sábado, 12 de dezembro de 2015

História ou estória

QUANDO ME PERGUNTAM

Quando me perguntam por que não aderi a essa história de "estória", respondo (e não evasivamente) que é simplesmente porque, para mim, tudo é verdade mesmo. Acredito em tudo. Acreditar no que se lê é a única justificativa do que está escrito. Ai do autor que não der essa impressão de verdade! Que é uma história? É um fato - real ou imaginário - narrado por alguém. O contador de histórias não é um contador de lorotas. Ou, para bem frisar a diferença, o contador de histórias não é um contador de estórias. E depois, por que hei de escrever "estória" se eu nunca pronunciei a palavra desse modo? Não sou tão analfabeto assim. Parece incrível que talvez a única sugestão infeliz do mestre João Ribeiro tenha pegado por isso mesmo... Também um dia parece que Eça de Queirós se distraiu e o Conselheiro Acácio, por vingança, lhe soprou esta frase pomposa: "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia." Tanto bastou para que lhe erguessem um monumento, com a citada frase perpetuada em
bronze! Pobre Eça...
O mundo é assim.

Mario Quintana - Caderno H

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A formação da mentalidade do homem moderno

A partir do final da Idade Média, com a transição para o capitalismo, uma nova classe social se destaca como determinante nas relações sociais, a burguesia. Lentamente esta classe, e as transformações sociais, colocam fim aos antigos valores da nobreza, criando um mundo com uma mentalidade cada vez mais burguesa.

A burguesia foi adquirindo cada vez mais poder econômico, mas era limitada em suas ações pela cosmovisão da Igreja, que dentre outras coisas, proibia a usura. Os ideais da nobreza também impediam o sucesso dos burgueses, já que não valorizavam o trabalho e o lucro. Os séculos XV e XVI foram o período de maior transformação econômica e social benéficas à burguesia.

O primeiro grande movimento foi a formação dos Estados Nacionais. A Idade Média havia se caracterizado pela fragmentação política, com a existências de inúmeros feudos e um poder real enfraquecido. Isso começa a se modificar com a crise do feudalismo, que resultou na formação dos Estados europeus, como Portugal, Espanha, Inglaterra e França. A unidade política, administrativa e territorial beneficiou o avanço econômico da burguesia nesse processo, já que tinham uma infraestrutura mais adequada ao comércio.

Essa centralização do poder real precisava de um respaldo ideológico para sua sustentação. Por isso, vários pensadores elaboraram teses explicativas sobre a necessidade do poder real. Um desses pensadores foi Thomas Hobbes, que afirmava que a única forma de se manter a ordem social e tirar o homem de seu estado de violência, já que `o homem é o lobo do homem`, é abrirmos mãos da liberdade no Pacto social. Em troca teríamos a defesa da vida e da propriedade pelo Estado. Já outros pensadores, como Bodin, afirmavam que o rei tem o direito ao governo dado por Deus, por isso não podia ser questionado.

As chamadas Grandes Navegações ampliaram a visão de mundo dos europeus, contribuindo para as reformas do pensamento da época, provocadas pelo Renascimento e pela Reforma Protestante. O Renascimento que se iniciou na península italiana e pouco a pouco se espalhou para o restante do continente, resgatou os valores da Antiguidade, que recolocavam o homem como centro da reflexão sobre a vida. Passava-se a explicar o sentido da vida à partir das ações humanas e não mais da vontade de Deus. Nas produções artísticas toda a beleza das formas, da criatividade humana eram demonstradas. O Teocentrismo foi combatido, assim como a visão geocêntrica do Universo. Para isso, aquela explicação que se baseava na fé não atendia mais. Era preciso usar a Razão para se chegar ao conhecimento do mundo. Não se negava a existência de Deus, mas se tentava compreender o funcionamento do cosmos através da observação e da experimentação.

Essas transformações levaram também a uma nova imagem sobre Deus e a relação humana com a divindade. Se até o século XV a Igreja Católica havia tido o monopólio da fé, esse poder começa a ser questionada nesse momento. O grande nome de sucesso nesse processo de ruptura foi Martinho Lutero, que ao fazer críticas à igreja e propor mudanças foi excomungado, e, auxiliado pelos príncipes alemães, funda uma nova igreja, a Luterana. O principal diferencial da reforma luterana está na concepção de salvação, não mais pelas obras católicas, mas pela fé. Além disso, influenciado pelo novo Humanismo, a estrutura clerical é criticada e o que se propõe é que cada fiel seja seu próprio sacerdote. Ou seja, apesar da vida em comunidade continuar sendo incentivada, houve uma guinada ao indivíduo.

Enfim, o início da Era Moderna trouxe uma nova perspectiva do humano, que não era apenas um cumpridor da ordem divina, mas um ser que tentava ser protagonista, compreender  e interferir no mundo.

Márcio Ramos

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Questões sobre o imperialismo na África e Ásia

Que tal um teste sobre seus conhecimentos sobre o Imperialismo?

