sexta-feira, 25 de março de 2016

MÁQUINAS, MULTIDÕES, CIDADES E PERDAS


Maria Stella Martins Bresciani

Para além da força emocional da retórica poética e literária em geral, presente nos textos dos homens cultos do século XIX, aparecem com igual impacto os delineamentos de uma nova sensibilidade. Convencidos de estarem vivendo no limiar de uma "nova era", prenhe de um potencial transformador ainda não avaliado, eles se lançaram à empresa de anotar em seus escritos os sinais visíveis dessa novidade de dimensões desconhecidas e assustadoras. O sentido de desenraizamento expresso na perda de identidade social e de formas de orientação multisseculares, aparece de maneira recorrente elaborando a imagem de uma crise de proporção e conteúdo inéditos. Sem dúvida, os termos desarraigado e desenraizado falam do homem arrancado de sua íntima relação com a natureza, mas paradoxalmente apontam para a nova condição humana de vencedor da natureza. Afinal, atribuía-se aos engenhos astuciosos fabricados pelos homens - as máquinas com seus mecanismos irresistíveis e incansáveis - essa vitória na guerra com a rude natureza. A máquina foi apontada como expressão simbólica e material dessa vitória que lograra emancipar o homem do limitado destino de ser subjugado aos imperativos do mundo físico. À máquina o século XIX conferiu todo p poder transformador e produtor da abundância e apostou nela como possibilidade, não muito remota, de superação do reino da necessidade (superação de um mundo sempre às voltas com a escassez de recursos para manter o crescimento ilimitado do gênero humano), mas também a ela foi conferido o poder transformador da estrutura social (the fabric of society), o que colocava em algo exterior ao próprio homem a potência movimentadora do novo sistema social (social system).

Máquinas, multidões, cidades: o persistente trinômio do progresso, do fascínio e do medo. O estranhamento do ser humano em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter sua vida organizada em obediência a um imperativo exterior e transcendente a ele mesmo, embora por ele produzido. Registros de perdas e de imposições violentas encontram-se nos escritos de homens que se auto-representaram contemporâneos de um ato inaugural... É a constituição dessa "nova sensibilidade" que procura acompanhar neste artigo, na certeza de que, hoje, o sentido de emancipação da máquina em relação ao homem se expressa na aceitação de uma lógica interna ao próprio progresso técnico e repõe a insólita experiência vivida pelo homem quando considerou, a si mesmo, por sua astúcia, vitorioso sobre a natureza.

Para penetrar nos meandros dessa nova sensibilidade decidi percorrer alguns textos, onde literatos, médicos, advogados, filósofos, filantropos, estadistas, em suma, o homem letrado em geral, expressaram o sentimento de perdas diversas e de viverem situações paradoxais: registros semelhantes encontrei também em depoimentos de trabalhadores rurais e fabris, de vendedores ambulantes, artistas de rua, enfim de toda a grande parcela da população que subsiste através do trabalho de suas mãos.

Quais perdas?

A representação do tempo regido pela natureza perde-se e junto com ela a medida do tempo relacionada às tarefas cíclicas e rotineiras do trabalho. Se desfaz um ajuste entre o ritmo do mundo físico e as atividades humanas, o que implica a dissolução de um;i relação imediata, natural e inteligível de compulsão da natureza sobre o homem. Perda que implica a imposição de uma nova concepção do tempo: abstrato, linear, uniformemente dividido a partir de uma convenção entre os homens, medida de valor relacionada à atividade do comerciante e às longas distâncias. Tempo a ser produtivamente aplicado, que se define como tempo do patrão - tempo do trabalho, cuja representação aparece como imposição de uma  instância captada pelo intelecto, porém, presa a uma lógica própria, exterior ao homem, que o subjuga. Delineia-se uma primeira exterioridade substantivada no relógio, concomitantemente artefato e mercadoria.

Na atividade do trabalho uma outra perda. A unidade do homem com suas condições de produção e com a finalidade dessa produção definida pelas suas próprias e limitadas necessidades cinde-se numa dupla exterioridade: de extensões inorgânicas de seu corpo orgânico, as ferramentas se autonomizam materializando-se na máquina, vale dizer, tornando dispensável a arte de suas mãos: de finalidade da produção, o homem passa a ser uma das engrenagens de um processo que objetiva repor a própria produção. O trabalhador despojado das condições objetivas do trabalho é reduzido à mera subjetividade, à força de trabalho.

