segunda-feira, 19 de maio de 2014

Orixás, forças de Olorum

Na tradição iorubá, os orixás são entidades sobrenaturais, forças da natureza emanadas de Olorum, uma das divindades da criação. Guiam a consciência dos vivos e protegem as atividades de manutenção da comunidade. No Brasil, as religiões que cultuam os orixás jeje-iorubanos recebem os nomes regionais de candomblé (Rio de Janeiro), xangô (Pernambuco e Alagoas), tambor de mina (Maranhão e Pará) e batuque (Rio Grande do Sul). Os principais orixás cultuados no Brasil são:
OxaláNome brasileiro do orixá Obatalá, emanação direta de Olorum. É o criador da humanidade e sua função é dar forma aos humanos ainda no ventre materno. Sua cor é o branco, seu símbolo o cajado e seu dia é sexta-feira.
IemanjáGrande orixá feminino das águas, reverenciada no Brasil como mãe de todos os orixás. Sua festa é no dia 2 de fevereiro, mas é muito homenageada na noite de 31 de dezembro nas praias do Rio de Janeiro, principalmente. Um de seus símbolos é um colar de contas cristalinas como água. Seu dia é sábado e sua cor é o azul.
 Fonte: Revista de História

Bahia de todas as Áfricas

A trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século XIX revela que a história das religiões afro-brasileiras é, sobretudo, a de crescente mistura étnica e social

