terça-feira, 5 de março de 2013

Amor em cativeiro


Laços afetivos e relações de parentescos eram muito comuns entre escravos, apesar de haver muito mais homens que mulheres

Marcia Amantino e Jonis Freire
Na gravura de Rugendas, moradia de negros (1835). No Brasil imperial, as relações de parentesco entre os cativos foram muito comuns e permitiram até alguns espaços de autonomia. (Biblioteca Nacional Alemanha)
Na gravura de Rugendas, moradia de negros (1835). No Brasil imperial, as relações de parentesco entre os cativos foram muito comuns e permitiram até alguns espaços de autonomia. (Biblioteca Nacional Alemanha)

A imensa maioria dos negros trazidos para o Brasil para servirem de escravos era formada por homens com idades entre 15 e 40 anos vindos de diversas partes da África. Essa enxurrada desigual de homens escravizados levou a um alto desequilíbrio entre o número de homens e mulheres e suas idades, e mexeu, entre outras coisas, com os relacionamentos sexuais, a formação de famílias e o casamento no Brasil Imperial.
A sociedade brasileira do século XIX convivia diariamente com uma infinidade desses homens nos campos, nas ruas, dentro de suas casas e comércios e sabia o quanto eles eram importantes para a economia e para a vida do Império. Havia um uso generalizado de escravos em praticamente todas as atividades no Brasil e sua distribuição geográfica e social também foi bastante extensa, indo desde a família mais abastada com centenas, até a mais humilde, com apenas um ou dois. Em alguns casos, até mesmo escravos conseguiam dinheiro e tratavam de comprar um para si.
A preferência pelos escravos africanos homens adultos, em relação às mulheres e crianças, foi influenciada pelos mercados africano e brasileiro. Enquanto os compradores islâmicos levavam as mulheres para as regiões do Oriente – onde serviam como concubinas, realizavam trabalhos domésticos e em alguns casos, tornavam-se esposas –, os compradores brasileiros, interessados em mão de obra para trabalhos na agricultura, preferiam os homens.
O resultado previsível foi que, com exceção de algumas fazendas e nas propriedades ligadas às ordens religiosas, aquelas que se destinavam à grande exportação mantinham um elevado percentual de homens. Isto influenciou alguns padrões sociais da vida daqueles cativos. O casamento ou as uniões não sacramentadas pela Igreja, por exemplo, não eram acessíveis a todos os homens já que esses suplantavam o número de mulheres. Mas isso não significa que os laços afetivos entre cativos foram efêmeros ou exceções. Muito menos que por conta dessa desproporção sexual, haveria uma promiscuidade entre aqueles homens e mulheres. Até algum tempo atrás parte dos historiadores acreditava que por não haver mulheres para todos os homens, as relações sexuais entre os cativos não tivessem regras e limites.  Hoje, sabe-se que as relações de parentesco entre os cativos foram muito comuns e permitiram alguns espaços de autonomia dentro daquele sistema como, por exemplo, a alforria, o trabalho especializado, o acesso a terra e as senzalas individuais. Óbvio que estes ganhos não transformavam a vida no cativeiro em algo mais fácil ou menos cruel.   
Havia aqueles que por diversos motivos não aceitavam a escravidão ou pelo menos, não aquela que estavam vivendo e, quando conseguiam, fugiam para outras localidades ou para quilombos. Era inevitável que este número elevado de escravos também aparecesse nos jornais como mão de obra, mas também como criminosos, infratores e mesmo como fugitivos.
Apesar de haver mais escravos homens que mulheres, elas foram a maioria dos alforriados ao longo do período escravista. Condições diferenciadas de cativeiro, sobretudo nas áreas urbanas, mas não só, teriam possibilitado a elas conseguir suas liberdades e até mesmo a de outros parentes. As estratégias empreendidas por essas mulheres foram muitas, destacando-se as atitudes individuais ou coletivas formando laços de parentescos capazes de auxiliar na hora de uma possível compra da alforria. Era relativamente comum que pais ou avós, após conseguirem suas alforrias, angariassem fundos para libertar algum familiar.
As relações sexuais mantidas com senhores ou outros proprietários também foram uma das muitas formas de obtenção da liberdade para elas ou para seus filhos, muitos deles frutos de relacionamentos com seus senhores. Essa realidade pode ser constatada em testamentos, registros de batismo e em diversos tipos de documentos onde senhores afirmavam ou reconheciam a paternidade. Alguns destes documentos traziam à tona os relacionamentos entre esses indivíduos e, em alguns casos, os senhores declaravam a alforria de um filho.
Foi o que aconteceu no dia 14 de junho de 1809, na freguesia de Nossa Senhora das Neves do Sertão de Macaé – hoje apenas Macaé (RJ) – quando foi batizado Valdevino, pardo, filho de Custódia, escrava de José Ferreira Maya. Contudo, o sacerdote declarou naquele ato católico que José Ferreira Maya era viúvo e que dava liberdade a Valdevino, pois a dita criança era seu filho, o qual reconhecia e dava plena liberdade como se tivesse nascido de ventre livre. No fim do registro de batismo, o senhor Maya assinou junto com o pároco alforriando Valdevino. 
Caso semelhante aconteceu na mesma localidade. Aos 29 dias do mês de dezembro de 1846, foi batizada Ludgeria, parda liberta, com cerca de um ano de idade, filha natural da preta Roza, escrava de Manoel Gomes Braga, que concedeu a liberdade a Ludgeria a partir daquele momento e para todo o sempre. A leitura do registro permite saber que Braga vendeu a liberdade daquela menina ao seu verdadeiro pai, João José de Asevedo, homem livre, que diante do padre e das demais testemunhas ali presentes, afirmou que reconhecia a dita Ludgeria por sua filha, como se nascesse de legítimo matrimônio, e que por ser verdade a mesma era sua legítima herdeira.
                                    
Marcia Amantinoé professora na Universidade Salgado de Oliveira, e autora de O Mundo das feras: os moradores do sertão oeste de Minas Gerais, século XVIII (Annablume, 2008).

Jonis Freireé professor Universidade Salgado de Oliveira, e autor da tese Escravidão e família escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista(Unicamp, 2009).

Saiba mais - Bibliografia
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, séculos XVIII-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
KLEIN, Herbert S. e LUNA, Francisco Vidal. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp / Imprensa Oficial, 2010.
SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Campinas: Ed. Unicamp, 2011.



Nenhum comentário:

Postar um comentário