quinta-feira, 20 de novembro de 2014

“ Me gritaram negra




Tinha sete anos apenas,
apenas sete anos,
Que sete anos!
Não chegava nem a cinco!
De repente umas vozes na rua
me gritaram Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!
"Por acaso sou negra?" – me disse
SIM!
"Que coisa é ser negra?"
Negra!
E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia.
Negra!
E me senti negra,
Negra!
Como eles diziam
Negra!
E retrocedi
Negra!
Como eles queriam
Negra!
E odiei meus cabelos e meus lábios grossos
e mirei apenada minha carne tostada
E retrocedi
Negra!
E retrocedi . . .
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
E passava o tempo,
e sempre amargurada
Continuava levando nas minhas costas
minha pesada carga
E como pesava!...
Alisei o cabelo,
Passei pó na cara,
e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Neeegra!
Até que um dia que retrocedia , retrocedia e que ia cair
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra! Negra!
Negra! Negra! Negra!
E daí?
E daí?
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
Negra!
Sim
Negra!
Sou
Negra!
Negra
Negra!
Negra sou
De hoje em diante não quero
alisar meu cabelo
Não quero
E vou rir daqueles,
que por evitar – segundo eles –
que por evitar-nos algum disabor
Chamam aos negros de gente de cor
E de que cor!
NEGRA
E como soa lindo!
NEGRO
E que ritmo tem!
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro Negro
Negro Negro Negro
Afinal
Afinal compreendi
AFINAL
Já não retrocedo
AFINAL
E avanço segura
AFINAL
Avanço e espero
AFINAL
E bendigo aos céus porque quis Deus
que negro azeviche fosse minha cor
E já compreendi
AFINAL
Já tenho a chave!
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO NEGRO NEGRO
NEGRO NEGRO
Negra sou!anta Cruz)

Fonte: http://www.emdialogo.uff.br/content/gritaram-me-negra

domingo, 28 de setembro de 2014

O bipartidarismo no regime militar




A partir do golpe de 1964, o governo militar assumiu as rédeas da política brasileira. Os militares precisavam garantir que a oposição não conseguisse se organizar para tentar reaver o poder. Assim, começaram os decretos e temidos Atos Institucionaisque ditavam normas de conduta e restringiam (e muito) o poder de articulação da oposição.

Dentre os documentos publicados, é importante destacar o Ato Institucional Número Dois (27 de outubro de 1965) e o Ato Institucional Número Quatro (20 de novembro de 1965). Essas duas medidas decretavam o fim do pluripartidarismo no Brasil e fechavam de uma vez os treze partidos políticos existentes. Além disso, os decretos regulamentavam a existência de dois partidos, um a favor dos militares (ARENA) e o outro em oposição (MDB).

É preciso entender que o estabelecimento do bipartidarismo teve dois objetivos fundamentais. O primeiro é intimidar a criação de movimentos revoltosos e conseguir estabelecer e perseguir os inimigos políticos do governo militar. O segundo, sem dúvida, foi forjar aos olhos da comunidade internacional, a falsa ilusão de que o Brasil era um país democrático. Em momento algum, a oposição teve recursos suficientes para fazer frente aos militares.

O nascimento do Movimento Democrático Brasileiro e da Aliança Renovadora Nacional

O partido de oposição denominado Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o da situação, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), surgiram praticamente ao mesmo tempo. A ARENA foi fundada em 4 de abril de 1966, sob um discurso conservador, e com membros associados ao governo militar, chamados de “arenistas”.

A primeira vez que os dois partidos se enfrentaram foi em 1968, durante as eleições diretas para prefeitos e vereadores. Nessa eleição, a ARENA teve uma importante vitória sobre os candidatos receosos do MDB. A diferença entre os dois partidos seria avassaladora na eleição seguinte, em 1970, quando o MDB conseguiria eleger apenas três senadores para o Congresso. A derrota foi tão impactante que os políticos do MDB se reuniram para conversar sobre o encerramento do partido, uma vez que o mesmo quase não atingiu a votação mínima necessária para poder continuar existindo, que é de 20%. A vitória nas urnas permaneceria até 1972.

O processo político ditatorial que o Brasil vivia também refletia na economia. Aliás, grande parte da popularidade da ARENA nas urnas vinha da sensação do chamado “milagre econômico”. O crescimento da economia brasileira camuflava, ou melhor, compensava os atos de opressão e de falha democrática que a população vivia. Vale a pena destacar também o título da Copa do Mundo de 1970, que foi utilizado pelos militares como medida de ilusão social.

A situação seria invertida a partir de 1973 com a Crise do Petróleo e o aumento da inflação e dos preços de produtos básicos. O fim do crescimento econômico foi caro para o governo que passou a ser contestado nas urnas. Nesse sentido, a eleição de 1974 registrou a primeira derrota da ARENA. Foram eleitos 17 senadores o MDB e apenas 5, da ARENA.

A partir de 1976, a população brasileira passou a ser mais exigente em relação aos militares. Daí em diante, os programas políticos da ARENA começavam a falar de abertura, reforma agrária, democracia representativa, desenvolvimento econômico e ocupação da Amazônia, temas bastante polêmicos para a época. Os militares já começavam apontar mudanças na tentativa de conquistar o povo e recuperar as vitórias eleitorais.

Nas eleições seguintes, em 1978, o MDB obteve novamente a maioria dos votos, todavia continuava em minoria no Congresso porque tradicionalmente a ARENA tinha muita força nos pequenos municípios. O discurso da ARENA era sempre de valorização do desenvolvimento econômico, fazendo referência às obras promovidas pelo governo militar. Contudo o crescimento da oposição ficava incontrolável e o povo fazia pressão pela reabertura política junto com o MDB.

Em 22 de novembro de 1979, o pluripartidarismo era restituído no país. A ARENA e o MDB seriam fragmentados em outras legendas, estabelecendo um modelo bem parecido com o atual. Com o fim do bipartidarismo, os parlamentares da Arena migraram para o Partido Democrático Social (PDS) e o MDB transformou-se no Partido do Movimento Democrático Brasileiro(PMDB), sob a liderança de Ulysses Guimarães. Entretanto parte dos parlamentares da oposição abandonou a legenda e criou novos partidos. Sem dúvida, esse foi um grande passo para o fim da ditadura e o movimento das Diretas Já.




segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Um breve tratado do samba


Por Nei Lopes

Um breve tratado do samba
Origem do samba na África: do tambor de crioula a outras danças dos escravos
Muito antes de denominar um gênero musical, o nome “samba” se aplicava a qualquer refrão, coro ou estribilho ritmado, de aspecto mais ou menos africano. Hoje, o samba, em seus vários estilos e modalidades, é uma forma de canto e dança e um bem imaterial valioso, gerando renda e prestígio, na condição de símbolo máximo da identidade musical brasileira.

Se voltarmos ao Brasil escravista, nos tempos coloniais e imperiais, nas breves folgas do trabalho, os escravos se agrupavam cantando e dançando.  Nas cidades, eles geralmente saíam às ruas em cortejo; da mesma forma que os das fazendas dançavam em rodas, nos terreiros.

As várias danças de roda tinham características que as aproximavam, sendo a umbigada (no momento de escolher o substituto na roda) sua característica principal. E as urbanas, em geral, ocorriam em solenidades, como as de posse dos reis simbólicos das diferentes etnias, organizadas em irmandades, portando os respectivos estandartes ou bandeiras.
Daí que veio o samba, música e dança; e se originaram as antigas manifestações em cortejo que deram origem às escolas de samba.

Observemos que, até hoje, em Angola, o vocábulo semba, mas não samba, dá nome a uma dança urbana, caracterizada pela umbigada, acima referida. E em diversas línguas locais, o vocábulo samba aparece conotando movimento, especialmente em verbos, significando “pular” e “saltar”; ou designando o entrechoque de corpos etc.
Então, não há como negar a origem africana do samba.

Abolicionismo e consequências
Com o tráfico de escravos para as Américas, iniciado já no século XVI, a África foi se despovoando e enfraquecendo (além da escravização, muitas pessoas morreram lutando ou vitimadas pelas viagens desumanas nos porões dos navios negreiros), enquanto as potências europeias ficavam cada vez mais ricas e poderosas. Até que Inglaterra, França, Bélgica, Portugal e outros países resolveram, no fim do século
XIX, dividir o continente africano entre si, para explorarem as diversas colônias.

O progresso dessas potências acabou por tornar o escravismo inconveniente. E, assim, muito menos por compaixão ou por espírito humanitário, foi que surgiu o Abolicionismo.
No Brasil, porém, a Lei Áurea decretou o fim do escravismo, mas não pensou em dar terra, casa e trabalho remunerado para os africanos e descendentes (muitos já libertos) vitimados pela escravidão. Em vez de transformar os antigos escravos em trabalhadores livres, o Estado brasileiro preferiu trazer imigrantes europeus para as frentes de trabalho, na esperança de “melhorar a raça”, como então se dizia, pelo branqueamento da população.

Então, o século XX quando chegou, encontrou nas grandes cidades massas enormes de negros (pretos e pardos) marginalizados, se “virando” como podiam... Mas também cantando e dançando as músicas de sua tradição, as quais eram chamadas, pelo povo em geral e pelas elites, de “sambas”.

