terça-feira, 5 de março de 2013

A minha vida dos outros - Texto da Revista de História


Da Grécia antiga até o século XIX, a humanidade inventou e reinventou a privacidade

Rodrigo Elias
Manuais de etiqueta assinalam mudanças na percepção da vida social no século XIX. Modos mais discretos, por exemplo, ocorrem na prática do galanteio, como expressa o traço de Goujean.(Fundação Biblioteca Nacional)
Manuais de etiqueta assinalam mudanças na percepção da vida social no século XIX. Modos mais discretos, por exemplo, ocorrem na prática do galanteio, como expressa o traço de Goujean.(Fundação Biblioteca Nacional)
Manuais de etiqueta assinalam mudanças na percepção da vida social no século XIX. Modos mais discretos, por exemplo, ocorrem na prática do galanteio, como expressa o traço de Goujean.(Fundação Biblioteca Nacional)
Um pequeno livro publicado no Brasil há pouco mais de dez anos, chamado Esses livros que se lêem com uma só mão, do francês Jean-Marie Goulemot, revela o que seria o modelo oculto de toda narrativa literária moderna. O escrito pornográfico, lido no espaço supostamente indevassável da privacidade, levava ao ápice as sensações corporais do leitor, que deveria estar longe dos olhares da comunidade ou, no caso, das proibições do Estado e da Igreja. Esta clara divisão entre o domínio do público e o lugar da intimidade (neste caso, as sensações do próprio corpo) demarca claramente uma oposição entre as noções de público e privado que vemos florescer ao longo do século XIX.
Foi o historiador francês Philippe Ariès quem, formalmente, na década de 1980 inspirou os estudos mais recentes sobre o que convencionamos chamar de história da vida privada. Não que as questões de foro íntimo estivessem totalmente ausentes dos interesses de estudiosos do passado antes disso – como provam, inclusive no Brasil, estudos de um Gilberto Freyre ou de um Alcântara Machado. Ariès e os seus continuadores estiveram, entretanto, preocupados em delimitar um campo específico de estudos que levasse em consideração dois fenômenos paralelos no tempo e no espaço. Em primeiro lugar, o surgimento de um novo padrão de convivência social, não mais identificado com a vida na rua, na igreja e na praça, mas no interior de um espaço propriamente privado – a família nuclear consolidada no ocidente industrial, dita “burguesa”. Em segundo lugar, e de forma concomitante, estabelecia-se o Leviatã, isto é, o Estado Moderno, com a sua vontade de controlar tudo e todos, mas ao qual acabava escapando alguns aspectos: a vida particular, o âmbito propriamente privado da existência individual.
Com algumas nuances, na Europa e nas regiões sob sua influência direta, até boa parte da Época Moderna a vida das populações era controlada, em todos os seus aspectos, pelos olhos da comunidade – só era possível existir, dentro de uma concepção corporativa e hierárquica de sociedade, estando diretamente relacionado a outros membros da comunidade. Daí a rígida observação dos compromissos de irmandades religiosas ou o cumprimento absoluto das normas contidas em constituições de corporações de trabalhadores, como a dos sapateiros, dos ferreiros e até mesmo nos códigos de conduta dos ladrões – isto era, pelo menos, o esperado pelos guardiões da ordem. Afinal, não se podia fazer parte do corpo de Cristo estando totalmente separado dos seus outros membros. Todos eram conhecidos, ninguém era anônimo.
Para se ter uma ideia da ausência de um espaço legalmente privado – e, portanto, isolado dos olhares da vizinhança e dos agentes públicos –, processos inquisitoriais que caracterizavam o crime de sodomia perfeita (cópula anal com derramamento de sêmen) contavam com oitivas de testemunhas – ou seja, as condições de privacidade do casal “criminoso” eram tão precárias que permitam o testemunho de terceiros em seus mínimos detalhes. Alcovas sem portas, cômodos coletivos, adros de igrejas, beira de caminhos: espaços físicos se confundiam entre os olhares atentos dos vizinhos e uma, às vezes, imprudente ilusão de privacidade.
 Domenico Scandella, ou Menocchio, o moleiro italiano do século XVI que teve sua vida e suas ideias magistralmente perscrutadas por Carlo Ginzburg em O queijo e os vermes, desenvolveu um modo de vida e uma visão de mundo absolutamente desconectada de sua comunidade, seus senhores políticos e religiosos – o que incluía acreditar que os anjos e os homens surgiram espontaneamente da Terra, assim como os vermes brotam do queijo podre.  Seu destino não foi outro senão a fogueira.
