
“Os espanhóis têm a governar estes bárbaros do Novo Mundo. Eles são em prudência, ingenuidade, virtude e humanidade tão inferiores aos espanhóis quanto as crianças são para os adultos, e as mulheres, para os homens”, escreveu o filósofo Juan Ginés de Sepúlveda, em 1547. O mito da superioridade espanhola é visto em todos os relatos do período colonial. Para Restall, ele vem desde as primeiras expedições e está ligado à justificativa de que os europeus tinham a aprovação divina para conquistar novas terras. Eles acreditavam que eram os escolhidos de Deus, os encarregados de levar o cristianismo a outros povos.
Existem outros fatores, no entanto, que ajudaram a perpetuar este mito. Um deles combina a crença de que os nativos seriam incapazes de evitar a invasão dos europeus porque eles (os nativos) também acreditavam que os espanhóis eram deuses. De fato, os povos americanos enxergavam os conquistadores como seres poderosos, mas em nenhum momento – nem mesmo nos relatos dos cronistas do período colonial – os nativos comparam os espanhóis a seres supremos, ou deidades. Além disso, a diferença brutal entre as armas dos dois grupos também ajudou a construir a idéia da superioridade espanhola.
Mas Deus não foi o principal aliado dos espanhóis. A expansão dos europeus só foi possível graças a três fatores. O primeiro e mais determinante foram as doenças que os estrangeiros trouxeram. Sem oferecer nenhuma resistência para varíola, sarampo e gripe, os nativos morreram tão rápido que em poucas décadas tribos inteiras foram extintas. O impacto das epidemias foi tão devastador que, um século e meio após a chegada de Colombo, a população de nativos havia caído mais de 90%. Os astecas sentiram o poder desses males. “As ruas estavam tão cheias de gente morta e doente que nossos homens caminhavam sobre corpos”, escreveu o padre Bernardino de Sahagún, quando os conquistadores tomaram Tenochtitlán.
O segundo aliado foi a desunião dos nativos. A rivalidade entre diferentes grupos étnicos e intrigas entre vizinhos levou dezenas de milhares de pessoas a lutarem ao lado dos espanhóis. As armas que os conquistadores trouxeram para estas batalhas são o terceiro fator mais importante. Nas primeiras expedições, várias delas fizeram diferença. Cavalos e até cachorros acabaram entrando nos campos de batalha. Mas a mais eficiente foi mesmo a espada, mais longa e resistente que os machados dos nativos. No campo da guerra, Matthew Restall considera ainda um outro fator. Os nativos lutavam em sua própria terra. Precisavam, portanto, proteger a família, defender suas casas, pensar no plantio, calcular a colheita e fazer o possível para não deixar que a guerra prejudicasse e interferisse no seu dia-a-dia. Por isso, eles sempre estiveram mais dispostos a negociar e a protelar os confrontos com os conquistadores. Já os espanhóis não tinham muito a perder. Basicamente, precisavam se preocupar apenas com suas próprias vidas. E com o que teriam de fazer para continuar conquistando novas cidades e acumulando mais riquezas.

Saiba mais

Livro
Seven Myths of Spanish Conquest, Matthew Restall, Oxford University Press, 2004 - O autor, professor da Universidade da Pensilvânia, é um dos maiores especialistas mundiais em culturas pré-colombianas