Os sistemas de trabalho com base em relações pessoais se desfazem substituídos pela impessoalidade das relações do mercado. O vínculo entre o mestre-artesão e seu aprendiz, certeza de trabalho, e aquisição de uma destreza específica e de uma identidade profissional rompe-se; a relação patrão-operário tem um caráter puramente mercantil e sobre ela se erige uma representação que a coloca em uma instância transcendente ao homem - a lei da oferta e da procura inscrita na natureza das relações humanas - que, produto da atividade intelectual, passa a ser interpretada como princípio férreo de ordenação do social.

Uma última perda: o homem, em especial o trabalhador fabril e urbano em geral, arrancado dos vilarejos e impelidos a levar uma vida agressiva nas cidades. Perda do habitat tradicional, onde conjugava-se o trabalho artesanal com o labor dos campos; onde toda a família encontrava condições de trabalho e onde a vida não aparecia cindida em tempo do patrão e lugar do trabalho contrapostos a tempo do descanso e lugar de morar.

O registro de cada uma dessas perdas se fez presente no decorrer de três séculos, pelo menos, e culmina nos inícios do século XIX, na percepção de que o homem ao sobrepujar-se à natureza havia caído na armadilha de sua própria astúcia. A cidade moderna representa o momento culminante desse longo processo e também o lugar onde se acumulam homens despojados de parte de sua humanidade; em suma, lugar onde a subordinação da vida a imperativos exteriores ao homem se encontra levada às últimas conseqüências. Fascínio e medo; a cidade configura o espaço por excelência da transformação, ou seja, do progresso e da historia; ela representa a expressão maior do domínio da natureza pelo homem e das condições artificiais (fabricadas) de vida.

É ainda importante anotar a solidariedade entre o conjunto dessas perdas e a elaboração intelectual de uma distância entre o homem e seus semelhantes; a elaboração da figura de um sujeito de conhecimento capaz de estabelecer um distanciamento considerado necessário para a observação e avaliação da natureza. A relação de exterioridade, corrente na avaliação da natureza, estende-se, no século XIX, como experiência de conhecimento para as relações entre os homens. O olhar analítico e classificador procura imobilizar em momentos sucessivos de avaliação tudo aquilo que vê em constante movimento e que precisa permanecer em contínua movimentação. O fluxo ininterrupto dos homens no trabalho, dos homens se deslocando pelas ruas, dos homens ocasionalmente fora do trabalho, dos homens que tiram seu sustento trabalhando nas ruas, dos homens que vagam recusando-se a trabalhar, dos homens que se mantêm através de expedientes pouco confessáveis: tudo é submetido a esse olhar avaliador. A cidade se constituirá no observatório privilegiado da diversidade: ponto estratégico para apreender o sentido das transformações, num primeiro passo, e logo em seguida, à semelhança de um laboratório, para definir estratégias de controle e intervenção. Não por acaso, à frase de Vítor Hugo: "A França observa Paris e Paris observa o faubourg Saint Antoine" (Os Miseráveis), corresponde um axioma da polícia londrina. "Guarde-se St. James vigiando-se St. Giles."

Nos dois casos, os objetos de constante vigilância são os bairros operários, cujo potencial de revolta é considerado mais ameaça-dor, onde, portanto, os sinais da revolução podem ser detectados. Nesses anos cinqüenta do século passado, tinha-se já formulado um quadro conceitual que, recolhendo inúmeras experiências de investigação da nova sociedade, permitia distinguir na diversidade aparente duas entidades distintas e antagônicas. É parte dessa nova sensibilidade a expressão "Duas Nações", cunhada por Disraeli para falar do abismo existente entre ricos-civilizados e pobres-selvagens. Descontado o apelo emocional, a expressão possui uma força explicativa plástica, pois remete imediatamente para a imagem de uma sociedade cindida em duas partes irreconciliáveis, com identidades próprias e diferenciadas.


 Bresciani, Maria Stella Martins. Metrópoles: As Faces do Monstro Urbano (A Cidades no Século XIX). In: Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/Editora Marco Zero, 1984/85, v. 5, nº 8/9, pp. 36-40.

quinta-feira, 17 de março de 2016

A sociedade Feudal


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A Idade Média

O Cotidiano Medieval

quarta-feira, 9 de março de 2016

O requerimento de 1513

Da parte do rei, Dom Fernando, e de sua filha, Dona Juana, rainha de Castela e de Leão, domadores de povos bárbaros, nós, seus servos, notificamos e fazemos saber a vocês, da melhor maneira que podemos, que Deus nosso Senhor, uno e eterno, criou o céu e a terra, e um homem e uma mulher, de quem nós e vocês e todos os homens do mundo foram gerados e são descendentes, bem como todos que vieram depois de nós. Porém, devido à multidão de descendentes que geraram esse homem e essa mulher nos mais de cinco mil anos desde que o mundo foi criado, foi necessário que alguns homens fossem para uma região e outros para outra, e que se dividissem em muitos reinos e províncias, visto que em uma só não se podiam sustentar e conservar.