Nesses “sambas”, eram cantados e dançados, em roda, principalmente cantigas da tradição baiana, basicamente refrãos ou estribilhos que se sucediam, ritmados por palmas.     
Hilária Batista de Almeida, a “Tia Ciata”, foi a mais conhecida das chamadas “tias” da comunidade baiana do Rio, antigo Distrito Federal, que eram mulheres negras civilmente livres, muitas delas comerciantes e mães de santo, as quais, graças a seu trabalho e sua autoridade ou influência religiosa, gozavam de relativa independência social e financeira. Como suas camaradas, Tia Ciata costumava promover em sua casa concorridas festas, sempre com fartura, música e alegria.

Foi a partir de uma dessas festas que teria nascido a composição Pelo Telefone, que se tornou um marco na história do samba.

O ano era 1916 e a baiana tinha perto de 62 anos. Ainda não havia emissoras de rádio, mas a indústria e o comércio de música, sim. Existiam através da venda de discos gravados e de partituras impressas para serem tocadas ao piano, nos teatros e nas casas das famílias remediadas. O mercado estava surgindo, e alguns músicos já percebiam que uma composição musical, caindo no gosto do povo, podia render algum dinheiro.

Foi assim que o violonista e compositor Ernesto dos Santos, o “Donga”, em parceria com o jornalista Mauro de Almeida, de um pedaço de cantiga, um estribilho, ouvido numa das festas da legendária Tia Ciata, teria criado uma composição mais extensa. Registrando-a na Biblioteca Nacional, Donga a definiu e a identificou (pois esse era um dado necessário para o registro) como “samba carnavalesco”.  Assim, o samba ganhou sua certidão de nascimento.

Do maxixe ao novo samba
Mas, nessa primeira década do século XX e até a seguinte, com José Barbosa da Silva, o “Sinhô”, Oscar José Luiz de Morais, o “Caninha”, e outros, o repertório do samba, cantado principalmente por intérpretes como Mário Reis, Francisco Alves e Araci Côrtes, pouco se distinguia, formalmente, daquele do maxixe, popularizado a partir do teatro. Em 1927, porém, a gravadora Odeon lançava A Malandragem, de Alcebía-
des Barcelos, o “Bide”, considerada o primeiro exemplar gravado de um novo tipo de samba, criado por compositores do bairro do Estácio. Entre eles, além de Bide, estavam Ismael Silva, Nilton Bastos e outros.

Por esse tempo, o jovem Noel Rosa iniciava sua carreira compondo emboladas nordestinas e outras canções nos estilos rurais, então em voga.  Admirador confesso de Sinhô, Noel já tinha notícia desse novo tipo de samba que surgia no Estácio e dali se espalhava pelos morros próximos ao Centro.

O fenômeno se expandia, e é nesse momento que refulge a forte liderança de Paulo Benjamim de Oliveira, o “Paulo da Portela”. Influenciado pelo ambiente, o jovem Noel Rosa inicia amizades e parcerias com sambistas do Morro do Salgueiro, do Estácio, da Mangueira etc. Tudo isso num momento em que certa imprensa saúda o ingresso de compositores e intérpretes de outra origem social, como o próprio Noel, num ambiente onde – conforme sucessivas edições da revista carioca O Malho, na década de 1930 –-, predominavam “macumbeiros” e “gente mal-encarada”.

O ambiente era o do rádio, inaugurado em 1922. No qual, por seu potencial motivacional e aglutinador, o samba acabou por ser utilizado como trilha sonora preferencial das ações do primeiro governo de Getúlio Vargas, em 1930. O que serviu para neutralizar o preconceito e avivar o sonho de ascensão social acalentado principalmente por Paulo da Portela.
Desde então, o samba passou por profundas transformações. E o processo culminou, em fins dos anos 1950, com o surgimento da bossa-nova, estilo, inicialmente referido como “samba moderno”, e no qual o gênero foi despojado de sua excitante conjugação de ritmos para se tornar mais compreensível aos ouvidos estrangeiros, o que, mais adiante, felizmente, acabou por dar certo.

Mas, logo após seu surgimento, a bossa-nova viu seu caminho dividido em dois: o do lirismo descomprometido e o dos políticos, como a miséria, a favela, a questão agrária etc. Assim surgia a “nova geração do samba”, impulsionadora da chamada “corrente nacionalista” da bossa-nova, na qual despontaram, por exemplo, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo, Nara Leão e Edu Lobo. Na sequência, surgiram Caetano Veloso, Gilberto Gil e Francisco Buarque de Hollanda (o futuro “Chico Buarque”), além de nomes hoje desaparecidos ou em outros caminhos.

Na segunda metade da década de 60, quando o centro irradiador das novidades internacionais deslocou-se de Paris para Londres, chegavam até o Brasil novos padrões de comportamento, sonorizados pela música dos Beatles. Aqui, isso se traduzia na “Era dos Festivais”, no movimento conhecido como Tropicalismo e no fortalecimento da jovem guarda, estilo que ocupava as paradas de sucesso desde 1965, com Roberto Carlos. No mesmo contexto, chegava ao desfile das escolas de samba (já transmitidos pela tevê) uma nova estética, com a qual as agremiações foram gradativamente abandonando a essência que lhes dera origem em proveito de uma apresentação mais espetacular.

Na imprensa, o jornalismo cultural também passava a sofrer a influência de novas correntes de pensamento, vindas de fora, para as quais o samba era visto, cada vez mais, como uma música “regional”, não cosmopolita. Nascia, aí, a designação MPB, que não se traduzia apenas como “música popular brasileira” e, sim, como música brasileira globalizada, obediente às determinações das gravadoras internacionais até hoje dominantes na indústria da música no País.

Mas a tradição do samba resistia. Sambistas importantes, como Martinho da Vila, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara, Roberto Ribeiro, Beth Carvalho, Clara Nunes, Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela conseguiam se manter ativos. E, mais do que todos, lutava o portelense Antônio Candeia Filho, o “Candeia”, líder de uma importante tentativa de reação.  Mesmo assim, o samba continuava sendo reduzido a simples classificação “cidade” e “morro” e, explicavelmente, excluído do círculo da MPB, onde agora pontificavam artistas revelados no âmbito da “nova geração do samba”.

A reação nos pagodes
Na passagem para a década de 80, aparecia o “pagode de fundo de quintal”, um estilo que, além de incorporar novos instrumentos ou modos de executá-los, servia-se também das infindáveis possibilidades harmônicas da bossa-nova.

Entretanto, nos anos 1990, em meio à desorganização da economia, a indústria fonográfica ajudava a criar uma nova crise, quando elegia como foco de seus cuidados mercadológicos apenas duas vertentes: a da música dita “sertaneja” e a do amplo leque da chamada “música pop”, no qual cabia tudo, até mesmo uma forma diluída do pagode, açucarada, com letras nas quais só cabia o amor erotizado até o extremo.

Dentro desse quadro, alguns grupos “pagodeiros” começavam a ser lançados no mercado latino, até mesmo cantando em espanhol, num surto que fez alguns artistas do estilo passarem a negar sua vinculação ao samba.

Na contracorrente, novas gerações de adeptos organizavam-se no culto ao samba “de raiz”, denominação que abrangia desde clássicos consagrados a partir da década de 30 a composições de produção recente.

A despeito de tudo isso e muito embora a ideologia colonizada de certa mídia esteja sempre a reboque das orientações internacionais, o samba permanece com toda a sua múltipla vitalidade, tocado e gravado. Em pagodes, rodas e shows, por pequenos conjuntos, à base de cavaquinho e pandeiros, por grandes orquestras etc., o samba evolui. E isso apesar de muitas vezes ter de dividir sua centralidade com o funk e derivados nascidos nas chamadas “periferias”.
 

Nei Lopes é sambista, escritor e autor, entre vários outros livros, da Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana

Fonte: http://cartafundamental.com.br/single/show/57

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Dupla jornada


Dupla jornada
A articulação entre o trabalho remunerado e o doméstico ainda é ponto de tensão na vida das mulheres brasileiras
Por Carla Sabrina Favaro, doutora em Demografia pelo IFCH/Unicamp

O século XX e o começo do XXI testemunharam o avanço de mudanças profundas na vida das brasileiras. O aumento de sua escolaridade, a entrada e permanência no mercado de trabalho, a diminuição do tamanho das famílias e o aumento dos domicílios chefiados por mulheres são algumas das alterações mais significativas na condição feminina nas últimas décadas. Diante desse quadro, um dos maiores pontos de tensão na vida dessas mulheres é a articulação entre o trabalho remunerado (produtivo) e o trabalho doméstico (reprodutivo). 

De maneira geral, o pensamento social brasileiro no que diz respeito à formação das famílias e à posição das mulheres na sociedade foi fundamentado em torno, primeiro, da ideia da casa-grande e da senzala. Havia um grande patriarca e vários dependentes em torno dele, inclusive escravos, com as mulheres livres totalmente reclusas à vida doméstica e dependentes de pais, irmãos e maridos, e as escravas fazendo todo o trabalho reprodutivo.

Em um segundo momento, surge a ênfase em um modelo nuclear de família, no qual o homem seria o chefe do domicílio, encarregado de sustentar a família, enquanto a mulher (dona de casa) cuidaria do lar e seus membros. Entretanto, esse último padrão pode ser entendido mais como um modelo ideal de comportamento do que propriamente uma regra, já que o número de exceções, principalmente nas camadas populares, é bastante significativo, com forte recorrência ao trabalho feminino.

