sexta-feira, 16 de maio de 2014

Luzes, mas só para a elite

No Brasil, o ideário iluminista serviu mais aos interesses da monarquia do que a inspirações revolucionárias

Nívia Pombo
 
O Iluminismo atravessou o Atlântico e encontrou terreno fértil nas Américas. A exploração colonial era um dos principais temas de indagação das elites letradas, servindo de argumento para a eclosão de rebeldias e revoluções, como as que tornaram independentes os Estados Unidos (1776) e o Haiti (1794). No mundo luso-brasileiro, a Ilustração forneceu contornos peculiares a antigas formas de motins e revoltas, e movimentos sediciosos como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração dos Alfaiates (1798) e a Conjuração dos Suassunas (1801) tiraram o sossego das autoridades metropolitanas.
O vocabulário político desses eventos não deixa dúvidas quanto à sua origem: termos como liberdade, igualdade, fraternidade, república, constituição, democracia e até mesmo abolição da escravatura circularam entre os que faziam parte dos sedutores circuitos letrados espalhados pela América Portuguesa no final do século XVIII. No entanto, em terras brasílicas, as Luzes serviram menos aos ideários separatistas do que aos interesses das elites coloniais e da Coroa portuguesa.
Um dos fatores mais poderosos para a afinação de interesses foi a formação na Universidade de Coimbra. A ausência de instituições de ensino superior na Colônia obrigava as elites a enviar seus filhos para concluírem seus estudos em Portugal ou em outras universidades europeias. Entre os anos de 1772 e 1822, formaram-se em Coimbra 866estudantes nascidos no Brasil. Deste total, 568formaram-se em direito e cerca da metade cursou também matemática ou ciências naturais, quando não as duas. Dos estudantes que optaram por cursos de humanidades, 141 formaram-se também em ciências.
A Universidade de Coimbra – a “Lusa Atenas”, como costumavam referir-se à prestigiosa instituição – promovia o encontro entre os jovens nascidos nas distintas partes da América portuguesa. Pode parecer curioso, mas era no ambiente universitário português que um habitante dos sertões da Colônia conhecia outro que vivia no Rio de Janeiro, na Bahia ou em Pernambuco, e onde todos estabeleciam contato com estudantes de outras partes da Europa. Irmanados pela condição de súditos da Coroa portuguesa, não abandonavam suas “identidades particulares”: eram mineiros, paulistas, baianos, goianos, pernambucanos, lisboetas, angolanos. Reunindo fidalgos e plebeus, Coimbra era de fato uma República das Letras embalada pelos novos acordes das Luzes.
Estudar na Europa podia significar, para muitos estudantes, passar por dificuldades desconhecidas, acostumados que estavam aos confortos e zelos das famílias abastadas da Colônia, mas era a oportunidade de ingressar nas redes de proteção política de algum fidalgo com vínculos estreitos com o poder central. Este foi o caso dos laços estabelecidos entre o então secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, D. Rodrigo de Souza Coutinho, de 1796 a 1803, e um grupo de ilustrados, a maior parte natural da América portuguesa, preparado para colocar em prática um programa de reformas afinado com os princípios da ilustração europeia.
            Conhecido entre os historiadores como “geração de 1790”, o grupo deveria fornecer ao poder central informações práticas acerca dos principais problemas enfrentados pelas capitanias. O tema da decadência da mineração era um deles, pois desde meados do século a Coroa portuguesa queixava-se da queda da produção de ouro.  Um dos textos inaugurais daquele período foi Discurso sobre a influência das minas e dos metais preciosos na indústria das nações, escrito pelo próprio ministro D. Rodrigo, em 1786. A agricultura, vocação primeira da economia colonial, também dominava a atenção da elite ilustrada. Grande professor dessa geração, o naturalista italiano Domingos Vandelli (1735-1815), mesmo sem ter pisado no solo da América portuguesa, escreveu um dos estudos mais importantes sobre o tema, Memória sobre a agricultura do Reino e suas conquistas.O naturalista frei Veloso, primo de Tiradentes, organizou um vasto trabalho de compilação sobre técnicas agrícolas, publicado sob o título de O fazendeiro do Brasil, obra em 11 volumes sistematicamente distribuída aos lavradores. Otimista, Veloso afirmava a importância da divulgação dos escritos, pois os habitantes das colônias precisavam adquirir “aquelas luzes e noções” necessárias ao “adiantamento da cultura de suas propriedades territoriais”. Sob a supervisão do padre, os irmãos Antônio Carlos e Martim Francisco de Andrada e Silva traduziram obras que descreviam técnicas de cultivo utilizadas na Virgínia, Estados Unidos.