De todos esses povos Deus nosso Senhor designou um homem, chamado São Pedro, para ser senhor de todos os homens do mundo e para que a ele todos obedecessem; para que fosse dirigente de toda a raça humana onde quer que vivessem os homens, debaixo de qualquer lei, fé ou crença. A ele Deus deu o mundo por reino e jurisdição, e mandou que tomasse assento em Roma, como lugar mais adequado de onde pudesse reger o mundo e julgar e governar todos os povos, fossem cristãos, muçulmanos, judeus, gentios ou de qualquer outra fé ou crença. A esse deu-se o título de Papa, porque quer dizer admirável, grande pai e governador de todos os homens.

Os que viviam naquele tempo obedeceram a este São Pedro e tomaram-no por senhor, rei e dirigente do universo, e aqueles que depois de São Pedro foram eleitos ao pontificado têm recebido a mesma consideração. Assim tem permanecido até o dia de hoje, e assim permanecerá até que acabe o mundo.

Um dos pontífices passados que sucedeu São Pedro nessa dignidade e nesse trono na qualidade de senhor do mundo doou estas ilhas e estas terra firmedo mar Oceano aos ditos Rei e Rainha e aos seus sucessores, com tudo que contém estes territórios, como está registrado em certos documentos que discorrem sobre o que foi dito, e que vocês poderão examinar caso desejarem.

Portanto, em virtude da mencionada doação, suas majestades são reis e senhores destas ilhas e desta terra firme. Algumas ilhas, e na realidade praticamente todas que têm sido notificadas desta maneira, têm recebido suas majestades como reis e senhores, e os têm obedecido e servido como súditos devem fazer: servindo com boa vontade e sem nenhuma resistência e portanto sem atraso, assim que foram informados dos fatos acima mencionados. Esses povos obedeceram e acolheram do mesmo modo os religiosos que suas altezas lhes enviaram para pregar e ensinar a nossa Santa Fé; todos eles de sua livre vontade e de bom grado, sem prêmio nem condição alguma, tornaram-se cristãos e assim permanecem, e suas majestades os acolheram com alegria e benignidade, e em conformidade mandaram que fossem tratados como os demais súditos e vassalos – sendo que vocês estão sujeitos e são obrigados a fazer o mesmo.

Pelo que, da melhor maneira que podemos, rogamos e requeremos que vocês entendam bem o que dissemos, e que tomem para entendê-lo e deliberar sobre ele o tempo que for justo; que reconheçam a igreja como senhora e dirigente do mundo universo, e ao Sumo Pontífice, chamado Papa, em seu nome, e ao Rei e à Rainha Dona Juana, nossos senhores, em sua condição de dirigentes e reis destas ilhas e terra firme, por virtude da mencionada doação, e que consintam e deem ocasião para que esses padres religiosos declarem e preguem o que acima foi dito.

Se concordarem em fazer aquilo a que estão sujeitos e obrigados, estarão fazendo bem. Suas altezas, e nós em seu nome, os acolheremos com todo amor e caridade, e deixaremos livres e sem escravidão a vocês, a suas mulheres e filhos e às suas terras, para que façam delas e de vocês mesmos o que bem entenderem e quiserem, e não os obrigarão a tornarem-se cristãos – a não ser que, informados da verdade, queiram converte-se à nossa santa Fé Católica, como têm feito quase todos os habitantes das ilhas vizinhas. Além disso, suas majestades lhes darão privilégios e regalias e lhes concederão inúmeros benefícios.

Se assim não fizerem, ou se maliciosamente adiarem a decisão, certifico que com a ajuda de Deus entraremos poderosamente no seu território, faremos guerra contra vocês de todos os modos e maneiras possíveis, e os sujeitaremos ao jugo e à obediência da Igreja e de Suas Majestades. Tomaremos como escravos a vocês, suas mulheres e seus filhos, e como tais os venderemos e disporemos deles do modo que ordenarem Suas Majestades, e tomaremos os seus bens, e a vocês faremos todos os males e danos de que formos capazes, como a vassalos que não obedecem nem querem receber ao seu senhor, mas o resistem e contradizem. E com a presente declaramos que as mortes e danos que de tudo isso resultarem serão culpa de vocês e não de Suas Majestades ou nossa, nem desses cavalheiros que nos acompanham. E de que diante de vocês dissemos e requeremos essas coisas pedimos que firme por escrito o presente escrivão, e que sejam testemunhas os demais presentes.

Fonte:http://www.baciadasalmas.com/requerimiento