Somente a partir de 1970, com o desenvolvimento dos estudos a partir da perspectiva feminista, o trabalho doméstico e o remunerado foram conectados. Esses estudos foram fundamentais para desnaturalizar a ideia de que o trabalho remunerado deve ser estritamente associado aos homens, enquanto o doméstico é função feminina.

Foi também nesse período que a renda do trabalho feminino passou a ser parte fundamental do orçamento doméstico, não só das classes populares. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) para o Brasil, a taxa de participação feminina no mercado de trabalho saltou de 32,9% para 52,7%, entre 1981 e 2009. Essa mudança considerável aconteceu na esteira do processo de industrialização, com suas transformações na estrutura produtiva do País, resultando, entre outras, na urbanização e nas quedas das taxas de fecundidade e consequente diminuição no tamanho das famílias, por outro.

É, portanto, no interior de um grande processo de mudança na sociedade brasileira que se deu a inserção das mulheres no mercado de trabalho. Tal inserção, porém, acontece de maneira bem diferente entre os sexos. Diferentemente do trabalho masculino – atrelado às forças do mercado e ao nível de desenvolvimento da sociedade –, o feminino possui uma dinâmica mais complexa, pois costuma entrelaçar-se à posição que a mulher ocupa em sua família e à classe social a qual pertence seu grupo doméstico. O trabalho feminino extrapola o nível individual, principalmente das mulheres casadas ou vivendo em união consensual, estando associado ao curso de vida familiar.

O patriarcalismo da sociedade brasileira ainda se faz presente na medida em que grande parte das mulheres exerce sua vida profissional com uma carga simbólica de culpa considerável, por conta da distância cotidiana dos seus filhos e das responsabilidades domésticas, enquanto que, para os homens, esse tipo de dilema nunca foi posto. Durante muito tempo, o trabalho doméstico foi considerado um “não trabalho”, já que se referia à esfera reprodutiva da vida social. E é neste contexto que os conflitos na tentativa de articulação entre o trabalho doméstico e o remunerado se desenvolvem, enquanto as mulheres avançaram no mercado de trabalho, a contrapartida masculina na esfera doméstica caminha a passos bem mais lentos.
Patriarcalismo:  É um sistema onde o homem (figura masculina) é o centro; é o soberano; é o responsável pelas decisões finais como se fosse um pai.
Segundo dados da Pnad de 2009, enquanto as mulheres casadas ou vivendo em união consensual, provedoras do domicílio ou não, gastavam em média 30 horas semanais nos afazeres domésticos, esse número caía para perto de 12 horas, no caso dos homens. Esses dados mostram que ainda há muito que se fazer para que esta diferença entre homens e mulheres diminua. Esta é, atualmente, uma das grandes reivindicações femininas. Ainda está muito presente no imaginário popular a ideia de que o homem pode ser um auxiliar das mulheres nos afazeres domésticos, quando já se sabe que o mais eficiente seria a parceria entre o casal e o compartilhamento das tarefas.

É nesse contexto que surgem diversas queixas das mulheres empregadas que têm de lidar com duplas jornadas de trabalho, como mostra a pesquisa “Trabalho remunerado e trabalho doméstico: uma tensão permanente”, da Agência Patrícia Galvão. A pesquisa mostra como as mulheres se ressentem de falta de tempo para cuidar de si ou para se dedicar a atividades mais prazerosas. O trabalho remunerado é bastante importante na vida das mulheres entrevistadas, o grande problema é a sobrecarga quando se tem de fazer a maior parte da articulação com o trabalho doméstico.

Há outro lado bastante complexo que envolve o trabalho doméstico no Brasil: o emprego doméstico remunerado. Para entendê-lo, é preciso levar em consideração três variáveis: gênero, classe social e etnia. São, em sua maioria, mulheres negras, com baixa escolaridade e pobres.

Nesse sentido, é possível afirmar que o trabalho doméstico remunerado pode ser uma boa medida para se verificar as desigualdades que estruturam a sociedade brasileira. Vários estudos já mostraram que essa atividade possui uma relação estreita com a escravidão. Por isso, durante muito tempo, o emprego doméstico foi desqualificado, já que não exigiria estudo ou preparação para o seu desempenho e ficando completamente a cargo das mulheres.

Outro ponto importante nessa equação consiste no fato de envolver, dentro de um domicílio, dois tipos de relação: a profissional e a familiar. Geralmente quando se quer mostrar a proximidade entre patrões e empregadas domésticas, estas últimas são referidas como se fossem “da família”. O grande problema reside no fato de mascarar a posição hierárquica que as empregadas ocupam, geralmente inferior, mascarando também as desigualdades neste tipo de relação e sua recorrência na sociedade brasileira. Por outro lado, sabe-se que o trabalho doméstico remunerado possui as maiores taxas de informalidade e rotatividade. A legislação que regulamenta a atividade ainda é relativamente recente, reunidas principalmente na chamada PEC das Domésticas.

Diante do quadro esboçado até aqui, é possível perceber que ainda há grandes desafios para as mulheres quanto à articulação entre o trabalho doméstico e o remunerado. As mulheres avançaram no mercado de trabalho, universo inicialmente masculino. A partir daí, adquiriram um maior empoderamento nas suas relações familiares e conjugais. Entretanto, ainda esbarram na impossibilidade de compartilhar as responsabilidades do trabalho reprodutivo e do cuidado da família. 

Publicado na Revista Carta Capital, edição 87, de junho de 2014 .

domingo, 24 de agosto de 2014

Olá moçada do Nono ano! Textos e vídeos sobre a matéria da prova:


A Era Vargas

O Populismo

Videos:

A Era Vargas

Getúlio Vargas





JK

domingo, 27 de julho de 2014

Maçonaria: A ordem

Mais famosa das sociedades secretas, a maçonaria já foi descrita como religião, filosofia e centro de conspirações. Mas afinal o que é, quais os segredos e o que acontece na suas sessões?