1-      Também chamado de Neocolonialismo, foi um movimento de expansão territorial, cultural e econômica de nações europeias sobre outras, a partir do século XIX. Estamos falando do (a):
Imperialismo
Primeira Guerra Mundial
Unificação Italiana
Expansão Marítima
2-    Denominação dada a divisão do continente africano entre os países imperialistas. Esta divisão teve início na segunda metade do século XIX. A alternativa que se enquadra a este conceito é o (a):
Partilha da Ásia
Partilha da África
Apartheid
Partilha da América
3-     A segunda metade do século XIX foi marcada por um período de grande prosperidade econômica. Podemos destacar duas grandes características que revelam este crescimento:
A expansão marítima e o acúmulo de metais preciosos
A ampliação do comércio inglês e o acúmulo de capitais.
A ampliação do comércio mundial e o acúmulo de capitais
O acúmulo de capitais e a expansão marítima
4-     Qual das alternativas abaixo traz a definição correta do Imperialismo do século XIX?
Visão de mundo que consiste em colocar a cultura europeia como superior a todas as outras
Movimento de expansão territorial, cultural e econômica de nações europeias sobre outras
Denominação dada aos africanos de origem holandesa e francesa.
Denominação dada aos soldados indianos que lutavam no exército inglês
5-     O Imperialismo europeu do século XIX também é conhecido como:
Guerra dos Cipaios
Guerra dos Boxeres
Colonialismo
Neocolonialismo
6-     Os principais países imperialistas eram as nações industrializadas da Europa. Dentre estes países industrializados, podemos destacar:
Estados Unidos e Japão
Inglaterra e Japão
Inglaterra e Grécia
Inglaterra e França
7-     O Neocolonialismo foi motivado pela busca de matérias-primas, mercados consumidores e mão-de-obra barata. Quais os dois continentes que mais sofreram com a expansão imperialista europeia?
África e Ásia
África e América
América e Ásia
América e Oceania
8-     Qual das alternativas abaixo traz o verdadeiro conceito de Missão Civilizadora?
Conflito anticolonialista que ocorreu na África do Sul, entre 1880 a 1902, porque os ingleses desejavam se apoderar das minas de diamante do território dos bôeres.
Reunião de países europeus, feita em 1884, para delimitar as fronteiras da África e estabelecer normas a serem obedecidas pelos países imperialistas.
Justificativa do Imperialismo, baseada na ideia de que a missão dos povos europeus era civilizar os povos africanos e asiáticos, levando a eles sua cultura, progresso e religião.
Denominação dada à tentativa de aplicar a teoria da evolução de Charles Darwin para explicar as sociedades e enquadrá-las em mais ou menos evoluídas.
9-     Quais as revoltas contra o Imperialismo ocorreram, respectivamente, na Índia e na China?
Guerra do Ópio e Revolta dos Cipaios
Revolta dos Cipaios e Guerra do Ópio
Guerra dos Bôeres e Revolta dos Cipaios
Guerra do Ópio e Guerra dos Bôeres
10-  Quais foram as principais causas da Revolta dos Cipaios?
A tentativa de converter hindus e mulçumanos indianos ao cristianismo e a lubrificação das armas com gordura de animais considerados sagrados ao hinduísmo.
Os ingleses desejavam se apoderar das ricas minas de diamante, ouro e ferro, que haviam em Mumbai.
A proibição do comércio do ópio, feito da papoula indiana, o que despertou a fúria dos ingleses.
O desejo dos ingleses de se apoderar das principais rotas das linhas de trem que cruzavam a Índia.



Fonte: Educopedia

Gabarito

1- A
2- B
3- C
4- B
5-D
6-D
7-A
8-C
9- B
10- A

A Revolta dos Cipaios

Ilustração: Os Cipaios e a luta contra o imperialismo na Índia

O imperialismo europeu na Ásia começou na Índia, por volta de 1763. Os ingleses tomaram a Índia do domínio francês e iniciaram o desenvolvimento desse país. Os europeus realmente acreditavam ter o dever de civilizar os indianos, considerados por eles como inferiores, sem cultura, bárbaros.

As melhorias inseridas na Índia pelos ingleses até o momento da Guerra dos Cipaios beneficiaram exclusivamente os homens brancos. Daí a insatisfação dos nativos, sobretudo daqueles que serviam como soldados na famosa Companhia das Índias.

Os Cipaios, sem qualquer possibilidade de ascensão, sendo tratados de maneira desigual e com a crença infundada de que os hindus e mulçumanos indianos seriam convertidos à força a uma nova religião, o cristianismo, por missionários ingleses, desejavam pôr um fim na dominação inglesa na Índia. Esses soldados revoltaram-se sob a alegação de que os cartuchos distribuídos entre a tropa tinham sido untados com óleo de gordura de vaca, e tal ato era inadmissível, visto que a vaca é um animal sagrado para os indianos.

A revolta alastrou-se e tomou uma configuração social. As tropas inglesas só conseguiram sufocar a revolta após alguns meses de luta. Após o conflito, a Índia foi transformada na sua maior parte em possessão britânica. Com isso, o poderio político e econômico britânico se estendeu, porém a revolta gerada pelos Cipaios não foi em vão, e produziu bons frutos, como a extinção da afamada Companhia das Índias.


Por Lilian Maria Martins de Aguiar  http://mundoestranho.abril.com.br

O que foi a Guerra do Ópio?


