sexta-feira, 16 de maio de 2014

Delírio das bússolas: A Proclamação da República

Do golpe militar à ditadura de Floriano Peixoto, o nascimento da República ocorreu de forma autoritária e em meio a revoltas

Marilene Antunes Sant’Anna


A "Proclamação da República no Campo da Acclamação no dia 15 de novembro de 1889", após o golpe no quartel do Exército.(Fundação Biblioteca Nacional)
“Vara de marmelo?!”. A pergunta, carregada de indignação, foi feita pelo Jornal do Brasil no início de 1896. O alvo era a polícia do Rio de Janeiro.À redação chegavam cartas escritas pelos presos da Casa de Detenção, denunciando as chicotadas e maus-tratos ali sofridos.
Desde o início da República, a imprensa não tardou a qualificar o novo regime como uma ditadura. As críticas lembravam que o Estado não vinha correspondendo às expectativas depositadas na defesa de um modelo republicano para o país. Professores, estudantes, jornalistas e profissionais liberais apoiaram a chegada da República desde que ela servisse aos interesses da democracia política e da participação do povo no governo.Com os militares (desejosos de uma República positivista com Executivo forte e intervencionista) e proprietários paulistas (que intercediam por um modelo liberal-federalista), esses grupos foram os responsáveis pelo agitado clima político que rondava a capital federal às vésperas da mudança de regime. Raul Pompéia, um combativo autor republicano, escreveu em maio de 1889 que todo o “espetáculo da política do dia só pode comparar-se ao delírio das bússolas, durante as tempestades elétricas”.
Em meio aos debates sobre a melhor forma de república para se governar o Brasil e a uma tempestade de críticas à monarquia,foi deposto, na manhã de 15 de novembro de 1889, o gabinete do Visconde de Ouro Preto, enquanto a família imperialestavaem Petrópolis. Naquele mesmo dia, depois do golpe no Quartel do Exército, as tropas desfilaram pela cidade em marcha triunfal, e junto com grupos de civis tomaram o rumo da Câmara Municipal para a solene proclamação da República. Mas as bússolas continuaram desnorteadas e a tormenta não cessou. 
O primeiro decreto do novo governo estabeleceu que enquanto não ocorresse eleição para o Congresso Constituinte, seguida da posse das legislaturas, somente poderiam ser acatadas as decisões do governo provisório chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca. Nos estados, apenas aqueles indicados pelo poder central poderiam exercer autoridade até que suas constituições ficassem prontas. Sem o exercício do Poder Legislativo, o governo assegurava tomar todas as providências para a “manutenção da ordem e da segurança pública”. No cumprimento desse compromisso, a República foi inflexível.
Inimigos mais conhecidos, como o Visconde de Ouro Preto e Gaspar da Silveira Martins, além da própria família imperial, foram nesse momento inicial banidos do país. Civis que no Império ocupavam cargos importantes foram presos e deportados. Os populares que manifestavam nas ruas e praças sua oposição à violência policial, a República mandou prender também. O Rio de Janeiro havia muito preocupava as elites por conta dos protestos e motins. Famoso ficou o chefe de polícia Sampaio Ferraz, que ousou numa campanha contra capoeiras – vistos como bandos de desordeiros profissionais, criados e protegidos pelos políticos da monarquia – enviá-los para a ilha de Fernando de Noronha, onde misturaram-se aos presos militares e civis que ali já cumpriam pena de prisão com trabalho forçado.
Militares ainda fiéis à monarquia foram presos e em alguns estados, como Santa Catarina, Mato Grosso e Maranhão, deram-se mortes e fuzilamento dos soldados e oficiais envolvidos em sublevações. Na capital federal, no dia 18 de dezembro de 1889, cerca de 80 praças do 2º Regimento de Artilharia, localizado no bairro de São Cristóvão, revoltaram-se “ao som do hino nacional, içaram a bandeira do Império no mastro do pátio, deram salvas e vivas à monarquia” e, segundo o jornal O Pharol, de Juiz de Fora, houve troca de tiros com os outros batalhões enviados pelo ministro da Guerra, resultando em novas mortes. Não se espante o leitor de as informações terem vindo de um jornal mineiro. Poucas foram as páginas da imprensa que desafiaram a República. Em 23 de dezembro, o governo editou o decreto nº 85-A, criando uma comissão militar para julgar crimes de conspiração contra a República. Pelo artigo 1º do decreto, era considerado conspirador também aquele que aconselhasse ou promovesse por palavras, escritos ou atos, a revolta civil ou a indisciplina militar, o que forçava os jornais a serem cuidadosos. Alguns acabaram fechados ou, como se falava à época, empastelados, tendo suas edições confiscadas e até mesmo tipografias destruídas.