por Texto Sérgio Gwercman


Vamos fazer um acordo: eu conto um segredo e você, leitor, promete não revelá-lo a ninguém. Antes de topar o trato, você precisa saber que os outros quase 3 milhões de pessoas que lerem esta revista conhecerão o mesmo segredo. Mas elas também se comprometerão a ficar de bico fechado. Agora, cá entre nós: quais as chances de nenhum dos envolvidos quebrar o trato e contar o que ficou sabendo para a patroa – que por sua vez vai contar para a irmã, que vai dividir a novidade com as amigas do salão de beleza e daí para o mundo? Você apostaria na possibilidade de mantermos o tal segredo em sigilo?
Na cabeça de muita gente, a maçonaria foi capaz dessa proeza. Uma tarefa árdua. Os integrantes da mais conhecida entre as organizações secretas guardariam um grande segredo bombástico, revelado somente para quem concorda em ser iniciado numa sessão cercada de mistério. Em nome da honestidade jornalística, é preciso dizer logo no início da reportagem que se os maçons escondem um informação dessas capazes de mudar o rumo do mundo, este repórter – e os estudiosos mais influentes do tema – foram incapazes de descobrir do que se trata. Por outro lado, são vários os rituais, símbolos e conchavos políticos que deveriam ficar restritos às 4 paredes (obrigatoriamente sem janelas) de um templo maçônico, mas que estão descritos nas próximas páginas. Segredos e histórias que foram reveladas a gente graúda como Benjamin Franklin, Simón Bolívar, pelo menos 17 presidentes americanos e D. Pedro I – que entre os maçons brasileiros atendia pelo exótico apelido de Guatimozim. Nas próximas páginas, você se juntará a eles.
A história
Para quem gosta tanto de segredos, nada melhor do que começar a própria história com um relato misterioso e que não pode ser comprovado. A origem da palavra maçom está no inglês, mason, que quer dizer pedreiro. Por isso, é forte a crença de que os primeiros integrantes da organização davam duro em canteiros de obras do passado. A lenda mais famosa conta que a origem da maçonaria está na construção do grande templo de Salomão, em Jerusalém, narrada no Velho Testamento. Durante a obra, Hiram Abiff, o engenheiro-chefe, foi assassinado por 3 de seus pupilos. O motivo do crime é nebuloso, mas envolveria segredos de engenharia guardados por Hiram e uma disputa por promoções de cargo. O fato é que Hiram foi para o túmulo, mas não revelou o que sabia. Além de mártir, virou exemplo de bom comportamento maçônico. Para muitos maçons, é aí que começa a sua história, apesar de existir quem defenda que Moisés, os construtores da Torre de Babel e até Deus são maçons – afinal, o todo-poderoso não “construiu” o mundo em 6 dias?
Outra tese, também sem comprovação, é defendida por historiadores maçônicos como Christopher Knight e Robert Lomas e aponta a maçonaria como herdeira direta dos poucos cavaleiros templários que não foram trucidados por ordem do papa e do rei da França entre 1307 e 1314. Pesquisadores independentes, porém, acreditam que a origem da maçonaria moderna estaria nas corporações de ofício, espécie de sindicatos da Idade Média. Especificamente na corporação dos pedreiros, que reunia alguns dos trabalhadores mais qualificados da Europa – gente que construía catedrais gigantescas, como a belíssima abadia de Westminster, na Inglaterra, que recebe fiéis até hoje. Como esses truques profissionais significavam bons salários, era natural que os masons cultivassem o hábito de mantê-los em segredo. Ficou conhecida como “maçonaria operativa” esse período em que os integrantes da ordem colocavam a mão na massa .
Entre os séculos 16 e 17, as técnicas de construção começaram a perder valor e as corporações mudaram o tom das reuniões. Especialmente na Grã-Bretanha, elas ganharam traços de alquimia e rituais simbólicos. Também se abriram para quem não trabalhasse com construção, mas topasse guardar segredo sobre o que acontecia nos encontros. Começou a fase da “maçonaria especulativa”, voltada para o conhecimento filosófico – que dura até hoje.
O crescimento atraiu nobres. Era chique participar daqueles encontros com ar de sarau secreto. Os antigos trabalhadores, por sua vez, adoravam estar ao lado da nobreza. Em cidades da Inglaterra, surgiram lojas (como são chamados os grupos de reunião) e, em 1717, 4 delas se reuniram para fundar a Grande Loja de Londres, o “Vaticano da maçonaria”, até hoje a mais importante instituição mundial da ordem. 5 anos mais tarde foi escrita a Constituição de Anderson, texto redigido pelo maçom James Anderson que colocava no papel todas as normas e rituais transmitidos oralmente. As lojas escolheram também seu primeiro grão-mestre, um sujeito chamado Anthony Sayer, que estava longe do glamour que o cargo teria no futuro, quando seria ocupado até por herdeiros do trono inglês. Quando morreu, Sayer era um simples vendedor de livros em Covent Garden, região de Londres que até hoje é sede de uma feirinha dessas com jeitão alternativo.
Idéias
Mas o que esses homens faziam – e ainda fazem – em suas reuniões? Basicamente, discutem o caminho que o planeta deve tomar. E o rumo proposto é o da Luz, como eles se referem ao pensamento racional. A idéia é que se cada indivíduo refletir sobre suas atitudes e buscar sempre o caminho do bem e da perfeição, a sociedade vai caminhar naturalmente para o progresso. É uma filosofia, uma maneira de encarar o mundo, que foi um bocado revolucionária ao surgir no século 18, época em que reis controlavam o corpo e a Igreja, as mentes das pessoas. Para debater idéias, maçons criaram uma série de regras e tradições – o historiador inglês Eric Hobsbawn diz que o período do surgimento da maçonaria especulativa foi especialmente rico no que ele chama de “invenção de tradições”, muito por causa das rápidas transformações que a sociedade vivia com mudanças nos costumes sociais e na divisão do poder. Foi nessa mesma época que surgiriam outras organizações do tipo, como a Rosacruz e a Iluminati (veja quadro na pág. 59).
A maçonaria, que acabaria sendo a mais forte e poderosa de todas, se desenvolveu como uma fraternidade que funciona como Estado, com hierarquias e legislação. E cada maçom tem liberdade de pensamento. No fundo, a maçonaria não é uma, são várias. E ao contrário do que muitos pensam, a ordem não formou um grupo uniforme. Cada país teve autonomia para definir seus rumos e caminhos, o que fez a ordem ter inclinações diferentes ao redor do globo: na Inglaterra e no Brasil, era ligada à aristocracia política; na França, anticlerical e pragmática; na Itália, revolucionária.
Diferenças entre as maçonarias existem. Mas também há muita coisa em comum – em especial, as regras e os rituais. Ser admitido na maçonaria, por exemplo, requer paciência em qualquer lugar do mundo. O candidato precisa ser convidado por um maçom, passar por entrevistas e ter a vida investigada por integrantes da ordem. São aceitos apenas homens que acreditam em Deus, têm pelo menos 21 anos e nenhuma deficiência física.
As sessões acontecem em templos cheios de simbologia. “Entrar num templo maçônico é mergulhar num espaço codificado”, diz o sociólogo José Rodorval, da Universidade Federal de Sergipe e autor de uma tese de doutorado sobre a maçonaria. O templo não tem janelas e a entrada é voltada para o ocidente, onde a pintura é mais escura. No outro extremo, o oriente é mais claro – para a maçonaria, é dali que vem o conhecimento. É nessa área também que fica o altar de onde a autoridade mais alta comanda a sessão. Nas paredes, há 12 colunas, uma corda com 81 nós e outros símbolos como as pedras bruta e polida, que representam os momentos pré e pós-iniciação.
Durante as cerimônias, os homens vestem aventais para venerar o Grande Arquiteto do Universo, como eles se referem a Deus. Mas um Deus tratado dentro dos valores de tolerância religiosa do deísmo, tradição que recusa a idéia de que uma instituição tem o poder para fazer a ligação com o divino. E por isso um maçom pode ser judeu, católico, muçulmano. Nas sessões, Deus tem um nome específico. “Esse nome é um dos segredos mais bem guardados da maçonaria”, diz o historiador Jasper Ridley, que escreveu The Freemasons (“Os Maçons”, sem tradução em português). Mas Ridley entrega o ouro: o criador é chamado de Jahbulon, uma corruptela que reúne os nomes sagrados de Jeová, Baal e Osíris.
Essas reuniões religiosas misteriosas, adivinhem só, colocaram a maçonaria em rota de colisão com o Vaticano. Tanto que 2 bulas papais condenando a ordem chegaram a ser emitidas por Clemente 12 e Bento 14. “Como outros governos, o Vaticano também se molestava com a atmosfera de segredo com a qual se cercava a maçonaria”, diz o historiador espanhol Jose Benimeli no livro Maçonaria e Igreja Católica. A tensão hoje é menor, mas ainda existe. Em 1983, quando comandava a Congregação para a Doutrina da Fé, o hoje papa Bento 16 publicou a Declaração sobre as associações maçônicas. O texto não deixa dúvidas: “Os fiéis que pertencem às associações maçônicas estão em pecado grave”, escreveu.
Revoluções e conspirações
O Vaticano é apenas um dos desafetos da maçonaria. Ao longo da história, a ordem colecionou inimigos com a mesma força que manteve seus segredos – as 2 coisas, aliás, sempre estiveram diretamente ligadas. Pense na seguinte situação: sua vizinha está promovendo reuniões semanais na casa dela, mas não permite que você participe. Mais do que isso, ela se recusa a revelar o que está sendo discutido lá dentro. Se você tiver um mínimo “instinto de paranóia” – e a maioria de nós tem – vai achar que a dona está tramando contra você. A mesma lógica funciona para os maçons. Muitas das acusações contra a fraternidade começaram com perguntas do tipo “se é tudo boa gente, então por que raios eles não revelam o que estão fazendo?”
Assim, manter segredo mostrou-se uma ótima maneira de atrair desconfianças. Mas a verdade é que para além do mistério existe o fato de que as lojas maçônicas serviram, sim, de espaço para a agitação política. Seus ideais espelhados no iluminismo inspiraram – e muitos de seus integrantes se engajaram – em revoluções que chacoalharam o mundo, derrubaram governos e cortaram cabeças coroadas. “Ser maçom nos séculos 18 e 19 era um pouco como ser de esquerda no começo do século 20. Em geral, eram pessoas liberais, receptivas a novas ideologias e preocupadas em reorganizar a sociedade”, diz Andrew Prescott, diretor do Centro de Estudos da Maçonaria da Universidade de Sheffield, na Inglaterra. A conseqüência óbvia dessa atuação foi que a ordem freqüentou os primeiros lugares da lista de maiores inimigos das monarquias absolutistas. O efeito colateral indesejado foi que quanto mais a maçonaria era acusada de conspiradora pelos líderes aristocratas, mais ela se fortalecia. É uma espécie de autoprofecia que se cumpre. “Se as lojas maçônicas eram apontadas pelos inimigos como o lugar em que revoluções eram planejadas, então era lá que os jovens revolucionários queriam estar”, afirma Jasper Ridley.