A noção de indivíduo, que possui a sua personalidade e os seus direitos, começa a se consolidar definitivamente, em ambientes urbanos, a partir do século XVIII – a individualidade da autoria, ou seja, a ideia de que a cópia de alguma obra de arte ou literária de uma pessoa por outra constitui plágio é algo que só ficará claro no século XIX. Ao longo dos séculos anteriores, entretanto, com o crescente poder do Estado, com todo o seu aparato burocrático e policial, assim como a vigilância das autoridades religiosas – incitadas por católicos ou protestantes em busca dos desviantes da fé –, homens e mulheres passaram a buscar a liberdade criando uma outra dimensão da existência social: a vida privada. Práticas de leitura e escrita, os hábitos domésticos, a família conjugal, o amor romântico, o novo lugar das mulheres nas relações de gênero e a invenção da infância ocupam lugar central nesta diferenciação entre o que compete ao pai de famíliae aquilo que está sob tutela estatal.
A soberania privada no âmbito doméstico não é, seguramente, uma invenção burguesa no ocidente. Já Aristóteles mencionava os direitos do pater familias sobre os seus bens. Seu testamento, que chegou até nós e não é nem um pouco extravagante em relação aos seus concidadãos, deixa isto bem claro ao dispor da vida da esposa, dos filhos, das casas e dos escravos. A vida pública, ou política, como sabemos, era privilégio, na Atenas do período Clássico, dos cidadãos – o que não incluía homens sem propriedades, menores, escravos e mulheres.
A Idade Média e a Época Moderna, que viram emergir o poder político da Igreja e, mais tardiamente, dos Estados, viu também este espaço da privacidade diminuir, ao ponto em que chegamos ao período colonial, deste lado do Atlântico, com estes limites consideravelmente diluídos. Sobre os comportamentos e as consciências que pudessem destoar das ortodoxias cristãs, as polícias eclesiásticas exerciam uma quase sempre eficaz vigilância em todos os espaços, indistintamente. O controle direto sobre os corpos e que designaríamos mais tarde como “propriedade fundiária” cabia exclusivamente às máximas autoridades políticas – o rei era o proprietário do seu reino e senhor dos seus súditos. Antes da generalização de uma noção de propriedade privada da terra, que vai acontecer na Idade Moderna, a terra pertencia legalmente às cabeças coroadas, e eram apenas concedidas temporariamente aos seus administradores.
A necessidade de uma existência face-a-face, típica do período pré-industrial, é satisfeita com o surgimento da sociabilidade contemporânea, com os seus salões eruditos onde se recitava poesia e se ouvia quartetos de cordas, os restaurantes – que surgem no início da Época Moderna mas viram uma verdadeira febre no século XIX –  e os teatros que são ampliados e reformados, atingindo seu ápice na Belle Époque.Os manuais de civilidade ou etiqueta, um tipo de literatura muito comum na Época Moderna, que buscava preparar os indivíduos para esta nova vivência cotidiana, mostra a mudança na percepção da vida social. Se, no período anterior, beliscar o traseiro de uma mulher era um símbolo de interesse amoroso, reconhecido publicamente, a corte civilizada praticamente abolia o contato físico direto, e prescrevia modos mais discretos, como um olhar ou um gesto com o chapéu. Neste mesmo movimento, resguarda-se para o âmbito familiar um anonimato antes impensável.
O Estado, por sua vez, continuava a devorar a existência material da maior parte das populações, desta vez em favor do capital burguês industrial – o liberalismo, que vai ganhar lugar frente às inconciliáveis divergências de projetos de Estado na Europa assolada por nacionalismos conflitantes, vai criar uma ilusória vida pública de liberdades igualitárias (com exceção das mulheres, evidentemente). Mas vaitransferir para determinados segmentos sociais, privadamente, os “excedentes” dos pobres – como bem notou o jovem Karl Marx na década de 1840, escrevendo paraa Gazeta Renana, sobre a transformação do furto de lenha em “roubo qualificado” (na verdade, uma prática tradicional dos camponeses, colher lenha na floresta, outrora de uso comunitário – ou público – para se aquecer no inverno).
Público e privado, ao longo do século XIX, no Brasil ou alhures, acabaram se tornando concepções distintas – não apenas nos estudos históricos e sociais, mas na vida. Entretanto, quem chegou a controlar o público tornou-o seu privado. Por outro lado, o cidadão particular, aquele que não tem ao seu lado um poder de polícia, tem visto, desde então, o que é seu tornar-se, amiúde, público.

Rodrigo Eliasé professor das Faculdades Integradas Simonsen e pesquisador da Revista de História da Biblioteca Nacional.

Saiba Mais - Bibliografia

ARIÉS, Philippe. “Por uma história da vida privada”, in CHARTIER, Roger. Da Renascença ao Século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (História da Vida Privada, vol. 3).
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os VermesO cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
GOULEMOT, Jean-Marie. Esses livros que se lêem com uma só mão. Leitura e leitores de livros pornográficos no século XVIII. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.
MACHADO, Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.



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