Na verdade, não foi uma guerra, mas duas - ambas travadas no século 19 na China. Nesses conflitos, Grã-Bretanha e França se aliaram para obrigar a China a permitir em seu território a venda de ópio, uma droga anestésica extraída da papoula (veja como funciona o processo no infográfico abaixo). Para britânicos e franceses, exportar ópio para a China era uma forma de compensar o prejuízo nas relações comerciais com os chineses, que vendiam aos ocidentais mercadorias muito mais valorizadas, como chá, porcelanas e sedas. Mas o governo de Pequim não via o troca-troca com bons olhos: a partir do século 18, o consumo da droga explodiu no país, causando graves problemas sociais - nem um decreto imperial de 1796 conseguiu deter a expansão do problema. A coisa pegou fogo de vez em 1839, quando o governo chinês destruiu uma quantidade de ópio que estava na mão de mercadores britânicos equivalente ao consumo de um ano. O governo da Grã-Bretanha reagiu enviando ao Oriente navios de guerra e soldados, dando origem à primeira Guerra do Ópio. Mais bem equipada, a tropa britânica venceu os chineses em 1842, obrigando-os a assinar um tratado de abertura dos portos e de indenização pelo ópio destruído - mas o comércio da droga continuava proibido. O negócio complicou de novo em 1856, quando autoridades chinesas revistaram um barco britânico à procura de ópio contrabandeado. Era a desculpa que a Grã-Bretanha precisava para declarar a Segunda Guerra do Ópio, vencida novamente pelos ocidentais em 1857. Como preço pela derrota, a China teve de engolir a legalização da importação de ópio para o país por muito tempo: o uso e o comércio da droga em território chinês só foram banidos de vez após a tomada do poder pelos comunistas, em 1949.


Ópios do ofício Extraída da papoula, droga também dá origem à morfina e heroína
1. O ópio é uma droga extraída de um tipo específico de papoula, Papaver somniferum. O local com maior concentração de seu princípio ativo é a cápsula que abriga as sementes da planta e de onde sai a flor
2. Depois que caem as pétalas da flor, os cultivadores arranham a superfície da cápsula com uma pequena faca, produzindo cortes verticais de pequena profundidade, por onde escorre um líquido leitoso e esbranquiçado.
3. Em seguida essa seiva é exposta ao sol - em geral, de um dia para o outro. Com o calor, o líquido muda de cor e consistência, virando uma massa amarronzada grudenta, parecida com cera de ouvido. É o chamado ópio bruto
4. Geralmente, a droga é consumida em cachimbos aquecidos por indução - a chama direta destrói os componentes responsáveis pelos efeito entorpecente da droga. Outras vezes, o ópio bruto é seco e moído até virar pó para ser armazenado e vendido
5. Por meio de processos químicos, o ópio bruto pode ser processado para fabricar outras drogas, como codeína (usada hoje como anestésico local por médicos e dentistas), morfina e heroína

Fonte: http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-foi-a-guerra-do-opio



História do Imperialismo e Neocolonialismo


Na segunda metade do século XIX, países europeus como a Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica e Itália, eram considerados grandes potências industriais. Na América, eram os Estados Unidos quem apresentavam um grande desenvolvimento no campo industrial. Todos estes países exerceram atitudes imperialistas, pois estavam interessados em formar grandes impérios econômicos, levando suas áreas de influência para outros continentes. 

 Com o objetivo de aumentarem sua margem de lucro e também de conseguirem um custo consideravelmente baixo, estes países se dirigiram à África, Ásia e Oceania, dominando e explorando estes povos. Não muito diferente do colonialismo dos séculos XV e XVI, que utilizou como desculpa a divulgação do cristianismo; o neocolonialismo do século XIX usou o argumento de levar o progresso da ciência e da tecnologia ao mundo. 

 Na verdade, o que estes países realmente queriam era o reconhecimento industrial internacional, e, para isso, foram em busca de locais onde pudessem encontrar matérias primas e fontes de energia. Os países escolhidos foram colonizados e seus povos desrespeitados. Um exemplo deste desrespeito foi o ponto culminante da dominação neocolonialista, quando países europeus dividiram entre si os territórios africano e asiático, sem sequer levar em conta as diferenças éticas e culturais destes povos.   

Entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885 foi realizado o Congresso de Berlim. Neste encontro, os países europeus imperalistas organizaram e estabeleceram regras para a exploração da África. Na divisão territorial que fizeram, a cultura e as diferenças étnicas dos povos africanos não foram respeitadas.

Devido ao fato de possuírem os mesmo interesses, os colonizadores lutavam entre si para se sobressaírem comercialmente. O governo dos Estados Unidos, que já colonizava a América Latina, ao perceber a importância de Cuba no mercado mundial, invadiu o território, que, até então, era dominado pela Espanha. Após este confronto, as tropas espanholas tiveram que ceder lugar às tropas norte-americanas. Em 1898, as tropas espanholas foram novamente vencidas pelas norte-americanas, e, desta vez, a Espanha teve que ceder as Filipinas aos Estados Unidos. 