João José Reis
Foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradição, o Ilê Iya Nassô – a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas identidades africanas em terras brasileiras.
Mas teria sido aquele terreiro o único com essas características no ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a história das religiões afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os indivíduos e grupos envolvidos. É a respeito de líderes, acólitos, devotos e clientes que vamos falar aqui. Informações sobre homens e mulheres participantes de formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de fontes, os registros policiais e as notícias de jornal. Esses documentos eram produzidos por indivíduos que, em geral, não eram iniciados no candomblé, não tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade ou lazer, e que o estavam perseguindo e/ou condenando. Por isso, as informações que apresentam são quase sempre incompletas, distorcidas ou simplesmente equivocadas. Apesar disso, elas revelam muito das práticas e dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do século XIX.
Durante esse período, na Bahia, a maior atividade do candomblé acontecia nos subúrbios de Salvador. Apesar disso, não foram poucas as denúncias de episódios acontecidos na cidade, sob as barbas da polícia, como insistia O Alabama, periódico “crítico e chistoso”, publicado entre 1864 e 1871. Dedicando-se a uma dura e sistemática campanha contra os candomblés baianos, o jornal publicava, com considerável freqüência, histórias de pessoas envolvidas nesses rituais.
Os que podem ser considerados líderes do candomblé não eram apenas os indivíduos que presidiam os terreiros propriamente – ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierárquica e organizacional, calendário de festas, e assim por diante. Eram também os auxiliares mais próximos dos chefes de terreiros, incluindo, por exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e o responsável pelo sacrifício votivos de animais. Com freqüência, adivinhos e curandeiros atendiam em casa, sem participar da hierarquia dos terreiros de candomblé. Alguns atraíam centenas de consulentes, mesmo de fora da Bahia, até da África.
Nomes como o da sacerdotisa Nicácia, uma mulata que teria morrido em 14 de março de 1807, conforme foi registrado com precisão, no final do século XIX, em um Resumo chronologico e noticioso da Província da Bahia desde seu descobrimento em 1500. Segundo o autor da obra, o registro de Nicácia fora feito porque ela “tão falada foi por muito tempo, e da qual inda hoje se referem factos interessantes.” Infelizmente ele não relata esses “factos.” Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses antes quando fora seguida por uma multidão até cidade, presa por ordem do governador da capitania da Bahia, o Conde da Ponte. Esse governador desencadeou uma vigorosa campanha repressiva contra candomblés e quilombos nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos.  Mas a perseguição aos cultos afros aconteceu durante quase todo o século XIX na Bahia.
Amaro, um liberto africano, foi uma vítima. Preso em novembro 1855 em incursão policial provocada por rumores de uma conspiração de escravos, era suspeito de ser “o grande sacerdote dos africanos” no distrito da Sé, populoso centro administrativo e religioso de Salvador. Com ele foi encontrada a maioria dos “vários objectos de [...] crenças” africanas confiscados em sua casa e outras da vizinhança. Alguns desses objetos foram assim descritos pelo subdelegado: “figuras, símbolos, sapos mortos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas”. Nessa mesma ocasião, na freguesia de Santana, foi preso o crioulo (preto nascido no Brasil) Francisco Antonio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relatório policial porque “com embustes e superstições reúne em sua casa Africanos escravos para danças e [para] batuques com ofensa à moral pública”. Nem Amaro nem Vico Papai estavam liderando conspiração alguma, mas sim cultos da religião africana, o que não deixava de ser uma forma de rebeldia.
A maioria dos líderes identificados no período tinha nascido na África. É possível ir um pouco mais longe na tentativa de determinar a origem deles. Os escravos importados para a Bahia ao longo da primeira metade do século XIX vieram principalmente de povos do grupo lingüístico gbe, localizados sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje na Bahia; ou eram falantes do iorubá, vindos do Sudoeste da atual Nigéria e chamados nagôs na Bahia. Maiores vítimas do tráfico transatlântico nos anos que antecederam sua proibição definitiva, em 1850, os nagôs alcançaram a marca de quase 80% dos escravos africanos em Salvador na década de 1860. Tradições religiosas nagôs e jejes predominaram no candomblé da Bahia oitocentista, mas no final do século os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia.
Embora candomblé seja um vocábulo de origem banta (família língüística dos escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc., trazidos principalmente de território da atual Angola), poucas são as evidências escritas sobre cultos especificamente bantos no século XIX baiano. Mas temos algumas expressões  como candonga e milonga para designar feitiçaria, e calundu, para definir a prática religiosa africana em geral. Este último termo, que predominou até o final do século XVIII, foi mais tarde substituído por candomblé. É possível, porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os líderes desse universo religioso.
O papel de líder era também desempenhado por crioulos, pardos e até brancos. Tem-se notícia que, em julho de 1859, o português Domingos Miguel e sua amásia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa à rua Coqueiros d’Água de Meninos, porque ali organizavam um candomblé com “danças e objetos de feitiçaria”, dele participando homens e mulheres pardos, crioulos e africanos, escravos, livres e libertos. Foram presas dezesseis pessoas. Que o português estivesse envolvido naquela experiência religiosa parece provável, mas é possível que a batuta ritual estivesse de fato nas mãos de sua amante parda ou de outra pessoa do grupo; talvez nas mãos de Felisarda Sulana, escrava e única africana presa com o grupo.