A Revolução Francesa, por exemplo, fez da visão de mundo maçônica (liberdade para adorar qualquer deus, igualdade entre nobres e plebeus e fraternidade entre os membros do mesmo grupo) o mote do novo país que pretendia construir. E transformou uma música originalmente composta e cantada na loja maçônica de Marselha, em hino nacional – rebatizado de La Marseillaise, “A Marselhesa”. Segundo Ridley, porém, são exageradas as afirmações de que a maçonaria liderou a revolução. Marat, ideólogo de uma das alas mais radicais da revolução, e La Fayette, o militar aristocrata que aderiu ao movimento popular, eram maçons. Mas Danton e Robespierre, os 2 mais importantes líderes da França após a revolução, não.
Mais ativa foi a influência na independência americana. Pelo menos 9 das 55 assinaturas da Declaração de Independência vinham da maçonaria, assim como um terço dos 39 homens que aprovaram a primeira Constituição do país. Benjamin Franklin, um dos principais articuladores da independência, era maçom até o último fio dos poucos (mas longos) cabelos que tinha. E George Washington, líder dos rebelados, teria aparecido de avental maçônico na cerimônia de lançamento da pedra fundamental da cidade que leva o seu nome. Hoje, há quem afirme que durante sua construção a capital americana foi recheada de símbolos maçônicos (veja quadro na página 52) e, no mercado editorial, especula-se que a arquitetura da cidade será o ponto de partida para o próximo livro de Dan “O Código da Vinci” Brown. Talvez o autor também dê nova explicação para as imagens que decoram a cédula de 1 dólar, como o olho que tudo vê e a pirâmide luminosa, que parecem inspiradas na maçonaria – uma ligação que nunca foi admitida pelos desenhistas da nota.
Ventos maçônicos também foram sentidos na América do Sul. Na loja Lautaro, que tinha braços espalhados pelo continente (o nome é homenagem ao índio que liderou uma revolta contra os espanhóis no século 16), costumavam se reunir Simón Bolívar, José de San Martín e Bernardo O’Higgins, todos líderes da independência no continente. No Brasil, eram integrantes, entre outros, José Bonifácio de Andrada e Silva, o barão do Rio Branco e o príncipe regente – e depois imperador – Pedro I. Apelidado de Guatimozim, nome do último chefe asteca, D. Pedro teve ascensão meteórica na fraternidade. Foi iniciado em 2 de agosto de 1822 e promovido a mestre 3 dias depois. Menos de 2 meses mais tarde, já era grão-mestre da ordem no Brasil, cargo máximo que poderia atingir. Na mesma velocidade, passaram-se apenas 17 dias até que, já imperador, ele proibisse as atividades maçônicas no Brasil. “A maçonaria é uma fraternidade e durante as sessões todos se tratam por irmãos e são iguais. Quando percebeu que nesse círculo ele poder ter seu poder questionado e não seria apenas ‘o imperador’, D. Pedro deixou a ordem e proibiu seus trabalhos”, diz o historiador Marco Morel, da Uerj.
Nada que tenha afastado os “irmãos” das atividades políticas. Pior para os sucessores de Guatimozim: legalizada em 1831, grande parte da maçonaria se aliou ao movimento abolicionista, anticlerical e mais tarde republicano para forçar a queda da monarquia no Brasil. Apesar de existirem muitos maçons monarquistas e escravocratas, a luta contra o poder da Igreja colocou a organização na linha de frente da defesa de um estado laico, como o estabelecido em 1891 pela primeira Constituição republicana. Para os adversários, foi a comprovação do caráter conspirador da ordem. Os maçons diziam agir dentro de sua filosofia: lutavam por um país mais racional, e com ordem, que só assim chegaria ao progresso.
Os segredos
E o segredo, você deve estar perguntando. Qual é o grande segredo da maçonaria, aquele que aguçou séculos de curiosidade? “O segredo consiste de rituais e códigos. São apenas algumas palavras”, diz Andrew Prescott, da Universidade de Sheffield. O negócio é que os maçons cultivam com cuidado o silêncio. Quem já viu um texto maçônico sabe disso. As frases tem abreviações aparentemente indecifráveis. Mas a coisa até que é simples. Algumas palavras são reduzidas a sílabas e acrescidas dos 3 pontos em forma de delta – o mesmo símbolo que aparece ao lado da assinatura de um maçom. Loj é Loja; Ir é irmão, como os maçons se referem uns aos outros; Prof é profano, ou seja, quem não é da maçonaria. Há palavras reduzidas às iniciais e duplicadas em caso de plural. VVig quer dizer vigilantes; AApr , aprendizes. G A D U é o Grande Arquiteto do Universo. Também é comum ver inscrições que devem ser lidas da direita para a esquerda, numa referência ao alfabeto hebraico. MOCAM, por exemplo, quer dizer “maçom”.
Existem ainda toques e sinais para quem é da maçonaria. E esses são os mais secretos. No aperto de mãos, por exemplo, maçons se reconheceriam ao encostar o indicador no punho de quem está sendo cumprimentado. Outro sinal para identificação fora dos templos seria passar a mão pelo cabelo, virando-a durante o movimento. E como durante as cerimônias os maçons devem estar sempre eretos, uma maneira de se comunicar em lugares públicos é endireitar a coluna e colocar os pés em forma de esquadro. O abraço maçônico, presente em vários rituais, consiste em colocar um braço por cima e outro por baixo, em “X”, bater 3 vezes nas costas e trocar de posição outras 3 vezes.
Outra corrente de pesquisadores afirma que o segredo maçônico é uma coisa íntima, que nasce no fundo do coração de cada maçom. Afinal, se para os que estão do lado de fora a maçonaria é uma organização com forte inclinação para a política, para os que estão do lado de dentro tão ou mais importante é o conhecimento intelectual. “O segredo é uma espécie de viagem espiritual que o iniciado faz e que dificilmente poderia exprimir-se com palavras. É algo que o maçom guarda para si. Quanto mais velho, mais volumoso é o seu segredo, composto dos resquícios de suas experiências de vida”, diz Jesus Hortal, reitor da PUC-RJ, em seu livro Maçonaria e Igreja.
Tantas hipóteses para explicar qual seria o mistério maçônico fez surgir até o grupo dos céticos. Gente como o filósofo John Locke, que sugeriu que o grande segredo guardado pela maçonaria é que não existe segredo nenhum. O que, cá entre nós, seria uma revelação de proporções nada desprezíveis. “Mesmo que a inexistência de algum segredo seja o grande segredo maçônico, não é uma pequena proeza manter isso em segredo”, afirmou Locke.
A maçonaria manda no mundo?
Andrew Prescott e Jasper Ridley integram o time de historiadores que defendem a tese de que a influência da maçonaria nos rumos da história foi superestimada ao longo dos tempos. Do outro lado, a lista dos que apontaram o dedo para a maçonaria é grande. Inclui praticamente todos os papas que passaram pelo Vaticano nos últimos 300 anos; o general Franco, ditador da Espanha, escreveu um livro sob o pseudônimo de J. Boor em que acusava os maçons de serem responsáveis pela decadência da sociedade espanhola; e Adolf Hitler, que promoveu exposições de “arte antimaçônica” e afirmou que a ordem secreta sucumbira aos interesses judaicos – a fonte da acusação pode estar nos Protocolos dos Sábios de Sião, livro sagrado do anti-semitismo no século 20, que usou documentos falsos para “comprovar” a existência de uma conspiração judaica e afirmar que a maçonaria era um dos instrumentos à disposição dos judeus.
Desde a virada do século 20, no entanto, é proibido em sessões maçônicas falar de política e religião (futebol vale). Como a maçonaria não tem um corpo único – cada país é autônomo e existem diversas dissidências – a decisão não vale para todas as pessoas que se dizem maçons. Mas, na prática, a mudança deixou os encontros maçônicos bem menos agitados do que nos tempos em que reunia revolucionários como Simón Bolívar. Coincidência ou não, desde a proibição as histórias (e os boatos) envolvendo a maçonaria rarearam – a última vez que alguém lembrou de citar a ordem como possível culpada em algum grande mistério foi na morte de João Paulo 1o, em 1978, que supostamente teria descoberto ramificações da fraternidade dentro do Vaticano e por isso acabou assassinado após 33 dias de pontificado. Em outros tempos, certamente alguém afirmaria que eventos como a Guerra do Iraque, os atentados em Londres ou a convulsão do Ronaldinho às vésperas da final da Copa da França haviam sido tramados pela maçonaria. Seria esse ocasião da ordem na lista de grandes conspiradores mundiais um sinal de que a poderosa organização secreta está perdendo a força? Muitos estudiosos acreditam que sim. “Atualmente, a maçonaria mais parece uma tentativa por parte de homens bem-intencionados, na maioria brancos e velhos, de entender o sentido da vida”, afirma o historiador americano H. Paul Jeffers, autor de Freemasons (“Maçons”, sem versão brasileira).
O que não quer dizer que seus integrantes tenham se afastado do poder. Muitos maçons brasileiros adoram listar pessoas importantes que integram a ordem. São empresários, policiais de alta patente, políticos, juízes. Todos unidos pelo compromisso de ajuda mútua – irmão que é irmão nunca deixa outro na mão. Atualmente, por exemplo, circula entre os maçons paulistas a história de um julgamento recente, parte de um escândalo nacional, que caminhava para a condenação do réu e mudou de rumo após telefonemas entre altos membros do tribunal. Advogados, juízes e o acusado eram iniciados da ordem.
Casos assim são freqüentemente ouvidos, ainda que na maioria das vezes em tom de boato. E preocupam muita gente. Por mais que os integrantes da maçonaria sejam gente da mais fina estirpe e dotados das melhores intenções, será que têm condições de abandonar os valores e pactos da fraternidade na hora de exercer cargos na sociedade pública? Entre os que acham que não estão os líderes da campanha britânica, encampada por setores do Partido Trabalhista, para que todos os maçons sejam obrigados a se revelar como tal – e eventualmente proibidos de trabalhar na polícia e na Justiça. Assim, evitariam ter a chance de auxiliar amigos em situação delicada. “Os críticos fazem acusações como se integrar a maçonaria fosse muito diferente de ser sócio de um clube de golfe”, diz Andrew Prescott, da Universidade de Sheffield, para quem a campanha é um exagero. Pode até ser. Mas será que há mesmo um clube de golfe metido em tantas histórias, revoluções e rituais misteriosos? Se existir, vive em segredo.