Em 24 de fevereiro de 1891 foi promulgada a Constituição republicana. O mandato do presidente seria de quatro anos e a eleição direta, menos para o caso do primeiro, a ser eleito pelo Congresso. Este acabou confirmando o nome do próprio Deodoro da Fonseca. Mas, à revelia do que era esperado, elegeu Floriano Peixotocomo vice. A eleição confirmou o desgaste que Deodoro vinha sofrendo. Ele então dissolveu o Congresso Nacional, violando a Constituição, e decretou estado de sítio para o Rio de Janeiro e Niterói. Mas a Armada resistiu aos atos de força, e a renúncia de Deodoro foi a melhor articulação em meio à grave crise instalada na República.
Empossado presidente em novembro de 1891, Floriano também não conseguiu acalmar as bússolas da política. Interveio em praticamente todos os estados, nomeando novos governadores, dissolvendo assembleias e demitindo funcionários públicos considerados deodoristas. Além disso, a Constituição exigia novas eleições caso a presidência não tivesse completado dois anos seguidos, fato que colocava o governo de Floriano na inconstitucionalidade. O argumento detonou uma série de revoltas no país. Em abril do ano seguinte deu-se a “Carta dos Treze Generais” – manifesto redigido por oficiais do Exército e da Marinha que exigia a renúncia do presidente e a realização de nova eleição. Florianodemitiu todos os envolvidos na mesma noite. Com outros contestadores, os generais foram embarcados para Manaus e de lá desterrados para Cucuí e Tabatinga, na fronteira com o Peru.
O Congresso estava de novo fechado. As prisões da capital enchiam-se de presos políticos. Em 1894, o Jornal do Brasilrealizou mais uma campanha contra o responsável pela Casa de Detenção, o coronel Aureliano Pedro de Farias, delatando o fato de que trancara um guarda na “cela escura” pela estima que tinha aos presos políticos.
Àquela altura, acirravam-se os debates sobre o que era a “ditadura florianista”. Os opositores do governo criticavam a suspensão da liberdade de imprensa, as prisões arbitrárias, o estado de sítio, os habeas-corpus negados pelos juízes. Floriano era um déspota que se afastava de qualquer aproximação com a legalidade do exercício do poder – atribuição da qual, para políticos como Rui Barbosa, a República não deveria prescindir. Na pena de escritores como Lima Barreto, o presidente era um tirano que atacava a liberdade de todos.
Por outro lado, crescia o apoio a Floriano por parte significativa da população movida por sentimentos nacionalistas, e pelo medo de uma restauração da monarquia. Aos olhos dos partidários do marechal, a República vivia em constante perigo e o presidente era cultuado por saber cumprir sua missão salvacionista, de verdadeiro fundador da República no Brasil.
Melhor definição daquele início de República talvez tenha vindo de Olavo Bilac, ele próprio um ex-preso político. Numa crônica de 2 de junho de 1907, publicada na Gazeta de Notícias, Bilac alertou para a velocidade dos fatos e para a profundidade dos impasses que o país tinha enfrentado: “Nestes últimos vinte anos, o Brasil viveu um século; viveu aos saltos, aos choques, aos solavancos, vertiginosamente, galopando, voando. Assim não é absurdo julgar que já pertencem à História os acontecimentos de 1893. Para a História, pouco vale o número de anos de vida de uma nação; o que vale muito, para ela, é a variedade e a importância dos fatos, ou espaçados por longos séculos, ou coincidindo e resumindo-se em um decênio ou em um lustro”.
Veloz, intenso e caótico, o nascimento da República no Brasil não foi dos mais republicanos.

Marilene Antunes Sant´Annaé autora da tese “A imaginação do castigo: discursos e práticas sobre a Casa de Correção do Rio de Janeiro”  (UFRJ, 2010).

Saiba mais - Bibliografia
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. Os subversivos da República. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

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