Nenhuma dúvida foi deixada pela polícia no caso da outra pessoa branca em nossa lista de líderes. Maria Couto foi abertamente acusada de ser “dona ou diretora” de um “grande candomblé” no Saboeiro, arredores de Salvador, que estivera ativo – batendo tambor e dançando para os deuses – por alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados. Segundo o chefe de polícia, além de moradores locais bem conhecidos, estranhos armados e escravos fugidos freqüentavam aquelas cerimônias, o que recomendava cuidado. O chefe de polícia ordenou ao subdelegado daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse à sua presença – sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas curioso, o fato de uma casa de candomblé ser liderada por uma mulher branca.
Alguns escravos faziam parte da liderança religiosa africana. O mais antigo documento conhecido no qual o termo candomblé aparece é relativo ao escravo angola Antônio, descrito por um capitão de milícias em 1807 como “presidente do terreiro dos candombléis”. Observe-se que aqui também aparece a palavra terreiro associada a candomblé, outra novidade. Um bem-sucedido sacerdote, adivinho e curandeiro, Antônio vivia longe de sua senhora, em terras localizadas em um engenho no rico município açucareiro de São Francisco do Conde, onde ele tinha estabelecido seu terreiro. Ali, o escravo era procurado por “número maior [de pessoas] de alguns Engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e Domingos”. Segundo um relatório policial, ele exigia, “apesar de ser moço, que lhe tomassem a benção, e lhe prestassem obediência, inda os mais velhos”. De início, Antônio conseguiu escapar às forças de milícia enviadas para capturá-lo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha acesso a algum capital obtido de sua prática religiosa. Seis escravos foram presos para informar onde Antônio se escondera. Ele foi preso porque o feitor subornado não cumpriria sua parte no trato.
Para ser chefe de terreiro, que implicava dedicação grande de tempo, um escravo tinha que ter relações especiais com seu senhor.  Era o caso de Antônio, cuja senhora o deixava viver sobre si. Infelizmente não sabemos por que. É capaz que ela temesse seus poderes espirituais e se intimidava com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicação pode ser mais simples: como muitos outros senhores, ela o autorizava a trabalhar sem impedimentos, desde que lhe pagasse parte da renda adquirida. Há casos do período colonial de senhores que chegaram a agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfação à Inquisição.
Uma expressiva maioria dos líderes do candomblé havia nascido livre ou, principalmente, adquirido a alforria por compra ou doação. Os libertos formavam um setor importante da população africana e crioula na Bahia, sobretudo na capital, onde o sistema do ganho facilitava o acesso do escravo ao trabalho remunerado − como carregadores, vendedores, operários e artesãos −, que permitia a formação da poupança amiúde usada para a compra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores responsáveis pela estruturação do candomblé baiano nesse período. Alguns deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ganho com práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas complementaram formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade.
"Apesar de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias".
Negociantes, quitandeiros, ambulantes, vendedores eram algumas das ocupações de muitos dos adivinhos, curandeiros, pais e mães de terreiros. Mas não deviam ser poucos os sacerdotes africanos vivendo exclusivamente da religião, a se considerar os muitos clientes que, segundo as fontes, eles tinham. Esses clientes em geral deixavam, individualmente, pouca coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana liberta Maria Romana que, em 1856, acusou um certo Jorge, africano liberto como ela, de lhe tomar todo o dinheiro, jóias, além de um baú de roupas e até uma casa, como remuneração pelo tratamento de seu marido, o também africano liberto Pedro Theodoro da Silva, que segundo ela teria sido lentamente assassinado com “ervas venenosas” feitas por Jorge. Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma reparação, Maria resolveu denunciar Jorge à polícia. Não se tem notícia do desfecho dessa história.  Mas decerto, a reputação do acusado foi arruinada com o escândalo.
Era comum que esses líderes fossem despóticos, o que podia até elevar o seu prestígio, mas eles tinham de balancear essa reputação com outra mais positiva de generosidade, proteção e sobretudo eficiência ritual. Esta última é que ajudava as religiões africanas a recrutar, desde o período colonial, devotos e clientes de diversas camadas sociais.
Apesar de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias. Documentos relativos ao fim do século XVIII e à primeira metade do XIX, ainda que escassos, sugerem a formação de identidades étnicas a partir dessa mistura. Em 1785, por exemplo, seis africanos foram presos em um calundu na vila de Cachoeira, no Recôncavo, onde danças, batuques e cantos eram freqüentes. Eles foram identificados por uma testemunha africana no inquérito policial como dois “marris”, dois “jejes”, um “dagomé” e um “tapá” (termo iorubá que se usava na Bahia para designar os nupes, povo da África Ocidental).
Apesar de identidades diversas e mesmo da possível hostilidade que pudesse ter havido na África entre algumas dos grupos ali representados, eles eram falantes, exceto o tapá, de línguas gbe. Portanto, antes da criação do Ilê Iya Nassô, a religião africana já servia como instrumento de alianças interétnicas na Bahia, sobretudo no mesmo universo lingüístico. Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos.
Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas, dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Brotas. Aquilo representava outro passo largo na formação do candomblé baiano: a incorporação ritual de negros nascidos do lado de cá do Atlântico. Considerando sua reação, o juiz que invadiu o terreiro se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província, ele argumentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental perigosa para a ordem pública; a seu ver, negras nascidos no Brasil deviam ser exclusivamente católicas.