 Um outro ponto importante a se estudar sobre o neocolonialismo, é à entrada dos ingleses na China, ocorrida após a derrota dos chineses durante a Guerra do Ópio (1840-1842). Esta guerra foi iniciada pelos ingleses após as autoridades chinesas, que já sabiam do mal causado por esta substância, terem queimado uma embarcação inglesa repleta de ópio. Depois de ser derrotada pelas tropas britânicas, a China, foi obrigada a assinar o Tratado de Nanquim, que favorecia os ingleses em todas as clausulas. A dominação britânica foi marcante por sua crueldade e só teve fim no ano de 1949, ano da revolução comunista na China. 


Como conclusão, pode-se afirmar que os colonialistas do século XIX, só se interessavam pelo lucro que eles obtinham através do trabalho que os habitantes das colônias prestavam para eles. Eles não se importavam com as condições de trabalho e tampouco se os nativos iriam ou não sobreviver a esta forma de exploração desumana e capitalista. Foi somente no século XX que as colônias conseguiram suas independências, porém herdaram dos europeus uma série de conflitos e países marcados pela exploração, subdesenvolvimento e dificuldades políticas.


Fonte: http://www.suapesquisa.com/historia/imperialismo/


domingo, 8 de novembro de 2015

Chuta que é Macumba. Cuidado para não quebrar o Pé!


            Calma, eu explico. É que Macumba é uma árvore sagrada da África, onde os negros se reuniam para fazer suas orações. Aliás, árvore muito parecida com a formosa Copaíba que temos na Avenida Getúlio Vargas, aqui em Bauru. 
            Bom, agora que você já sabe isso, os que iam à Macumba eram os – adivinhe – macumbeiros. Isso mesmo. Poxa, e você utilizando esse termo sem saber. Mas tem mais, Macumba também foi o nome dado aos primeiros instrumentos de percussão, muito parecidos com os atabaques de hoje. Eles eram confeccionados com a Madeira da árvore sagrada e usados nos cultos em louvor aos Orixás. O fato é que durante três séculos, milhões de africanos foram escravizados e trazidos para o território brasileiro por colonizadores europeus. A religião foi um fator fundamental para a preservação dos costumes africanos, e tornou-se símbolo da resistência de povos que foram massacrados ao longo da história do nosso país, mas que exerceram importante papel para a formação da identidade e da cultura brasileira. É por isso que se fala muito que o povo brasileiro tem um pezinho na senzala. Eu arriscaria dizer que muitos têm também uma mãozinha no terreiro, pois a cultura religiosa afro-brasileira está enraizada em todo nosso país. Portanto, em nossa cidade, não é diferente. 
            Poucos são os que nunca fizeram uso de uma fitinha vermelha contra mau-olhado, cruzaram os dedinhos para torcer por alguma coisa, ou nunca tiveram um vasinho de sete ervas em casa. Você pode não ter percebido, mas o salzinho grosso atrás da porta não tem nada a ver com herança de uma religião européia. 
            Bauru possui cerca de oitocentos templos de Umbanda e Candomblé, espalhados por toda cidade, mas as lembranças de uma época de grande perseguição às religiões afro-brasileiras fizeram que se tornassem quase invisíveis. A grande maioria não possui identificação em suas fachadas e aparentam, propositalmente, residências. Mas invisíveis ou não estão aí, provavelmente bem ao lado da sua casa. Agora já sabe o que é Macumba. Madeira nobre e resistente. Pode machucar o pé, portanto, é melhor não chutar. Mas, melhor mesmo, é quando você não chutar nada. Quando você respeitar as pessoas por suas atitudes, posturas, ideais, e, principalmente, por seus corações. Respeite – e não apenas tolere - pois como disse Saramago: “Quando se tolera apenas se concede, e essa não é uma relação de igualdade, mas de superioridade de um sobre o outro."


 Fonte: Jornal Bom Dia por Ricardo Barreira

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Dia das Crianças: a infância no Brasil de antigamente

de Mary del Priore.

Um dos aspectos mais interessantes da infância no passado era, sem dúvida, o relacionamento afetivo entre pais e filhos. Observado por vários viajantes, ele era considerado excessivo: “O carinho dos pais pelos filhos, enquanto pequenos chega a não ter limites, e é principalmente o pai quem se ocupa com eles, quando tem um minuto livre. Ama-os até a fraqueza e, até certa idade, atura as suas más criações. Não há nada que mais o moleste do que ver alguém corrigir seu filho. Quando marido e mulher saem de casa, seja para visitarem uma família, seja para irem a alguma festa, levam consigo todos os filhos, com suas respectivas amas, e é ainda o pai quem carrega com todo o trabalho, agarrando-se-lhe os pequenos ao pescoço, às mãos, ás abas do casaco”.  Mas “estremecer sobre os filhos, contar estórias, graças, acalentá-los”, como dizia – se, no século XVIII, era considerado coisa de mulher: “Não é coisa pertinente a um homem ser ama nem berço de seus filhos” resmungava o médico Francisco de Melo Franco.

