terça-feira, 5 de março de 2013

Vício, pecado ou direito?


Da Colônia para o Império, o lazer sai de casa, se distancia do trabalho e copia a França

Mary Del Priore
Seja na época colonial como na imperial, as visitas sempre significaram um tempo de lazer e entretenimento, como na gravura de Debret, "Visita a uma fazenda". (Fundação Biblioteca Nacional)
Seja na época colonial como na imperial, as visitas sempre significaram um tempo de lazer e entretenimento, como na gravura de Debret, "Visita a uma fazenda". (Fundação Biblioteca Nacional)
No seu PequenoElucidário de Palavras, de 1789, o padre Joaquim Viterbo ignorou o termo “lazer”. Do latim licere, lazer significava “ser permitido”. A palavra expressava o estado no qual era permitido a qualquer um fazer qualquer coisa. Nos primeiros séculos da Colônia, o lazer era algo negociado nas brechas de uma existência provisória. Já no Império, houve uma maior permissividade. Era, então, autorizado ao homem se divertir. Claro que com uma forte influência, se não uma imitação, dos hábitos franceses.
Enquanto o Brasil foi uma colônia de exploração, o tipo de atividade predatória que aqui se desenvolvia impunha o trabalho compulsivo. O envolvimento de quase todos os atores sociais com a luta pela sobrevivência se somou à mobilidade das populações, à precariedade de suas vidas e ao convívio com uma massa de escravos, deixando pouco tempo para “qualquer um fazer qualquer coisa”. Além disso, o cristianismo zelava pela observância de preceitos, dentre eles, o combate ao ócio. Comer o pão da preguiça era cometer um dos sete pecados capitais.
Neste mundo disperso, precário e rural, visitas eram sempre esperadas ao longo do dia. As dos mascates, então, aguardadas ansiosamente. Recebiam-se, também, moradores da vizinhança. Durante a estação da colheita, gente das fazendas próximas vinha aos engenhos ajudar a catar frutas. Quando o calor se tornava insuportável, estendiam-se esteiras no chão e os convivas se sentavam à volta da mesa improvisada. Danças depois das refeições permitiam alguma familiaridade entre rapazes e moças, que viviam trancadas a sete chaves.
“Praticar a boa conversação” era forma comum de entretenimento. Mexericar era, sim, uma forma de distração. E tão comum que havia mesmo uma lei, nas Ordenações Filipinas do século XVII, que proibia o diz-que-diz.
Outra prática que reunia as pessoas, mas que era considerada pelos estrangeiros de passagem pelo Brasil como “repugnante”, era a do cafuné: “Catar ou fingir catação de piolhos e lêndeas é uso utilitário e processo prolongador de êxtase e preguiça, em quase todo o mundo”, explicou o folclorista Luís da Câmara Cascudo.
Desde os tempos coloniais, a presença de baralhos, tabuleiros de xadrez e gamão nos inventários e testamentos confirma a vontade de reunir e se divertir com familiares ou amigos. Ao final do século XVIII, nos arredores de São João Del Rei, entre os bens apreendidos do inconfidente José Ayres Gomes constava um tabuleiro de gamão e um de dados, ou seja, jogava-se, e muito. Estavam na moda: bilhar, dados, gamão, carteado. Baralhos com pinturas coloridas se tornaram febre.
À volta das mesas – poucas – ou no chão, sobre esteiras, comum também era o jogo das pedrinhas, o Bato, vindo de Portugal. Usando seixos ou ossos, jogados sucessivamente ao ar até serem todos reunidos num montinho, era o passatempo de adultos e crianças.
Ao final de um dia de trabalho e depois de rezar as ave-marias, mulheres reuniam-se para “fiar ao serão”, velha tradição portuguesa que se valia do trabalho em torno das rocas. Cantar “cantigas honestas”, evitando as difamatórias, também era permitido. Nos sobrados urbanos ou nas fazendas, o entardecer era o momento em que mucamas e rapariguinhas ouviam à volta da mesa de costura ou nas lides da cozinha a senhora lhes contar histórias extraídas da Bíblia Sagrada.
Descia a noite sob a melodia simples e monótona de versinhos ou do canto da gente da casa. Sentavam-se todos à volta da mesa e começava a conversa animada. Nela, os assuntos prediletos eram a lavoura, as chuvas e a estiagem. A política era assunto para os jornais que começam a ser publicados a partir de 1808.