Mas, de acordo com o juiz de paz, elas, ao contrário, “adoravam” deuses africanos sem muita preocupação em escondê-lo, embora fingissem ser devotas dos santos católicos. Era como se à mistura étnica de fato equivalesse a religiosa. O juiz não entendeu, mas testemunhava um fenômeno, novo para ele, já característico da religiosidade dos que viviam na Bahia: a circulação das pessoas através de diferentes sistemas religiosos, sem necessariamente misturá-los.
Na segunda metade do século XIX, abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no candomblé.  Com o correr dos anos, observa-se um processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda continuava predominantemente africana.
Em 1862, tendo sabido que um grupo de crioulos havia construído terreiro em um bairro sob sua jurisdição, num local chamado Pojavá, um subdelegado escreveu que “neste distrito nunca os crioulos se deram a tal divertimento, foi a primeira vez que aqui o praticaram com admiração de [todos]”. Essa mesma autoridade vangloriou-se de haver acabado com todos os candomblés de africanos em sua jurisdição, que representavam – escreveu – “um modo de vida dos africanos que se não queriam empregar na lavoura”. O jornal Diário da Bahia fez um perfil detalhado dos presos no candomblé do Pojavá. Dos 26 homens, um era africano, três pardos e 22 crioulos. Quanto às mulheres, duas eram africanas libertas, quatro “pardas escuras” e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; dentre os homens, apenas quatro crioulos eram escravos. Além da predominância parda e crioula, o candomblé era formado, sobretudo, por gente livre e liberta que eram, ao contrário do insinuado pelo subdelegado, trabalhadores. Havia um tipógrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marceneiro, um aparelhador e um lavrador; dois saveiristas e dois funileiros; três alfaiates e três carpinteiros; nove pedreiros. As ocupações das mulheres não foram listadas.
A composição do candomblé do Pojavá refletia os ventos de renovação característicos do processo de nacionalização desse universo cultural no século XIX, fosse seu dirigente africano ou não. Era um candomblé predominantemente formado por gente emancipada da escravidão e, a se considerar o perfil ocupacional dos homens, gente empregada em um setor mais especializado do mercado urbano de trabalho. Eram também jovens e nascidos no Brasil. Quanto à predominância crioula, o Pajová não era exceção. No ano seguinte, 1863, um subdelegado da freguesia da Vitória declarou que ali os “filhos da terra” já tinham substituído os africanos nos “batuques de tabaques”. Entretanto, os centros religiosos africanos continuariam a existir, pelo menos, até a virada do século. E o apelo à pureza africana se tornaria índice de prestígio dos candomblés, desde essa época.
Entre os clientes ocasionais e visitantes, encontra-se nos documentos todo e qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacional. Havia negros, brancos e mulatos, escravos e senhores, homens de negócio e vendedores de rua, professores e estudantes, prostitutas e madames, policiais e criminosos, artesãos, empregados públicos, padres católicos, políticos. Pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que celebravam divindades específicas ao longo do ano.
Típico neste caso era o que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa casa na ladeira de Santa Tereza, ao lado do convento com o mesmo nome onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas, assim como “pessoas de gravata e lavadas”, participavam de cerimônias presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nagô da cidade-porto de Onim (Lagos), que havia sido escravo num engenho do Recôncavo. Sodré era um afamado adivinho e “feiticeiro” que atendia a gente de toda sorte. Mas havia muitos outros e outras. Entre a clientela de Anna Maria, mãe de terreiro angola denunciada por O Alabama em 1864, constava uma parda que queria curar o filho de feitiço, um português e uma crioula que procuravam tirar o diabo dos corpos dos respectivos amásios, um crioulo em busca de cura para seu afilhado e uma “moça”, provavelmente branca, Virgínia por acaso, que queria arrumar casamento.
Se for lícito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com africanos e era encabeçado, sobretudo, por eles, é também correto dizer que essa religião aos poucos deixaria de ser uma instituição ou uma forma de espiritualidade apenas africana, nem era uma religião exclusiva de escravos.
A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de sua  mistura étnica, racial e, logo, social.  Um processo que ocorreu em diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. Obviamente isso não fez do candomblé parte da cultura dominante local, pois ele continuou a ser visto – talvez pela maior parte da população e decerto pela maioria da elite – como anticristão ou incivilizado e legitimamente sujeito à perseguição e à brutalidade policiais.
Durante todo o século XIX e por muitas décadas depois, o candomblé continuou a ser identificado como uma instituição africana. Devemos admitir que, embora essa religião tenha se difundido na sociedade, enquanto existiram africanos na Bahia, provavelmente existiram candomblés apenas de africanos, e mesmo entre estes alguns etnicamente restritos. Mas, ainda que os terreiros não tenham deixado de representar uma memória da identidade étnica – pois continuam até hoje a se definir, de acordo com sua “nação”, como nagô, ketu, jeje, angola –, tal identidade, em virtude da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na linhagem étnica para se basear na afiliação espiritual. Mesmo com a repressão policial e o menosprezo público, esse processo transcorria a todo vapor nas vésperas da abolição da escravidão, em 1888.
João José Reis é professor do departamento de História da Universidade Federal da Bahia  (UFBA) e autor de REBELIÂO ESCRAVA NO BRASIL: A HISTÒRIA DO LEVANTE DOS MALÊS EM 1835 ( Companhia das Letras, 2003)
 Fonte: Revista de História