Robert Langdon vem aí

Para quem adora escrever sobre os cavaleiros templários, teorias da conspiração e Vaticano, a maçonaria é um prato cheio. Não chega a ser surpresa, portanto, que o escritor Dan Brown tenha prometido voltar os olhos para a organização secreta em seu próximo livro. O autor de O Código da Vinci afirmou que a obra deve se chamar The Solomon Key (”A Chave de Salomão“) e ter a ação em solo americano. O ponto de partida para o professor Robert Langdon, especula-se, seria Washington e sua arquitetura supostamente repleta de símbolos maçônicos. Veja abaixo por onde a trama de Brown pode passar.
Washington Family Portrait
O quadro de Edward Savage (abaixo) mostra 3 integrantes da família Washington reunidos ao redor de um mapa da cidade. Todos apontam para o plano, formando com os dedos uma misteriosa área triangular. No canto da imagem, o neto de Washington segura um compasso – símbolo maçônico – sobre o globo terrestre. Dá até para imaginar Langdon observando o quadro, exposto na National Gallery of Art.

Monumento a Washington
A idéia original era colocar aqui os restos mortais de George Washington, mas a família do ex-presidente vetou o plano. A pedra fundamental do monumento foi lançada pelo grão-mestre da maçonaria na cidade, em 1848. A história do obelisco está, indiretamente, ligada ao Vaticano: uma pedra de mármore foi doada pelo papa Pio 9o para sua construção. Mas o bloco foi roubado e sua localização até hoje é desconhecida.

Avenida Pennsylvania
Alguns especialistas afirmam existir um alinhamento da avenida, no trecho entre a Casa Branca e o Capitólio, com a estrela Sirius, que é associada à deusa Ísis, do Egito antigo. Pode estar aí um dos elementos do sagrado feminino de que Brown tanto falou em O Código da Vinci.
Compasso entre Capitólio, Casa Branca e Memorial a Jefferson
Muita gente vê no mapa da cidade um compasso com a cabeça no Capitólio e cada uma das pernas na direção da Casa Branca e do Memorial a Jefferson. "É possível aplicar esse desenho triangular a qualquer mapa e fazê-lo funcionar. O que não quer dizer que ele estava previsto no plano original da cidade", diz Paul Dolinsky, chefe do órgão do governo americano responsável pelo patrimônio arquitetônico do país.

Maçons que fizeram história

Amadeus Mozart
O compositor era bastante ativo numa das lojas de Viena. Compôs pelo menos 8 canções para a ordem e colocou tantos símbolos maçônicos em A Flauta Mágicaque a ópera chegou a ser descrita como um “livreto de propaganda pró-maçonaria”.
Jânio Quadros
É o único presidente na história do Brasil comprovadamente maçom – apesar deFHC também ser freqüentemente apontado como membro da ordem. Fotos do maçom Jânio decoram a ante-sala do grão-mestre da principal loja de SP.
Simón Bolívar
Ícone da independência sul-americana, o venezuelano freqüentava a loja maçônica Lautaro, conhecida pelo discurso antiespanhol. Revolucionários como San Martín e Bernardo O’Higgins também participavam das sessões .
Harry Truman
Antes de ocupar a Presidência americana durante a 2º Guerra Mundial e autorizar o lançamento das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, foi grão-mestre da maçonaria no Missouri, seu estado natal.
D. Pedro I
O imperador teve uma relação de amor e ódio com a maçonaria. Sua passagem pela ordem durou 3 meses. Tempo suficiente para ele ser iniciado, ascender a grão-mestre e então proibir todas as atividades maçônicas no Brasil.
Benjamin Franklin
Cientista e ativista político americano, usou seus contatos nas maçonarias da França e da Inglaterra para conseguir apoio à causa da independência dos EUA, da qual foi um dos principais líderes.

Para entrar no grupo

Conheça os principais momentos da cerimônia de iniciação no rito escocês antigo e aceito, o mais praticado no Brasil
1. De peito aberto
Com os olhos vendados o iniciado é levado ao templo por um maçom que vai acompanhá-lo durante toda a cerimônia. Ele deverá ter nus a perna direita, até a altura do joelho, e também o lado esquerdo do peito – a origem desse costume seria uma tentativa de se certificar que não se trata de uma mulher.
2. 360o
Antes de começar a iniciação, o candidato é girado em torno de si para perder o senso de direção. A seguir, começa a cumprir as provas que representam a passagem por fogo, água, ar e terra. Numa delas, ouve espadas tinindo ao redor do templo.
3. Montanha-russa
O iniciado encontra obstáculos: uma gangorra onde sobe sem saber que está prestes a cair. Ou uma almofada de pregos em que é convidado a descansar – os metais serão retirados poucos antes de ele sentar. A idéia é testar sua confiança. Depois, é levado para uma pia, onde se purifica lavando as mãos, e é incensado 3 vezes.
4. Batismo de sangue
O iniciando se compromete ao sacrifício pela pátria, pela humanidade e pela ordem. O venerável mestre então manda imprimir em seu peito uma marca que o tornará reconhecível para todos os maçons – na verdade, aproxima da pele um pedaço de ferro aquecido que transmite a sensação de calor.
5. Sim ou não
Após se comprometer a guardar em segredo tudo que escutar e a fazer caridade, o iniciado deixa o templo para os maçons decidirem se o aceitarão. Em caso positivo, o rito segue. Com um compasso numa mão e a outra sobre a Bíblia, o iniciado faz um juramento. O mestre diz: "De hoje em diante,estais ligado para sempre à nossa ordem".
6. Faz-se a luz
Mais uma vez o iniciado sai da sala. Quando volta, encontra o templo às escuras e todas as espadas apontadas para ele. Só um sustinho. As luzes são acesas e, com uma espada sobre a cabeça, o iniciado recebe o avental de aprendiz e ouve a revelação dos segredos como toques, palavras e sinais. Está para sempre na maçonaria.

Os símbolos

COMPASSO
O instrumento que desenha círculos perfeitos significa a busca pela perfeição. É o símbolo do raciocínio maçônico.
ESQUADRO
Seu ângulo reto mostra como o homem deve levar uma vida honesta. Ao lado do compasso, representa a união de idéias e ações.
AVENTAL
Lembra que todo homem nasceu para o trabalho e que um maçom deve trabalhar insistentemente para a descoberta da verdade e melhora da humanidade.
TRÊS PONTOS
Tem várias interpretações reconhecidas. Lembra o místico delta, faz referência ao tripé liberdade, igualdade e fraternidade e às qualidades indispensáveis ao maçom: amor, vontade e inteligência.
COLUNAS
Um templo deve ter 12, para lembrar os 12 signos do zodíaco.

Os secretos

Templários
A ordem com sede no templo de Jerusalém foi criada após a Primeira Cruzada para proteger peregrinos. Vitaminada por doações de nobres, ganhou poder a ponto de incomodar o rei da França e o papa. Juntos, eles tramaram para mandar os templários para as fogueiras da Inquisição.
Iluminati
Fundada em 1776, pretendia se infiltrar nos governos para controlar decisões nacionais. A ambição gerou perseguição feroz e em menos de 10 anos a sociedade estava praticamente exterminada.
Rosacruz
A ordem que prega a tolerância religiosa fez muito sucesso com os intelectuais do século 17. Seus rituais e sinais secretos têm seguidores até hoje.
Skull and Bones
Para muitos, é a mais poderosa sociedade secreta atual. Aceita apenas alunos da Universidade Yale, uma das mais elitizadas dos EUA. Entre seus integrantes estão George W. Bush, seu adversário nas últimas eleições John Kerry, ministros da Suprema Corte ealguns dos mais influentes empresários do país.

Para saber mais

A Maçonaria - Ralph Beck, Planeta, 2005
Freemasons - H. Paul Jeffers, EUA, 2005
Maçonaria e Igreja Católica - Benimeli, Caprile e Alberton, Paulus, 2003
The Freemasons - Jasper Ridley, EUA, 2001
A Ação Secreta da Maçonaria na Política Mundial - José Castellani, Landmark, 2001
www.gob.org.br - Site do Grande Oriente do Brasil

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Orixás, forças de Olorum

Na tradição iorubá, os orixás são entidades sobrenaturais, forças da natureza emanadas de Olorum, uma das divindades da criação. Guiam a consciência dos vivos e protegem as atividades de manutenção da comunidade. No Brasil, as religiões que cultuam os orixás jeje-iorubanos recebem os nomes regionais de candomblé (Rio de Janeiro), xangô (Pernambuco e Alagoas), tambor de mina (Maranhão e Pará) e batuque (Rio Grande do Sul). Os principais orixás cultuados no Brasil são:
OxaláNome brasileiro do orixá Obatalá, emanação direta de Olorum. É o criador da humanidade e sua função é dar forma aos humanos ainda no ventre materno. Sua cor é o branco, seu símbolo o cajado e seu dia é sexta-feira.
IemanjáGrande orixá feminino das águas, reverenciada no Brasil como mãe de todos os orixás. Sua festa é no dia 2 de fevereiro, mas é muito homenageada na noite de 31 de dezembro nas praias do Rio de Janeiro, principalmente. Um de seus símbolos é um colar de contas cristalinas como água. Seu dia é sábado e sua cor é o azul.
 Fonte: Revista de História

Bahia de todas as Áfricas

A trajetória dos líderes e devotos do candomblé do século XIX revela que a história das religiões afro-brasileiras é, sobretudo, a de crescente mistura étnica e social