O amor materno, por seu turno, deixou marcas indeléveis nos testamentos de época. Não havia mãe que ao morrer não implorasse às irmãs, comadres e avós, que “olhassem” por seus filhinhos, dando-lhes “estado”, ensinando-lhes “a ler, escrever e contar” ou “a coser e lavar”. A expressão “amor materno” pontua vários destes documentos, revelando a que ponto as mães, no momento da despedida, não tinham os corações carregados de apreensão, temerosas do destino dos seus dependentes. A ama negra, como lembra Gilberto Freyre, deu também sua contribuição para enternecer as relações entre o mundo adulto e o infantil. Criou uma linguagem  na qual se reduplicavam as sílabas tônicas dando às palavras pronunciadas um especial encanto: dodói, cacá, pipi, bumbum, tentem, dindinho, bimbinha. Com tantos mimos, o risco era da criança ficar mole e bamba, cansada e amarela. Padre Gama, já na virada do século XIX voltava a carga contra a criança criada entre resguardos de mães extremosas e amas negras. “O mulequinho quebra quanto encontra”, informa. “E tudo é gracinha; já tem 7 e 8 anos mas não pode ir de noite para cama sem dormir o primeiro sono em o regaço de sua yayá que o faz adormecer balanceando-o sobre a perna e cantando-lhe uma embirrante enfiada de chácaras e cantilenas monótonas do tempo do capitão Frigideira”. Os mimos em torno da criança pequena estendiam-se aos negrinhos escravos ou forros vistos por vários viajantes estrangeiros nos braços de suas senhoras ou engatinhando em suas camarinhas. Brincava-se com crianças pequenas como se brincava com animaizinhos de estimação. Mas isto não era privilégio do Brasil. Nas grandes famílias extensas da Europa ocidental, onde a presença de crianças de todas as idades e colaterais era permanente, criava-se uma multiplicidade de presenças que não deixavam jamais os pequeninos sós. E esses eram tratados pelos mais velhos como verdadeiros brinquedos, da mesma forma, aliás, como eram tratados os filhos de escravos entre nós: engatinhando nas camarinhas de suas senhoras, recebendo de comer na boca, ao pé da mesa, como os retratou Debret. Tais carinhos exagerados ou “os mimos maternos” eram, contudo, vistos por moralistas setecentistas, como o baiano Nuno Marques Pereira como causa para “deitar a perder os filhos”. A boa educação implicava em castigos físicos e nas tradicionais palmadas.

O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no quotidiano colonial. Introduzido, no século XVI, pelos padres jesuítas, para horror dos indígenas que desconheciam o ato de bater em crianças, a correção era vista como uma forma de amor. O “muito  mimo” devia ser repudiado. Fazia mal aos filhos. “A muita fartura e abastança de riquezas e boa vida que tem com ele é causa de se perder” admoestava em sermão José de Anchieta. O amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida”. Vícios e pecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com “açoites e castigos”. A partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das chamadas Aulas Régias, a palmatória era o instrumento de correção por excelência: “nem a falta de correção os deixe esquecer do respeito que devem conservar a quem os ensina”, cita um documento de época. Mas, ressalvava, endereçando-se aos professores: “e tão somente usarem  dos golpes das disciplinas ou palmatórias quando virem que a repreensível preguiça é a culpada dos seus erros e não a rudez das crianças a cúmplice de sua ignorância”.

As violências físicas, muitas vezes dirigidas às mães, atingiam os filhos e não foram poucas as famílias que se desfizeram deixando entregues ao Deus dará, mães e seus filhinhos: fome, abandono, instabilidade econômica e social deixaram marcas em muitas das crianças. Não são poucas as que encontramos, nos documentos de época, esmolando às portas de igrejas, junto com suas genitoras. Um processo crime datado de 1756, movido na vila de São Sebastião, São Paulo, por Catarina Gonçalves de Oliveira revela imagens de outras violências: a de pais contra filhos. Nos autos, Catarina revela ter defendido seu enteado, uma criança pequena, de chicotadas desferidas pelo pai, ansioso por corrigir o hábito do pequeno de comer terra. As “disciplinas”, os bolos e beliscões revezavam-se com as risadas e mimos. Mas também com divertimentos e festas.

Nas escolas jesuíticas o lazer ficava por conta do banho de rio e no “ver correr as argolinhas”. Tradição lusa antiquíssima, essas consistiam em uma forma de “justa” na qualquer se deixava pender de um poste ou árvore enfeitada, uma argolinha que devia ser tirada pelo cavaleiro em disparada. “Ensina-mo-lhes jogos que usam lá os meninos do Reino – conta, entusiasmado, o padre Rui Pereira em 1560 – Tomam-nos tão bem e folgam tanto com eles que parece que toda sua vida se criaram nisso”. Brincava-se, também, com miniaturas de arcos e flechas ou com instrumentos para a pesca. Outras brincadeiras: o jogo do beliscão, o de virar bundacanastra, o jogo do peia-queimada além de ritmos, cantos, mímicas feitos de trechos declamados e d e  movimentação aparentemente  livre mas repetidora de um desenho invisível e de uma lógica misteriosa e mecânica. Piões, papagaios de papel e animais, gente e mobiliário reduzidos, confeccionados em pano, madeira ou barro, eram os brinquedos preferidos. A “musicaria” atraía loucamente: crianças indígenas adoravam  instrumentos europeus como a gaita ou o tamboril que acompanhavam, segundo os cronistas jesuítas, ao som de maracas e paus de chuva. A participação em festas com música atraíam crianças de todos os grupos sociais. Alegrando procissões, enfeitados com carapuças cobertas de pedrarias e flores, participavam a coreografias e cantos em homenagem a determinado santo da Igreja católica ou em homenagens aos governadores recém-chegados de Portugal.