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Delírio das bússolas: A Proclamação da República

Do golpe militar à ditadura de Floriano Peixoto, o nascimento da República ocorreu de forma autoritária e em meio a revoltas

Marilene Antunes Sant’Anna


A "Proclamação da República no Campo da Acclamação no dia 15 de novembro de 1889", após o golpe no quartel do Exército.(Fundação Biblioteca Nacional)
“Vara de marmelo?!”. A pergunta, carregada de indignação, foi feita pelo Jornal do Brasil no início de 1896. O alvo era a polícia do Rio de Janeiro.À redação chegavam cartas escritas pelos presos da Casa de Detenção, denunciando as chicotadas e maus-tratos ali sofridos.
Desde o início da República, a imprensa não tardou a qualificar o novo regime como uma ditadura. As críticas lembravam que o Estado não vinha correspondendo às expectativas depositadas na defesa de um modelo republicano para o país. Professores, estudantes, jornalistas e profissionais liberais apoiaram a chegada da República desde que ela servisse aos interesses da democracia política e da participação do povo no governo.Com os militares (desejosos de uma República positivista com Executivo forte e intervencionista) e proprietários paulistas (que intercediam por um modelo liberal-federalista), esses grupos foram os responsáveis pelo agitado clima político que rondava a capital federal às vésperas da mudança de regime. Raul Pompéia, um combativo autor republicano, escreveu em maio de 1889 que todo o “espetáculo da política do dia só pode comparar-se ao delírio das bússolas, durante as tempestades elétricas”.
Em meio aos debates sobre a melhor forma de república para se governar o Brasil e a uma tempestade de críticas à monarquia,foi deposto, na manhã de 15 de novembro de 1889, o gabinete do Visconde de Ouro Preto, enquanto a família imperialestavaem Petrópolis. Naquele mesmo dia, depois do golpe no Quartel do Exército, as tropas desfilaram pela cidade em marcha triunfal, e junto com grupos de civis tomaram o rumo da Câmara Municipal para a solene proclamação da República. Mas as bússolas continuaram desnorteadas e a tormenta não cessou. 
O primeiro decreto do novo governo estabeleceu que enquanto não ocorresse eleição para o Congresso Constituinte, seguida da posse das legislaturas, somente poderiam ser acatadas as decisões do governo provisório chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca. Nos estados, apenas aqueles indicados pelo poder central poderiam exercer autoridade até que suas constituições ficassem prontas. Sem o exercício do Poder Legislativo, o governo assegurava tomar todas as providências para a “manutenção da ordem e da segurança pública”. No cumprimento desse compromisso, a República foi inflexível.
Inimigos mais conhecidos, como o Visconde de Ouro Preto e Gaspar da Silveira Martins, além da própria família imperial, foram nesse momento inicial banidos do país. Civis que no Império ocupavam cargos importantes foram presos e deportados. Os populares que manifestavam nas ruas e praças sua oposição à violência policial, a República mandou prender também. O Rio de Janeiro havia muito preocupava as elites por conta dos protestos e motins. Famoso ficou o chefe de polícia Sampaio Ferraz, que ousou numa campanha contra capoeiras – vistos como bandos de desordeiros profissionais, criados e protegidos pelos políticos da monarquia – enviá-los para a ilha de Fernando de Noronha, onde misturaram-se aos presos militares e civis que ali já cumpriam pena de prisão com trabalho forçado.
Militares ainda fiéis à monarquia foram presos e em alguns estados, como Santa Catarina, Mato Grosso e Maranhão, deram-se mortes e fuzilamento dos soldados e oficiais envolvidos em sublevações. Na capital federal, no dia 18 de dezembro de 1889, cerca de 80 praças do 2º Regimento de Artilharia, localizado no bairro de São Cristóvão, revoltaram-se “ao som do hino nacional, içaram a bandeira do Império no mastro do pátio, deram salvas e vivas à monarquia” e, segundo o jornal O Pharol, de Juiz de Fora, houve troca de tiros com os outros batalhões enviados pelo ministro da Guerra, resultando em novas mortes. Não se espante o leitor de as informações terem vindo de um jornal mineiro. Poucas foram as páginas da imprensa que desafiaram a República. Em 23 de dezembro, o governo editou o decreto nº 85-A, criando uma comissão militar para julgar crimes de conspiração contra a República. Pelo artigo 1º do decreto, era considerado conspirador também aquele que aconselhasse ou promovesse por palavras, escritos ou atos, a revolta civil ou a indisciplina militar, o que forçava os jornais a serem cuidadosos. Alguns acabaram fechados ou, como se falava à época, empastelados, tendo suas edições confiscadas e até mesmo tipografias destruídas.
Em 24 de fevereiro de 1891 foi promulgada a Constituição republicana. O mandato do presidente seria de quatro anos e a eleição direta, menos para o caso do primeiro, a ser eleito pelo Congresso. Este acabou confirmando o nome do próprio Deodoro da Fonseca. Mas, à revelia do que era esperado, elegeu Floriano Peixotocomo vice. A eleição confirmou o desgaste que Deodoro vinha sofrendo. Ele então dissolveu o Congresso Nacional, violando a Constituição, e decretou estado de sítio para o Rio de Janeiro e Niterói. Mas a Armada resistiu aos atos de força, e a renúncia de Deodoro foi a melhor articulação em meio à grave crise instalada na República.
Empossado presidente em novembro de 1891, Floriano também não conseguiu acalmar as bússolas da política. Interveio em praticamente todos os estados, nomeando novos governadores, dissolvendo assembleias e demitindo funcionários públicos considerados deodoristas. Além disso, a Constituição exigia novas eleições caso a presidência não tivesse completado dois anos seguidos, fato que colocava o governo de Floriano na inconstitucionalidade. O argumento detonou uma série de revoltas no país. Em abril do ano seguinte deu-se a “Carta dos Treze Generais” – manifesto redigido por oficiais do Exército e da Marinha que exigia a renúncia do presidente e a realização de nova eleição. Florianodemitiu todos os envolvidos na mesma noite. Com outros contestadores, os generais foram embarcados para Manaus e de lá desterrados para Cucuí e Tabatinga, na fronteira com o Peru.
O Congresso estava de novo fechado. As prisões da capital enchiam-se de presos políticos. Em 1894, o Jornal do Brasilrealizou mais uma campanha contra o responsável pela Casa de Detenção, o coronel Aureliano Pedro de Farias, delatando o fato de que trancara um guarda na “cela escura” pela estima que tinha aos presos políticos.
Àquela altura, acirravam-se os debates sobre o que era a “ditadura florianista”. Os opositores do governo criticavam a suspensão da liberdade de imprensa, as prisões arbitrárias, o estado de sítio, os habeas-corpus negados pelos juízes. Floriano era um déspota que se afastava de qualquer aproximação com a legalidade do exercício do poder – atribuição da qual, para políticos como Rui Barbosa, a República não deveria prescindir. Na pena de escritores como Lima Barreto, o presidente era um tirano que atacava a liberdade de todos.
Por outro lado, crescia o apoio a Floriano por parte significativa da população movida por sentimentos nacionalistas, e pelo medo de uma restauração da monarquia. Aos olhos dos partidários do marechal, a República vivia em constante perigo e o presidente era cultuado por saber cumprir sua missão salvacionista, de verdadeiro fundador da República no Brasil.
Melhor definição daquele início de República talvez tenha vindo de Olavo Bilac, ele próprio um ex-preso político. Numa crônica de 2 de junho de 1907, publicada na Gazeta de Notícias, Bilac alertou para a velocidade dos fatos e para a profundidade dos impasses que o país tinha enfrentado: “Nestes últimos vinte anos, o Brasil viveu um século; viveu aos saltos, aos choques, aos solavancos, vertiginosamente, galopando, voando. Assim não é absurdo julgar que já pertencem à História os acontecimentos de 1893. Para a História, pouco vale o número de anos de vida de uma nação; o que vale muito, para ela, é a variedade e a importância dos fatos, ou espaçados por longos séculos, ou coincidindo e resumindo-se em um decênio ou em um lustro”.
Veloz, intenso e caótico, o nascimento da República no Brasil não foi dos mais republicanos.