João José Reis
Foi na Bahia do século XIX que ficou estabelecido o modelo básico adotado pelo candomblé que conhecemos hoje. Segundo a tradição, o Ilê Iya Nassô – a Casa de Mãe Nassô, popularmente conhecido como Candomblé do Engenho Velho ou Casa Branca – teria sido o primeiro a celebrar diferentes deuses simultaneamente sob o mesmo teto. Essa prática refletiria alianças entre grupos étnicos diferentes, contribuindo para a consolidação de novas identidades africanas em terras brasileiras.
Mas teria sido aquele terreiro o único com essas características no ambiente que o viu nascer? Pouco se sabe sobre a história das religiões afro-brasileiras no século XIX, inclusive sobre os indivíduos e grupos envolvidos. É a respeito de líderes, acólitos, devotos e clientes que vamos falar aqui. Informações sobre homens e mulheres participantes de formas diversas nesses rituais aparecem basicamente em dois tipos de fontes, os registros policiais e as notícias de jornal. Esses documentos eram produzidos por indivíduos que, em geral, não eram iniciados no candomblé, não tinham interesse nele como tema de pesquisa, curiosidade ou lazer, e que o estavam perseguindo e/ou condenando. Por isso, as informações que apresentam são quase sempre incompletas, distorcidas ou simplesmente equivocadas. Apesar disso, elas revelam muito das práticas e dos praticantes ligados aos cultos de origem africana ao longo do século XIX.
Durante esse período, na Bahia, a maior atividade do candomblé acontecia nos subúrbios de Salvador. Apesar disso, não foram poucas as denúncias de episódios acontecidos na cidade, sob as barbas da polícia, como insistia O Alabama, periódico “crítico e chistoso”, publicado entre 1864 e 1871. Dedicando-se a uma dura e sistemática campanha contra os candomblés baianos, o jornal publicava, com considerável freqüência, histórias de pessoas envolvidas nesses rituais.
Os que podem ser considerados líderes do candomblé não eram apenas os indivíduos que presidiam os terreiros propriamente – ou seja, uma comunidade religiosa com seu grupo de iniciados, estrutura hierárquica e organizacional, calendário de festas, e assim por diante. Eram também os auxiliares mais próximos dos chefes de terreiros, incluindo, por exemplo, o líder dos tocadores de atabaques e o responsável pelo sacrifício votivos de animais. Com freqüência, adivinhos e curandeiros atendiam em casa, sem participar da hierarquia dos terreiros de candomblé. Alguns atraíam centenas de consulentes, mesmo de fora da Bahia, até da África.
Nomes como o da sacerdotisa Nicácia, uma mulata que teria morrido em 14 de março de 1807, conforme foi registrado com precisão, no final do século XIX, em um Resumo chronologico e noticioso da Província da Bahia desde seu descobrimento em 1500. Segundo o autor da obra, o registro de Nicácia fora feito porque ela “tão falada foi por muito tempo, e da qual inda hoje se referem factos interessantes.” Infelizmente ele não relata esses “factos.” Moradora no Cabula, na época periferia rural e hoje bairro popular de Salvador, Nicácia demonstrou seu carisma alguns meses antes quando fora seguida por uma multidão até cidade, presa por ordem do governador da capitania da Bahia, o Conde da Ponte. Esse governador desencadeou uma vigorosa campanha repressiva contra candomblés e quilombos nos arredores da capital e no Recôncavo dos engenhos.  Mas a perseguição aos cultos afros aconteceu durante quase todo o século XIX na Bahia.
Amaro, um liberto africano, foi uma vítima. Preso em novembro 1855 em incursão policial provocada por rumores de uma conspiração de escravos, era suspeito de ser “o grande sacerdote dos africanos” no distrito da Sé, populoso centro administrativo e religioso de Salvador. Com ele foi encontrada a maioria dos “vários objectos de [...] crenças” africanas confiscados em sua casa e outras da vizinhança. Alguns desses objetos foram assim descritos pelo subdelegado: “figuras, símbolos, sapos mortos e secos, chocalhos, pandeiros e algumas vestimentas”. Nessa mesma ocasião, na freguesia de Santana, foi preso o crioulo (preto nascido no Brasil) Francisco Antonio Rodrigues, o Vico Papai, segundo relatório policial porque “com embustes e superstições reúne em sua casa Africanos escravos para danças e [para] batuques com ofensa à moral pública”. Nem Amaro nem Vico Papai estavam liderando conspiração alguma, mas sim cultos da religião africana, o que não deixava de ser uma forma de rebeldia.
A maioria dos líderes identificados no período tinha nascido na África. É possível ir um pouco mais longe na tentativa de determinar a origem deles. Os escravos importados para a Bahia ao longo da primeira metade do século XIX vieram principalmente de povos do grupo lingüístico gbe, localizados sobretudo na atual República de Benin, conhecidos como jeje na Bahia; ou eram falantes do iorubá, vindos do Sudoeste da atual Nigéria e chamados nagôs na Bahia. Maiores vítimas do tráfico transatlântico nos anos que antecederam sua proibição definitiva, em 1850, os nagôs alcançaram a marca de quase 80% dos escravos africanos em Salvador na década de 1860. Tradições religiosas nagôs e jejes predominaram no candomblé da Bahia oitocentista, mas no final do século os nagôs já tinham estabelecido sua hegemonia.
Embora candomblé seja um vocábulo de origem banta (família língüística dos escravos chamados no Brasil angolas, congos, benguelas, cabindas etc., trazidos principalmente de território da atual Angola), poucas são as evidências escritas sobre cultos especificamente bantos no século XIX baiano. Mas temos algumas expressões  como candonga e milonga para designar feitiçaria, e calundu, para definir a prática religiosa africana em geral. Este último termo, que predominou até o final do século XVIII, foi mais tarde substituído por candomblé. É possível, porém, identificar uns poucos sacerdotes angolas entre os líderes desse universo religioso.
O papel de líder era também desempenhado por crioulos, pardos e até brancos. Tem-se notícia que, em julho de 1859, o português Domingos Miguel e sua amásia, a parda Maria Umbelina, foram presos numa casa à rua Coqueiros d’Água de Meninos, porque ali organizavam um candomblé com “danças e objetos de feitiçaria”, dele participando homens e mulheres pardos, crioulos e africanos, escravos, livres e libertos. Foram presas dezesseis pessoas. Que o português estivesse envolvido naquela experiência religiosa parece provável, mas é possível que a batuta ritual estivesse de fato nas mãos de sua amante parda ou de outra pessoa do grupo; talvez nas mãos de Felisarda Sulana, escrava e única africana presa com o grupo.
Nenhuma dúvida foi deixada pela polícia no caso da outra pessoa branca em nossa lista de líderes. Maria Couto foi abertamente acusada de ser “dona ou diretora” de um “grande candomblé” no Saboeiro, arredores de Salvador, que estivera ativo – batendo tambor e dançando para os deuses – por alguns dias em abril de 1873, até ser denunciado por vizinhos alarmados. Segundo o chefe de polícia, além de moradores locais bem conhecidos, estranhos armados e escravos fugidos freqüentavam aquelas cerimônias, o que recomendava cuidado. O chefe de polícia ordenou ao subdelegado daquele distrito que prendesse Maria Couto e a levasse à sua presença – sinal de que ele achava pouco usual, talvez preocupante, ou apenas curioso, o fato de uma casa de candomblé ser liderada por uma mulher branca.
Alguns escravos faziam parte da liderança religiosa africana. O mais antigo documento conhecido no qual o termo candomblé aparece é relativo ao escravo angola Antônio, descrito por um capitão de milícias em 1807 como “presidente do terreiro dos candombléis”. Observe-se que aqui também aparece a palavra terreiro associada a candomblé, outra novidade. Um bem-sucedido sacerdote, adivinho e curandeiro, Antônio vivia longe de sua senhora, em terras localizadas em um engenho no rico município açucareiro de São Francisco do Conde, onde ele tinha estabelecido seu terreiro. Ali, o escravo era procurado por “número maior [de pessoas] de alguns Engenhos vizinhos nas vésperas de dias santos e Domingos”. Segundo um relatório policial, ele exigia, “apesar de ser moço, que lhe tomassem a benção, e lhe prestassem obediência, inda os mais velhos”. De início, Antônio conseguiu escapar às forças de milícia enviadas para capturá-lo, subornando um feitor do engenho, o que sugere que tinha acesso a algum capital obtido de sua prática religiosa. Seis escravos foram presos para informar onde Antônio se escondera. Ele foi preso porque o feitor subornado não cumpriria sua parte no trato.
Para ser chefe de terreiro, que implicava dedicação grande de tempo, um escravo tinha que ter relações especiais com seu senhor.  Era o caso de Antônio, cuja senhora o deixava viver sobre si. Infelizmente não sabemos por que. É capaz que ela temesse seus poderes espirituais e se intimidava com seus conhecimentos de ervas venenosas. Mas a explicação pode ser mais simples: como muitos outros senhores, ela o autorizava a trabalhar sem impedimentos, desde que lhe pagasse parte da renda adquirida. Há casos do período colonial de senhores que chegaram a agenciar escravos curandeiros e por isso tiveram que dar satisfação à Inquisição.
Uma expressiva maioria dos líderes do candomblé havia nascido livre ou, principalmente, adquirido a alforria por compra ou doação. Os libertos formavam um setor importante da população africana e crioula na Bahia, sobretudo na capital, onde o sistema do ganho facilitava o acesso do escravo ao trabalho remunerado − como carregadores, vendedores, operários e artesãos −, que permitia a formação da poupança amiúde usada para a compra da alforria. Foram os libertos, sobretudo, os maiores responsáveis pela estruturação do candomblé baiano nesse período. Alguns deles haviam provavelmente obtido a liberdade com dinheiro ganho com práticas divinatórias, curas e outros trabalhos, ou essas práticas complementaram formas mais convencionais de ganhar a vida e a liberdade.