No império, houve uma separação mais clara entre o trabalho e o momento em que as pessoas se divertem. Além disso, na primeira época do reinado de D. Pedro II até a Guerra do Paraguai, ainda se copiavam tanto os esplendores do Segundo Império francês quanto os costumes. Nos diferentes bairros, proliferavam Sociedades com títulos preciosos: Vestal, Sílfide, Ulisseia. A dupla piano & charuto torna-se inseparável: a mocidade abandonara o rapé, preferindo olhar a fumaça com volúpia. Enquanto o fumo era o sonho dos rapazes, a jovem atacava uma valsa no piano. Lia-se Byron, solfejavam-se óperas como Nabuco ou Otelo. O Catete, “o bairro do bom-tom, da elegância, do espírito, da aristocracia – o faubourg Saint-Germain do Rio de Janeiro”, tinha salões onde ecoavam canções em francês. Tudo era pretexto para reuniões e encontros. O tempo de festa do Natal, segundo Padre Perereca, era o mais propício para os jovens. Nele se pescavam amores novos e começavam namoricos para o ano inteiro. Nele se organizavam jogos de prendas, cantavam-se modinhas e fazia-se muito barulho. “E acabado tudo, cada um vai para seu ninho murmurar e desenferrujar a língua à custa dos amigos”, anotava, maldoso.
Outro momento de lazer era o dos banhos de mar. “É divertido verem-se as moças e os rapazes brasileiros correndo pela praia, soltando gritos de prazer toda vez que uma onda mais pesada rola por cima de um grupo e os atira cambaleando sobre a areia”, contam os missionários anglicanos Kidder e Fletcher, em 1851, sobre as praias. As estreitas ruas das capitais, até finais do século, ruas como a do Ouvidor, por exemplo, tinham seu papel de mediadoras de amores. Até Machado de Assis escreveu contra o seu alargamento: “se a rua ficar mais larga para dar passagem a carros, ninguém irá de uma calçada a outra, para ver uma senhora que passa – nem a cor de seus olhos, nem o bico de seus sapatos, e onde ficará em tal caso o ‘culto do belo sexo’ se lhe escassearem os sacerdotes?”. O flirt, palavra que aparece no início deste século para designar amores mais ou menos castos, era feito nas ruas principais de cada cidade.
Nessa época, o lazer masculino se fazia cada vez mais fora de casa: cafés, livrarias e cocottes estavam a seu dispor nas ruas e nascia a imagem do flâneur a percorrer as ruas da Corte. Livro nas mãos, o “gamenho” – nome que se dava ao almofadinha ou ao dandy – dirigia-se para os principais pontos de encontro, então: os cafés-literários ou o “cafedório” como eram chamados na Belle Époque. No Café Jeremias ou na Americana reuniam-se os “rapazes instruídos”. Já no Papagaio, os frequentadores só consumiam café. Não tinham dinheiro para a “virgem loura” – a cerveja – e muito menos para o uísque, bebida que começava a se incorporar aos hábitos urbanos e mundanos. Outro ponto de predileção das celebridades eram as confeitarias Colombo e Pascoal. Ali se consumia a “musa” ou “fada verde”, o absinto, e devoravam-se empadas com apetite.
E finalmente, a ópera – introduzida por D. Teresa Cristina, esposa de D. Pedro II – e os teatros, que tinham se multiplicado durante o Segundo Reinado, também estimulavam formas de sociabilidades, lazer e – por que não? – namoros à distância: um código de olhares por sobre os leques, o ruge-ruge de tafetás e sedas entre frisas e camarotes, pois as moças se sentavam e levantavam para exibir suas toilettes, os trajes especialmente encomendados para a ocasião, o rubor das faces, resposta a um olhar masculino mais prolongado. Encontros e conversas tinham início em passeios a cavalo, piqueniques, ou nos bailes que se seguiam à formatura geral das tropas militares. Eram comuns as recepções com representações particulares de teatro, com jovens a encenar os papéis importantes.
Da Colônia, onde a representação sobre o lazer fabricava-se, ainda contaminada pelo mundo do trabalho e, enquanto sinônimo de preguiça, passou-se a uma outra. A do lazer, descolado da casa, da família e dos amigos. A do lazer de rua e de consumo. A representação sobre o lazer deixa de estar articulada com a noção de possibilidade – “ser permitido fazer algo” – para se tornar a expressão de uma liberdade. Ela se transforma no tempo de que se pode dispor, não mais dentro, porém fora do mundo do trabalho. Não mais surrupiado em meio a tarefas e responsabilidades cotidianas, domésticas e familiares, mas quase um direito. Lazer passa, então, a ser sinônimo de distração, de tempo para si, de algo que é dado para ser desperdiçado em descanso e em repouso, dentro ou fora de casa. Com um detalhe: os lazeres masculinos encontravam-se, no decorrer do século XIX, portas afora. E o feminino, ainda portas adentro. A vida pública foi uma conquista mais lenta para as mulheres.

Mary Del Prioreé professora da Universidade Salgado de Oliveira e autora de Histórias Íntimas: erotismo e sexualidade na história do Brasil (Planeta, 2011).

Saiba mais - Bibliografia
Bittencourt, Anna Ribeiro de Góes. Longos serões no campo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
Graham,Maria. Diáriode uma viagem ao Brasil. São Paulo: Brasiliana, Editora S/A, 1956.
NOVAIS, Fernando A. (dir.). Históriada vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,1998, 1999, 2000 (coleção em 4 volumes).
Oiteiro, Madalena Antunes. Memóriasde uma sinhá moça. Natal: A.S. Editores, 2003

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