Marilene Antunes Sant´Annaé autora da tese “A imaginação do castigo: discursos e práticas sobre a Casa de Correção do Rio de Janeiro”  (UFRJ, 2010).

Saiba mais - Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

Luzes, mas só para a elite

No Brasil, o ideário iluminista serviu mais aos interesses da monarquia do que a inspirações revolucionárias

Nívia Pombo
 
O Iluminismo atravessou o Atlântico e encontrou terreno fértil nas Américas. A exploração colonial era um dos principais temas de indagação das elites letradas, servindo de argumento para a eclosão de rebeldias e revoluções, como as que tornaram independentes os Estados Unidos (1776) e o Haiti (1794). No mundo luso-brasileiro, a Ilustração forneceu contornos peculiares a antigas formas de motins e revoltas, e movimentos sediciosos como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração dos Alfaiates (1798) e a Conjuração dos Suassunas (1801) tiraram o sossego das autoridades metropolitanas.
O vocabulário político desses eventos não deixa dúvidas quanto à sua origem: termos como liberdade, igualdade, fraternidade, república, constituição, democracia e até mesmo abolição da escravatura circularam entre os que faziam parte dos sedutores circuitos letrados espalhados pela América Portuguesa no final do século XVIII. No entanto, em terras brasílicas, as Luzes serviram menos aos ideários separatistas do que aos interesses das elites coloniais e da Coroa portuguesa.
Um dos fatores mais poderosos para a afinação de interesses foi a formação na Universidade de Coimbra. A ausência de instituições de ensino superior na Colônia obrigava as elites a enviar seus filhos para concluírem seus estudos em Portugal ou em outras universidades europeias. Entre os anos de 1772 e 1822, formaram-se em Coimbra 866estudantes nascidos no Brasil. Deste total, 568formaram-se em direito e cerca da metade cursou também matemática ou ciências naturais, quando não as duas. Dos estudantes que optaram por cursos de humanidades, 141 formaram-se também em ciências.
A Universidade de Coimbra – a “Lusa Atenas”, como costumavam referir-se à prestigiosa instituição – promovia o encontro entre os jovens nascidos nas distintas partes da América portuguesa. Pode parecer curioso, mas era no ambiente universitário português que um habitante dos sertões da Colônia conhecia outro que vivia no Rio de Janeiro, na Bahia ou em Pernambuco, e onde todos estabeleciam contato com estudantes de outras partes da Europa. Irmanados pela condição de súditos da Coroa portuguesa, não abandonavam suas “identidades particulares”: eram mineiros, paulistas, baianos, goianos, pernambucanos, lisboetas, angolanos. Reunindo fidalgos e plebeus, Coimbra era de fato uma República das Letras embalada pelos novos acordes das Luzes.
Estudar na Europa podia significar, para muitos estudantes, passar por dificuldades desconhecidas, acostumados que estavam aos confortos e zelos das famílias abastadas da Colônia, mas era a oportunidade de ingressar nas redes de proteção política de algum fidalgo com vínculos estreitos com o poder central. Este foi o caso dos laços estabelecidos entre o então secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Souza Coutinho, de 1796 a 1803, e um grupo de ilustrados, a maior parte natural da América portuguesa, preparado para colocar em prática um programa de reformas afinado com os princípios da ilustração europeia.
            Conhecido entre os historiadores como “geração de 1790”, o grupo deveria fornecer ao poder central informações práticas acerca dos principais problemas enfrentados pelas capitanias. O tema da decadência da mineração era um deles, pois desde meados do século a Coroa portuguesa queixava-se da queda da produção de ouro.  Um dos textos inaugurais daquele período foi Discurso sobre a influência das minas e dos metais preciosos na indústria das nações, escrito pelo próprio ministro D. Rodrigo, em 1786. A agricultura, vocação primeira da economia colonial, também dominava a atenção da elite ilustrada. Grande professor dessa geração, o naturalista italiano Domingos Vandelli (1735-1815), mesmo sem ter pisado no solo da América portuguesa, escreveu um dos estudos mais importantes sobre o tema, Memória sobre a agricultura do Reino e suas conquistas.O naturalista frei Veloso, primo de Tiradentes, organizou um vasto trabalho de compilação sobre técnicas agrícolas, publicado sob o título de O fazendeiro do Brasil, obra em 11 volumes sistematicamente distribuída aos lavradores. Otimista, Veloso afirmava a importância da divulgação dos escritos, pois os habitantes das colônias precisavam adquirir “aquelas luzes e noções” necessárias ao “adiantamento da cultura de suas propriedades territoriais”. Sob a supervisão do padre, os irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco de Andrada e Silva traduziram obras que descreviam técnicas de cultivo utilizadas na Virgínia, Estados Unidos.
            Publicavam-se ainda descrições das condições naturais e econômicas das colônias, como Memória topográfica da Comarca de Ilhéus (Baltasar da Silva Lisboa), Diário de viagem de Mato Grosso (de Ricardo Lacerda de Almeida) e Descrição da capitania do Pará, de Manuel de Braun. Um dos mais talentosos dessa geração, o paulista José Bonifácio de Andrada e Silva elaborou críticas pesadas aos monopólios da pesca da baleia e da produção do sal que, em sua opinião, atrapalhavam a economia colonial.
            É um erro adjetivar as Luzes luso-brasileiras como “tímidas” ou “acanhadas" quando comparadas às da França. Em Portugal, a reunião dos homens de letras não ocorreu em torno dos cafés e salões literários, mas por meio do envio de obras e folhetos aos agricultores das colônias, levando o movimento ilustrado a espalhar-se pelo seu vasto império. Isso explica a riqueza dos detalhes dos inventários, das memórias e dos relatórios elaborados, capazes de substituir a fala e fornecer ao leitor as emoções resultantes da experiência prática.
            O primeiro caráter da produção era pragmático: os ensaios científicos e filosóficos não podiam abrir mão da noção de utilidade pública. D. Rodrigo dizia que “luminosas reformas” só poderiam ser “executadas por homens inteligentes” e sua “utilidade” deveria ser “por todos sentida e experimentada”. Na mesma linha, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira afirmou que só era possível medir “o grau de aplicação de uma ciência (...) pela sua utilidade”.
            Na lista dos letrados convocados pelo poder central havia vários nomes responsáveis por duras críticas ao Antigo Regime português. Nos tempos de Coimbra, José Bonifácio escreveu poemas que denunciavam o “monstro horrendo do despotismo”, inspirado nas leituras de Rousseau, Locke, Voltaire e Pope. Apesar disso, foi agraciado com o cargo de Intendente-geral das Minas e Metais Preciosos em Lisboa. Entre os implicados na Inconfidência Mineira, José de Sá Betencourt recebeu instruções para analisar as minas de cobre e salitre na Bahia. Antônio Pires da Silva Pontes foi agraciado com o posto de governador da capitania do Espírito Santo mesmo após ter declarado o seu desejo de ver Minas Gerais ser promovida a “cabeça de um grande reino”.
            Por fim, a ilustração luso-brasileira caracterizou-se por seu alcance restrito. Transpostas para a Colônia e implantadas em meio a uma sociedade hierárquica e escravista, as práticas das Luzes ficaram circunscritas às elites letradas. Foi uma ilustração às avessas: o ideário mais inflamado do movimento teve pequena repercussão no Brasil, cuja população era majoritariamente iletrada e estava imersa em liturgias religiosas. Quando em alguns momentos ousou ganhar as ruas, como na Conjuração dos Alfaiates em 1798, foi violentamente reprimida pelas autoridades metropolitanas.
            Nosso Iluminismo ficou sob os cuidados da monarquia portuguesa. Foi ela que criou espaços públicos, como a Academia das Ciências de Lisboa, os jardins botânicos e os museus de história natural, onde os estudos e as especulações científicas eram apresentados, mas controlados pela censura régia. A Coroa tratou de cooptar os ilustrados, desviando a atenção desses homens para um compromisso com a criação de uma comunidadeluso-brasileira. Esse projeto serviria para realizar o desejo compartilhado pela “geração de 1790”: “que o Português nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente português, e não se lembre senão da glória e grandeza da monarquia a que tem a fortuna de pertencer”, nas palavras de D. Rodrigo de Souza Coutinho.
            Na contramão do clima de independências entre colônias e metrópoles naquela virada de século, as Luzes luso-brasileiras celebraram a unidade política de Portugal e Brasil.