            Publicavam-se ainda descrições das condições naturais e econômicas das colônias, como Memória topográfica da Comarca de Ilhéus (Baltasar da Silva Lisboa), Diário de viagem de Mato Grosso (de Ricardo Lacerda de Almeida) e Descrição da capitania do Pará, de Manuel de Braun. Um dos mais talentosos dessa geração, o paulista José Bonifácio de Andrada e Silva elaborou críticas pesadas aos monopólios da pesca da baleia e da produção do sal que, em sua opinião, atrapalhavam a economia colonial.
            É um erro adjetivar as Luzes luso-brasileiras como “tímidas” ou “acanhadas" quando comparadas às da França. Em Portugal, a reunião dos homens de letras não ocorreu em torno dos cafés e salões literários, mas por meio do envio de obras e folhetos aos agricultores das colônias, levando o movimento ilustrado a espalhar-se pelo seu vasto império. Isso explica a riqueza dos detalhes dos inventários, das memórias e dos relatórios elaborados, capazes de substituir a fala e fornecer ao leitor as emoções resultantes da experiência prática.
            O primeiro caráter da produção era pragmático: os ensaios científicos e filosóficos não podiam abrir mão da noção de utilidade pública. D. Rodrigo dizia que “luminosas reformas” só poderiam ser “executadas por homens inteligentes” e sua “utilidade” deveria ser “por todos sentida e experimentada”. Na mesma linha, o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira afirmou que só era possível medir “o grau de aplicação de uma ciência (...) pela sua utilidade”.
            Na lista dos letrados convocados pelo poder central havia vários nomes responsáveis por duras críticas ao Antigo Regime português. Nos tempos de Coimbra, José Bonifácio escreveu poemas que denunciavam o “monstro horrendo do despotismo”, inspirado nas leituras de Rousseau, Locke, Voltaire e Pope. Apesar disso, foi agraciado com o cargo de Intendente-geral das Minas e Metais Preciosos em Lisboa. Entre os implicados na Inconfidência Mineira, José de Sá Betencourt recebeu instruções para analisar as minas de cobre e salitre na Bahia. Antônio Pires da Silva Pontes foi agraciado com o posto de governador da capitania do Espírito Santo mesmo após ter declarado o seu desejo de ver Minas Gerais ser promovida a “cabeça de um grande reino”.
            Por fim, a ilustração luso-brasileira caracterizou-se por seu alcance restrito. Transpostas para a Colônia e implantadas em meio a uma sociedade hierárquica e escravista, as práticas das Luzes ficaram circunscritas às elites letradas. Foi uma ilustração às avessas: o ideário mais inflamado do movimento teve pequena repercussão no Brasil, cuja população era majoritariamente iletrada e estava imersa em liturgias religiosas. Quando em alguns momentos ousou ganhar as ruas, como na Conjuração dos Alfaiates em 1798, foi violentamente reprimida pelas autoridades metropolitanas.
            Nosso Iluminismo ficou sob os cuidados da monarquia portuguesa. Foi ela que criou espaços públicos, como a Academia das Ciências de Lisboa, os jardins botânicos e os museus de história natural, onde os estudos e as especulações científicas eram apresentados, mas controlados pela censura régia. A Coroa tratou de cooptar os ilustrados, desviando a atenção desses homens para um compromisso com a criação de uma comunidadeluso-brasileira. Esse projeto serviria para realizar o desejo compartilhado pela “geração de 1790”: “que o Português nascido nas quatro partes do mundo se julgue somente português, e não se lembre senão da glória e grandeza da monarquia a que tem a fortuna de pertencer”, nas palavras de D. Rodrigo de Souza Coutinho.
            Na contramão do clima de independências entre colônias e metrópoles naquela virada de século, as Luzes luso-brasileiras celebraram a unidade política de Portugal e Brasil.

Nívia Pombo é autora da tese “O Palácio de Queluz e o mundo ultramarino: circuitos ilustrados (Portugal, Brasil e Angola, 1796-1803)”, (UFF, 2013).

Saiba mais
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2009.
JANCSÓ, István. “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e outros malandros. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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