"Apesar de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias".
Negociantes, quitandeiros, ambulantes, vendedores eram algumas das ocupações de muitos dos adivinhos, curandeiros, pais e mães de terreiros. Mas não deviam ser poucos os sacerdotes africanos vivendo exclusivamente da religião, a se considerar os muitos clientes que, segundo as fontes, eles tinham. Esses clientes em geral deixavam, individualmente, pouca coisa na esteira do adivinho ou do curandeiro, mas de vez em quando pequenas fortunas podiam ser ali gastas. Como aconteceu com a africana liberta Maria Romana que, em 1856, acusou um certo Jorge, africano liberto como ela, de lhe tomar todo o dinheiro, jóias, além de um baú de roupas e até uma casa, como remuneração pelo tratamento de seu marido, o também africano liberto Pedro Theodoro da Silva, que segundo ela teria sido lentamente assassinado com “ervas venenosas” feitas por Jorge. Depois de sete meses tentando negociar, sem sucesso, uma reparação, Maria resolveu denunciar Jorge à polícia. Não se tem notícia do desfecho dessa história.  Mas decerto, a reputação do acusado foi arruinada com o escândalo.
Era comum que esses líderes fossem despóticos, o que podia até elevar o seu prestígio, mas eles tinham de balancear essa reputação com outra mais positiva de generosidade, proteção e sobretudo eficiência ritual. Esta última é que ajudava as religiões africanas a recrutar, desde o período colonial, devotos e clientes de diversas camadas sociais.
Apesar de sua origem em grupos étnicos específicos da África, na Bahia o candomblé se caracterizou por um movimento crescente de mistura cultural, étnica, racial e social. Isso começou entre os próprios africanos de diferentes etnias. Documentos relativos ao fim do século XVIII e à primeira metade do XIX, ainda que escassos, sugerem a formação de identidades étnicas a partir dessa mistura. Em 1785, por exemplo, seis africanos foram presos em um calundu na vila de Cachoeira, no Recôncavo, onde danças, batuques e cantos eram freqüentes. Eles foram identificados por uma testemunha africana no inquérito policial como dois “marris”, dois “jejes”, um “dagomé” e um “tapá” (termo iorubá que se usava na Bahia para designar os nupes, povo da África Ocidental).
Apesar de identidades diversas e mesmo da possível hostilidade que pudesse ter havido na África entre algumas dos grupos ali representados, eles eram falantes, exceto o tapá, de línguas gbe. Portanto, antes da criação do Ilê Iya Nassô, a religião africana já servia como instrumento de alianças interétnicas na Bahia, sobretudo no mesmo universo lingüístico. Mas aqui ainda estamos exclusivamente entre africanos.
Em 1828, um juiz de paz prendeu mulheres, tanto africanas quanto crioulas, dançando para deuses africanos em Salvador, na freguesia de Brotas. Aquilo representava outro passo largo na formação do candomblé baiano: a incorporação ritual de negros nascidos do lado de cá do Atlântico. Considerando sua reação, o juiz que invadiu o terreiro se defrontara com algo novo. Em longos e coléricos relatórios ao presidente da província, ele argumentou que a mistura de crioulos e africanos para celebrar deuses d’além-mar era a ruptura de uma norma comportamental perigosa para a ordem pública; a seu ver, negras nascidos no Brasil deviam ser exclusivamente católicas.
Mas, de acordo com o juiz de paz, elas, ao contrário, “adoravam” deuses africanos sem muita preocupação em escondê-lo, embora fingissem ser devotas dos santos católicos. Era como se à mistura étnica de fato equivalesse a religiosa. O juiz não entendeu, mas testemunhava um fenômeno, novo para ele, já característico da religiosidade dos que viviam na Bahia: a circulação das pessoas através de diferentes sistemas religiosos, sem necessariamente misturá-los.
Na segunda metade do século XIX, abundam evidências sobre africanos, crioulos, mulatos e uns poucos brancos ritualmente misturados no candomblé.  Com o correr dos anos, observa-se um processo de nacionalização das bases religiosas, mesmo se a liderança ainda continuava predominantemente africana.
Em 1862, tendo sabido que um grupo de crioulos havia construído terreiro em um bairro sob sua jurisdição, num local chamado Pojavá, um subdelegado escreveu que “neste distrito nunca os crioulos se deram a tal divertimento, foi a primeira vez que aqui o praticaram com admiração de [todos]”. Essa mesma autoridade vangloriou-se de haver acabado com todos os candomblés de africanos em sua jurisdição, que representavam – escreveu – “um modo de vida dos africanos que se não queriam empregar na lavoura”. O jornal Diário da Bahia fez um perfil detalhado dos presos no candomblé do Pojavá. Dos 26 homens, um era africano, três pardos e 22 crioulos. Quanto às mulheres, duas eram africanas libertas, quatro “pardas escuras” e 29 crioulas, mas nenhuma escrava; dentre os homens, apenas quatro crioulos eram escravos. Além da predominância parda e crioula, o candomblé era formado, sobretudo, por gente livre e liberta que eram, ao contrário do insinuado pelo subdelegado, trabalhadores. Havia um tipógrafo, um escultor, um sapateiro, um pintor, um marceneiro, um aparelhador e um lavrador; dois saveiristas e dois funileiros; três alfaiates e três carpinteiros; nove pedreiros. As ocupações das mulheres não foram listadas.
A composição do candomblé do Pojavá refletia os ventos de renovação característicos do processo de nacionalização desse universo cultural no século XIX, fosse seu dirigente africano ou não. Era um candomblé predominantemente formado por gente emancipada da escravidão e, a se considerar o perfil ocupacional dos homens, gente empregada em um setor mais especializado do mercado urbano de trabalho. Eram também jovens e nascidos no Brasil. Quanto à predominância crioula, o Pajová não era exceção. No ano seguinte, 1863, um subdelegado da freguesia da Vitória declarou que ali os “filhos da terra” já tinham substituído os africanos nos “batuques de tabaques”. Entretanto, os centros religiosos africanos continuariam a existir, pelo menos, até a virada do século. E o apelo à pureza africana se tornaria índice de prestígio dos candomblés, desde essa época.
Entre os clientes ocasionais e visitantes, encontra-se nos documentos todo e qualquer grupo, fosse de cunho racial, étnico, social ou ocupacional. Havia negros, brancos e mulatos, escravos e senhores, homens de negócio e vendedores de rua, professores e estudantes, prostitutas e madames, policiais e criminosos, artesãos, empregados públicos, padres católicos, políticos. Pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que celebravam divindades específicas ao longo do ano.
Típico neste caso era o que acontecia em 1862, no centro de Salvador, numa casa na ladeira de Santa Tereza, ao lado do convento com o mesmo nome onde eram educados seminaristas. Na casa, libertos e libertas africanas, assim como “pessoas de gravata e lavadas”, participavam de cerimônias presididas por Domingos Pereira Sodré, sacerdote nagô da cidade-porto de Onim (Lagos), que havia sido escravo num engenho do Recôncavo. Sodré era um afamado adivinho e “feiticeiro” que atendia a gente de toda sorte. Mas havia muitos outros e outras. Entre a clientela de Anna Maria, mãe de terreiro angola denunciada por O Alabama em 1864, constava uma parda que queria curar o filho de feitiço, um português e uma crioula que procuravam tirar o diabo dos corpos dos respectivos amásios, um crioulo em busca de cura para seu afilhado e uma “moça”, provavelmente branca, Virgínia por acaso, que queria arrumar casamento.
Se for lícito dizer que o candomblé baiano dessa época se identificava com africanos e era encabeçado, sobretudo, por eles, é também correto dizer que essa religião aos poucos deixaria de ser uma instituição ou uma forma de espiritualidade apenas africana, nem era uma religião exclusiva de escravos.
A história do candomblé na Bahia do século XIX é, portanto, a história de sua  mistura étnica, racial e, logo, social.  Um processo que ocorreu em diversas frentes: a reunião de africanos de diferentes origens étnicas para, juntos, celebrarem seus diferentes deuses, a atração dos descendentes de africanos nascidos na Bahia e a difusão de todo tipo de serviço espiritual entre clientes de diversas origens étnicas, raciais e sociais. Obviamente isso não fez do candomblé parte da cultura dominante local, pois ele continuou a ser visto – talvez pela maior parte da população e decerto pela maioria da elite – como anticristão ou incivilizado e legitimamente sujeito à perseguição e à brutalidade policiais.
Durante todo o século XIX e por muitas décadas depois, o candomblé continuou a ser identificado como uma instituição africana. Devemos admitir que, embora essa religião tenha se difundido na sociedade, enquanto existiram africanos na Bahia, provavelmente existiram candomblés apenas de africanos, e mesmo entre estes alguns etnicamente restritos. Mas, ainda que os terreiros não tenham deixado de representar uma memória da identidade étnica – pois continuam até hoje a se definir, de acordo com sua “nação”, como nagô, ketu, jeje, angola –, tal identidade, em virtude da inclusão de tantos elementos estrangeiros, deixou de se basear na linhagem étnica para se basear na afiliação espiritual. Mesmo com a repressão policial e o menosprezo público, esse processo transcorria a todo vapor nas vésperas da abolição da escravidão, em 1888.
João José Reis é professor do departamento de História da Universidade Federal da Bahia  (UFBA) e autor de REBELIÂO ESCRAVA NO BRASIL: A HISTÒRIA DO LEVANTE DOS MALÊS EM 1835 ( Companhia das Letras, 2003)
 Fonte: Revista de História