Na famosa festa mineira, o Triunfo Eucarístico, realizada em 1734 em Vila Rica, “onze mulatinhos” vestidos como indígenas, enfeitados com saiotes de penas e cocares, levando nas pernas, fitas e guizos, cantaram ao som de tamboris, flautas e pífaros, bailando uma “dança dos carijós”. Festas do calendário tradicional como São João ou Reis, animavam as crianças que iam pular fogueira, subir em mastros e com a invasão dos fogos de artifício, no século XVIII, soltar rojões e estrelinhas. Coadjuvantes nos autos de Natal participavam, devidamente enfeitados como anjinhos ou pastores, e vinham vestidos de estopinha branca, chapéu de palha fabricado com palmas de ouricuri, enfeitado de fitas, tendo a copa coberta de algodão com enfeites de velbutina preta, cajado de fitas, cesta com flores no braço e pequeno pandeiro de folha de Flandres. Debret, de passagem pelo Rio de Janeiro, impressionou-se e reproduziu uma destas crianças, verdadeiro personagem das atuais escolas de samba, vestido com cocar de plumas, joias falsas e figurino sofisticado.

Fonte: http://historiahoje.com/?p=7419

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

A Guerra Fria


Iniciada logo após a Segunda Guerra Mundial, a guerra fria acabou levando a uma extraordinária corrida armamentista. Como o poder militar e nuclear das duas grandes potências se equivalia, era mais conveniente que cada uma buscasse a destruição da outra por meios que não  levassem a uma guerra real. Afinal, um conflito nuclear poderia trazer a destruição de ambas e de todo o planeta.

A guerra fria assumia, então, formas dissimuladas, como a espionagem de segredos tecnológicos, industriais e militares, ou mesmo confrontos diplomáticos no âmbito da ONU. Isso, quando não tomava a forma dramática de conflitos militares localizados, como a guerra do Vietnã ou a i do Afeganistão.

Durante a guerra fria, toda a política externa dos Estados Unidos buscava provocar o isolamento da União Soviética e dos demais países que tentassem construir um  modelo de sociedade diferente do capitalismo.

No fim da Segunda Guerra Mundial, que não atingiu seu território continental, os Estados Unidos eram um país fortalecido econômica e militarmente. Depois de vencer o nazismo alemão e derrotar o imperialismo japonês, os  Estados Unidos passam a ter como objetivo deter e anular o comunismo soviético. Para o professor de ciência políti­ca Stephen Krasner, o regime comunista da União Sovié­tica não era visto apenas como um perigo para a segurança da Europa ocidental, mas também como uma ameaça às idéias e crenças norte-americanas baseadas na liberdade de comércio para as empresas capitalistas.

Para favorecer a atuação das empresas norte-americanas, os Estados Unidos investiram e apoiaram os investimentos dessas empresas na Europa ocidental e no Japão. A intenção do governo norte-americano era fortalecer es­ses países — principalmente a Alemanha e o Japão — para torná-los aliados de confiança. Assim, a expansão do so­cialismo seria contida não só militarmente, mas sobretudo  economicamente.

Nos primeiros anos do pós-guerra, os Estados Uni­dos enviaram à Europa ocidental uma grande quantidade de capitais, através do Plano Marshall. A ideia dos gover­nantes norte-americanos era estimular a reconstrução dos países destruídos pela guerra e, ao mesmo tempo, incenti­var a integração entre as empresas e os países europeus. Dessa forma, passaria a existir uma economia interna­cional mais aberta, o que facilitaria a atuação das empresas multinacionais e geraria estabilidade e crescimento econômico no Ocidente. Tudo isso serviria para enfrentar o bloco socialista, comandado pela União Soviética.

Para manter um forte aliado também na Ásia, os Es­tados Unidos procuraram fortalecer o Japão, com o envio maciço de investimentos e tecnologia. Além disso, abriram seu mercado consumidor aos produtos japoneses e permi­tiram que as indústrias japonesas fossem protegidas pelo governo nipônico, o que acabou por prejudicar até mesmo os interesses de empresas norte-americanas, como a IBM, por exemplo.

As medidas econômicas e políticas dos Estados Unidos para conter o avanço do comunismo levaram à inte­gração econômica da Europa ocidental e ao fortalecimento do Japão, cujas empresas passaram a travar uma verdadeira guerra comercial com empresas norte-americanas.

No contexto da guerra fria, os Estados Unidos adotaram a política de cercar o comunismo na Europa oriental e na Ásia. Mas também procuravam combater qualquer movimento político de tendência socialista em outras regiões, que pudesse ameaçar o domínio do sistema capita­lista. Na América Latina, por exemplo, apoiaram diversos golpes militares para afastar o "perigo comunista". A res­peito disso, afirma o professor Krasner:


Havia tropas estacionadas em caráter quase perma­nente na Europa ocidental, no Japão, na Coréia e em ou­tras bases militares no exterior; apesar de os acontecimen­tos nessas áreas jamais apresentarem ameaça alguma à integridade territorial americana. Os Estados Unidos travaram guerras importantes na Coréia e no Vietnã, mes­mo não tendo qualquer interesse econômico importante em nenhum desses países quando a guerra teve início. Enviaram tropas a outros países, entre os quais a Repú­blica Dominicana e Granada, quando pareceu estarem ameaçadas de tomada do poder pelos comunistas. Partici­param secretamente da derrubada de líderes esquerdistas no Chile, na Guatemala e no Ira. (Revista Política Externa, set. 1992, p. 64.) (Walter Praxedes t Nelson Piletti. Mercosul e sociedade global. São Paulo, Ática, p. 17-9.)