Nívia Pombo é autora da tese “O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos ilustrados (Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803)”, (UFF, 2013).

Saiba mais
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2009.
JANCSÓ, István. “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

O Iluminismo

Os filósofos do século XVIII só concordavam em um único ponto: podiam discordar, publicamente, usando a razão

Rodrigo Elias
A palavra “Iluminismo” não existia no século XVIII. Nas línguas ibéricas, só apareceu no século seguinte, e a primeira ocorrência em um dicionário na língua portuguesa é de 1836. Difícil acreditar, já de saída, que o século XVIII tenha apresentado um conjunto coeso de ideias, ou uma ideologia unitária que possamos classificar com o sufixo “ismo”.
Em geral, o fenômeno do Esclarecimento é apresentado como um sistema de valores que deu origem ao mundo contemporâneo, para o bem e para o mal, estando na base das grandes transformações políticas, econômicas e sociais a partir do século XVIII. As noções modernas de igualdade, democracia e liberdade são geralmente apresentadas como invenções dos filósofos iluministas, que teriam se desdobrado em vários campos nos séculos posteriores. Por outro lado, pensadores do século XX chegaram a dizer que a eliminação sistemática dos judeus e a exaltação de uma “raça pura” pelos nazistas era um desdobramento lógico da racionalidade fria dos filósofos do Século das Luzes. Segundo o historiador norte-americano Robert Darnton, o Iluminismo está cada vez mais em todos os lugares e pode explicar qualquer coisa em qualquer área de realização humana a partir do século XVIII – trata-se, portanto, de um conceito tão alargado que corre o risco de perder completamente seu poder explicativo.
É fato, entretanto, que letrados europeus da primeira metade daquele século utilizavam metáforas que remetiam à luz da sabedoria em contraposição às trevas da ignorância e, em alguns casos, do despotismo. Esta fórmula, entretanto, não era nova – e também podia ser, em certa medida, uma transposição do processo religioso bem versus mal presente nas tradições cristãs. Esta dualidade está na própria raiz do Renascimento moderno, entre os séculos XV e XVI, sobretudo em sua crítica à Europa da Idade Média ou “Idade das Trevas”. Luz, luzes, ideias luminosas, esclarecimento eram metáforas que os philosophes (como se autodenominavam)utilizavam para caracterizar seu programa – que incorporava, mais do que ideias fixas, uma nova atitude em relação ao conhecimento. Esta atitude está relacionada com o que conhecemos por razão científica.
O livro-manifesto desta nova atitude é O experimentador, publicado por Galileu Galilei em 1623. Este livro, manifesto fundador da ciência moderna, foi inspirado no trabalho do português Estevão Rodrigues de Castro, professor de medicina na Itália, formado em Coimbra em 1588. O livro se chama De meteoris microcosmi (“Microcosmo dos meteoros”) e foi publicado em Florença em 1621. Rodrigues de Castro, dois anos antes de Galileu, reafirmava princípios supostamente sepultados pela autoridade científica acadêmica e religiosa da sua época. O experimentador, por sua vez, escrito de maneira polêmica e opondo-se diretamente ao conhecimento oficial, lançado com uma estratégia de publicidade que incluía o apoio do próprio papa, que aprovou o livro publicamente sem tê-lo lido, teve enorme impacto.