Fonte: ?

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Na lei e na marra - Combate inglês ao tráfico de escravos

Após abolir o tráfico de escravos em seu Império, a Grã-Bretanha partiu para uma acirrada campanha em outras nações
Juliana Barreto Farias
Os imensos caldeirões de cobre postados no convés do solitário navio mercante comprovavam: a embarcação era usada “no carregamento de africanos da costa para o comércio proibido de escravos”. E o capitão do brigue Wizzard, da Marinha de Guerra de Sua Majestade Britânica, não teve dúvidas. Ao avistá-los no amanhecer de 27 de dezembro de 1838, decidiu iniciar uma “caçada” nas proximidades da costa de Cabo Frio, litoral da província do Rio de Janeiro. À força, oficiais e soldados invadiram o navio suspeito e rapidamente tomaram seu controle. Assim que abriram as escotilhas do porão, depararam com uma visão aterradora: 230 africanos – homens, mulheres e crianças – se acotovelavam na escuridão.
Desde pelo menos 1810, autoridades inglesas e brasileiras patrulhavam águas americanas e africanas em busca de embarcações envolvidas no tráfico ilegal de escravos. Depois de abolir o comércio negreiro em suas possessões, no ano de 1808, o Império Britânico partiu para uma acirrada campanha para que todas as outras nações também desistissem daquele lucrativo negócio. E não mediu esforços para alcançar seus objetivos.
Os questionamentos em torno da escravidão e, sobretudo, do tráfico de africanos mobilizavam filósofos, intelectuais e políticos europeus desde a primeira metade do século XVIII. Ao lado de pensadores como Montesquieu, Rosseau e Adam Smith, grupos religiosos protestantes, como os quakers, atacavam a imoralidade da instituição escravista e do comércio que a sustentava. No final do século, era difícil encontrar na Europa quem a defendesse. Especialmente com as repercussões dos ideais de igualdade e liberdade das revoluções Francesa (1789) e Haitiana (1791). Ainda assim, mesmo com seu profundo apelo moral, essa campanha antiescravagista não estava baseada numa postura pró-africana ou mesmo na crença da igualdade dos negros. Pelo contrário. Alguns de seus líderes e divulgadores apostavam em ideias e práticas “racistas”.
De acordo com o historiador Herbet Klein, o que estava em jogo, na verdade, era a crença de que o trabalho livre era um dos pilares da sociedade moderna, uma garantia do progresso da humanidade. E essa postura era compartilhada tanto por capitalistas que pregavam o livre comércio como pelos próprios trabalhadores que estavam se integrando ao mundo urbano e cada vez mais industrializado da Inglaterra do século XIX. Enfrentando o impacto do sistema salarial e a autodeterminação nessa nova sociedade, eles também viam a escravidão como algo antiético e uma ameaça à sua própria segurança, mesmo em terras distantes.
Não à toa, a campanha rapidamente se alastrou pelos gabinetes e ruas da Grã-Bretanha e também por suas colônias. Dos dois lados do Atlântico, 90 mil quakers de língua inglesa começaram, a partir de 1750, a forçar seus membros a abandonarem o tráfico e a propriedade escrava. Em 1787, eles se integraram à mobilização nacional, chegando rapidamente aos metodistas e a um grande número de igrejas protestantes tradicionais e seitas radicais. Entre 1787 e 1792, diversos clubes populares antiescravagistas formaram-se em Londres, e uma campanha de petições em massa foi organizada. Como primeiro resultado dessas investidas, houve modificações nas leis sobre transporte dos cativos. Liderados por William Wilberforce, os abolicionistas que atuavam no Parlamento também foram angariando restrições parciais, com o fechamento de algumas áreas de comércio escravista. Até que, em março de 1807, veio a suspensão total do tráfico britânico, colocada em prática no primeiro dia do ano de 1808.
Daí em diante, os ingleses se empenhariam no combate sistemático ao “infame comércio” realizado por outros países. Em 1814, com o possível retorno francês ao negócio, conseguiram reunir mais de 700 petições com assinaturas de quase 1 milhão de pessoas exigindo a abolição universal. No ano seguinte, as pressões só aumentaram, e o governo britânico negociou um tratado com Portugal, proibindo imediatamente o tráfico acima da linha do Equador e garantindo o início de sua extinção progressiva para o Brasil. Ainda em 1815, durante o Congresso de Viena, as principais nações europeias concordaram com as determinações inglesas, com exceção da França e dos países ibéricos. Contudo, com o fim das Guerras Napoleônicas, os franceses foram forçados a ficar ao lado dos abolicionistas da Inglaterra. Portugal e Espanha tornavam-se os únicos no velho continente a ainda praticar o comércio de escravos, mesmo com as proibições já firmadas.
O governo espanhol tentou ao máximo protelar a abolição total. Como perdera a maior parte de seu império na América com a independência de suas colônias, estava cada vez mais dependente da crescente economia açucareira de Cuba, sua principal fonte de financiamento. Por isso, acabou adotando uma espécie de jogo duplo, mantendo o tráfico naquela área colonial até o final da década de 1860.
O caso português era um tanto diferente. O país era intimamente dependente da Inglaterra: contava com sua proteção para o mercado de vinho do Porto e tinha apoio político em diversas questões continentais desde o século XVIII, especialmente nas lutas travadas contra a invasão napoleônica, a partir de 1807. Estava por isso muito mais vulnerável às investidas inglesas. Já em 19 de fevereiro de 1810, foi assinado o Tratado de Aliança e Amizade entre o Príncipe Regente de Portugal e o Rei do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Era o primeiro ato formal que daria impulso a uma série de tratados internacionais entre os dois países – e, após a Independência, com o Brasil – para dar fim ao tráfico de cativos.
Por este acordo, ficava firmado que o príncipe português, convencido da injustiça do comércio negreiro e decidido a cooperar com Sua Majestade Britânica, adotaria os meios mais eficazes para atingir uma abolição gradual em seus domínios. Contudo, nesse primeiro momento, nem todas as suas áreas seriam “fechadas”. Os direitos portugueses sobre alguns territórios africanos, como Cabinda e Molembo, ainda seriam mantidos. E o comércio com Ajudá e outros portos ocupados por Portugal também persistiria. Mesmo assim, ainda havia dúvidas sobre os locais na costa africana em que era permitido negociar escravos. Diversas embarcações de súditos portugueses acabaram sendo apreendidas sob acusação de tráfico ilegal, o que trouxe uma certa agitação entre os negociantes, especialmente os estabelecidos na praça da Bahia. Em apenas dois anos, 17 embarcações foram apresadas pela Marinha de Guerra britânica.
Tanto na província baiana como em outras terras e águas das Américas e da África, os britânicos enfrentavam forte resistência de governos e de pequenos e grandes mercadores. Para contorná-la, a solução era sempre a mesma: mais pressão. Além de firmar tratados cada vez mais rigorosos, aparelhavam ainda mais sua frota (estabelecida até mesmo no litoral africano) e criavam comissões judiciais mistas com outras nações. Com sedes em Serra Leoa, Rio de Janeiro e Londres, esses grupos – que contavam com funcionários dos países envolvidos – deviam julgar se os navios detidos eram ou não empregados no comércio de escravos. Se a acusação ficasse comprovada, a embarcação era confiscada e os escravos recolhidos, transformados em africanos livres – alforriados e estabelecidos como trabalhadores livres consignados ao governo do país em que foram julgados.
Mas nem todas essas medidas pareciam suficientes para paralisar as negociações negreiras. Nos anos de 1831 e 1832, o governo brasileiro aprovou uma legislação que supostamente colocava em prática a proibição oficial, permitindo a inspeção policial de todas as embarcações que chegavam a seus portos. Parece ter sido ignorada: o tráfico foi realizado abertamente até 1850, quando, enfim, os navios britânicos entraram em confronto direto com a frota mercante brasileira.       
Embora as repercussões tenham chegado a Cuba, os negócios ainda foram mantidos ali por mais uma década. A escravidão não acabava ali, mas o fim do tráfico determinou que seus anos estavam contados.
Juliana Barreto Farias é professora na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e coautora de No labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX (Arquivo Nacional, 2005).


Saiba mais
BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1976.
KLEIN, Herbet. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: Funpec Editora, 2004.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no fim do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850).Campinas, SP: Cecult/ Unicamp, 2000.

sábado, 1 de agosto de 2015

PAI CONTRA MÃE

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. 

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. 

Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. 

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse. 

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. 

Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao
Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. 
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.  

Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras. 

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi-para lembrar o primeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas. 

--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. --Não, defunto não; mas é que... 

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade. 

--Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha. 

--Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi. 

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço.  

Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego certo. 
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos. 

--Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe. 

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.  

--Vocês verão a triste vida, suspirava ela. --Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara. --Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que pouco... --Certa como? --Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

 Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer. --A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau... --Bem sei, mas somos três. -Seremos quatro. --Não é a mesma cousa. -- Que quer então que eu faça, além do que faço? -- Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém. -- Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.  
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado. 

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão. 
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis. 

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem. 

--É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego. 

Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa. 

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos. 

--Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca! 

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. -Titia não fala por mal, Candinho. --Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem,
seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim... 

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor,-- crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua. 

--Quem é? perguntou o marido. --Sou eu. 

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse. 

--Não é preciso... --Faça favor. 

O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais. 

--Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo. 

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.  

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem. 

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte. 

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

 Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. 

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta. 

--Mas... 

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio. 

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era
já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. 

--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero demoras; siga! 

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes. 

--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. 
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor. 
--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra... 
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta milréis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

 O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre. 

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. 

--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. 


Pai Contra Mãe, de Machado de Assis 


Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Releeitura do conto: Filme Quanto Vale ou é por quilo