John Locke / Biblioteca Nacional da França
Segundo o filósofo alemão Ernest Cassirer, o século XVIII vai na mesma direção deste manifesto e rejeita terminantemente aquela filosofia do conhecimento (ou epistemologia) confrontada por Galileu no século XVII: a dedução a partir de um princípio incontestável, capaz de ser sustentado unicamente pela tradição. A filosofiada época, ao contrário, adotaria um método essencialmente diverso: a análise (ou crítica). Os philosophestomam como modelo a física de Isaac Newton, exposto em sua obraPrincípios matemáticos da Filosofia Natural, de 1687. De acordo com o físico inglês, os próprios fenômenos da natureza, aos quais o homem é sensível, são os dados. A partir de sua observação e análise, chega-se aos princípios – e não ao contrário, como determinava a tradição.
O historiador alemão Reinhart Koselleck, autor de Crítica e crise (1959), também remonta o problema ao século XVII, no qual esta transformação no método do conhecimento se relaciona com as discussões sobre a vida pública. Para ele, a questão é indissociável da constituição do Estado absolutista em meio às guerras religiosas. A guerra civil na Inglaterra (1642-1651) impediu momentaneamente, segundo ele, a formação do Estado moderno. Mas acabou sendo o motivo do erguimento do Absolutismo, contra o qual, no século seguinte, se formaria esta crítica que chamamos de Esclarecimento.
Acompanhando a consolidação da nova ordem monárquica do final do século XVII, e as teses de pensadores como Thomas Hobbes (1588-1679), Koselleck observa o apaziguamento das forças internas. De um lado, foi estabelecida uma esfera política, própria do rei, destituída do julgamento sobre o que é certo ou errado (ou seja, uma moral), e que obedece unicamente à razão de Estado. De outra, uma esfera privada, que pode ser moral, na qual os filósofos estão livres (embora confinados) para exercer a razão propriamente dita, isto é, o pensamento crítico sistemático.
Assim, no período em que os conflitos religiosos se generalizaram, alguns letrados observaram que a liberdade de consciência – e de crítica – era incompatível com a paz: a discordância pública sobre o que era certo ou errado levaria à guerra. Deste modo passaria a existir uma nítida divisão entre o mundo exterior, político, no qual só quem fala é o monarca, e o mundo interior, em que o indivíduo esconde a sua consciência. É justamente aí, no espaço secreto da consciência, que vai se desenvolver o Esclarecimento.

Gravura da época da Revolução Francesa critica os poderes tradiconais / Biblioteca Nacional da França
O processo do Esclarecimento é a projeção para o mundo público desta nova racionalidade. Isso terá um impacto ainda maior na medida em que o século XVIII vai conhecer uma inédita expansão da alfabetização e um significativo barateamento da produção de textos. Um autor que simboliza esta transposição de atitude de um mundo privado e científico para um mundo público e político é outro inglês, John Locke, através do seu Ensaio sobre o entendimento humano, de 1690. Para ele, a capacidade individual de formar juízo existe independente da vontade do soberano, independente da autorização estatal, e extrapola a consciência individual. A sociedade se submete às suas próprias leis morais, que têm a mesma importância das leis civis (criadas pelo governo). Forma-se, paulatinamente, a chamada “opinião pública”, capaz de definir o que é uma ação virtuosa – que deve ser encorajada; e uma ação viciosa – que é objeto de censura.
A razão, materializada no infinito processo de crítica, legitima a si própria. É este o mundo dos letrados do início do século XVIII, no qual as ideias são evidentemente conflitantes. Mas a atitude de discutir publicamente, por escrito, sobre todos os assuntos se tornaria a regra da atividade intelectual nos países que conheceram o Esclarecimento (daí a impropriedade de um “absolutismo esclarecido”).
É justamente no domínio letrado dos anos posteriores a 1750 que se estabelece uma postura de aberto antagonismo em relação à esfera política. A Enciclopédia, que começou a ser publicada em 1751, sofreu perseguições do Estado francês em 1752 e 1759. Voltaire teve todos os seus escritos proibidos, e viajava de um lado para o outro fugindo das autoridades. A postura crítica, que valoriza os dualismos no processo do conhecimento (o certo x o errado; o verdadeiro x o falso), colocará paulatinamente o próprio exercício da razão como uma prática incompatível com a política tradicional.
A Enciclopédia, maior fenômeno editorial do Esclarecimento, tinha no método, e não no conteúdo de ideais, a sua essência: o conhecimento parte dos fenômenos, que são os dados, para as leis. D’Alembert, que dividiu a organização da obra com Diderot, anunciou no “Discurso preliminar”, que precedeu o primeiro volume da obra: “Todos os nossos conhecimentos diretos reduzem-se aos que recebemos pelos sentidos; de onde se conclui que é às nossas sensações que devemos todas as nossas ideias”.
Se há uma novidade filosófica neste princípio – que norteia a organização da obra – é a sua adoção como programa em todas as áreas do conhecimento. Da física à teologia, passando ao mundo da política. Esta atitude representaria não a enunciação de uma verdade universal no sentido tradicional, o que seria incongruente com o próprio clima intelectual do Esclarecimento, mas uma constatação sobre a impossibilidade de conhecer o mundo sem experimentá-lo.
A Ilustração, ou Esclarecimento, não é um conjunto de ideias: é a atitude de falar publicamente usando a própria razão e recusando as explicações tradicionais. Os resultados deste método nem sempre formam um conjunto coerente e definitivo de ideais – assim como seria incoerente com o Esclarecimento se acreditássemos que as noções correntes de liberdade e democracia devem estar isentas de crítica.

Rodrigo Eliasé professor das Faculdades Integradas Simonsen e autor da dissertação “As letras da tradição: o Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga e as linguagens políticas na época pombalina (1750-1772)”, (UFF, 2004).

Saiba mais:
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Unicamp, 1992.
D’ALEMBERT, Jean le Rond & DIDEROT, Denis. “Discurso preliminar”. In: Enciclopédia ou Dicionário racionado das ciências, das artes e dos ofícios por uma sociedade de letrados. São Paulo: Unesp, 1989.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj/ Contraponto, 1999.
REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.