terça-feira, 4 de agosto de 2015

Na lei e na marra - Combate inglês ao tráfico de escravos

Após abolir o tráfico de escravos em seu Império, a Grã-Bretanha partiu para uma acirrada campanha em outras nações
Juliana Barreto Farias
Os imensos caldeirões de cobre postados no convés do solitário navio mercante comprovavam: a embarcação era usada “no carregamento de africanos da costa para o comércio proibido de escravos”. E o capitão do brigue Wizzard, da Marinha de Guerra de Sua Majestade Britânica, não teve dúvidas. Ao avistá-los no amanhecer de 27 de dezembro de 1838, decidiu iniciar uma “caçada” nas proximidades da costa de Cabo Frio, litoral da província do Rio de Janeiro. À força, oficiais e soldados invadiram o navio suspeito e rapidamente tomaram seu controle. Assim que abriram as escotilhas do porão, depararam com uma visão aterradora: 230 africanos – homens, mulheres e crianças – se acotovelavam na escuridão.
Desde pelo menos 1810, autoridades inglesas e brasileiras patrulhavam águas americanas e africanas em busca de embarcações envolvidas no tráfico ilegal de escravos. Depois de abolir o comércio negreiro em suas possessões, no ano de 1808, o Império Britânico partiu para uma acirrada campanha para que todas as outras nações também desistissem daquele lucrativo negócio. E não mediu esforços para alcançar seus objetivos.
Os questionamentos em torno da escravidão e, sobretudo, do tráfico de africanos mobilizavam filósofos, intelectuais e políticos europeus desde a primeira metade do século XVIII. Ao lado de pensadores como Montesquieu, Rosseau e Adam Smith, grupos religiosos protestantes, como os quakers, atacavam a imoralidade da instituição escravista e do comércio que a sustentava. No final do século, era difícil encontrar na Europa quem a defendesse. Especialmente com as repercussões dos ideais de igualdade e liberdade das revoluções Francesa (1789) e Haitiana (1791). Ainda assim, mesmo com seu profundo apelo moral, essa campanha antiescravagista não estava baseada numa postura pró-africana ou mesmo na crença da igualdade dos negros. Pelo contrário. Alguns de seus líderes e divulgadores apostavam em ideias e práticas “racistas”.
De acordo com o historiador Herbet Klein, o que estava em jogo, na verdade, era a crença de que o trabalho livre era um dos pilares da sociedade moderna, uma garantia do progresso da humanidade. E essa postura era compartilhada tanto por capitalistas que pregavam o livre comércio como pelos próprios trabalhadores que estavam se integrando ao mundo urbano e cada vez mais industrializado da Inglaterra do século XIX. Enfrentando o impacto do sistema salarial e a autodeterminação nessa nova sociedade, eles também viam a escravidão como algo antiético e uma ameaça à sua própria segurança, mesmo em terras distantes.
Não à toa, a campanha rapidamente se alastrou pelos gabinetes e ruas da Grã-Bretanha e também por suas colônias. Dos dois lados do Atlântico, 90 mil quakers de língua inglesa começaram, a partir de 1750, a forçar seus membros a abandonarem o tráfico e a propriedade escrava. Em 1787, eles se integraram à mobilização nacional, chegando rapidamente aos metodistas e a um grande número de igrejas protestantes tradicionais e seitas radicais. Entre 1787 e 1792, diversos clubes populares antiescravagistas formaram-se em Londres, e uma campanha de petições em massa foi organizada. Como primeiro resultado dessas investidas, houve modificações nas leis sobre transporte dos cativos. Liderados por William Wilberforce, os abolicionistas que atuavam no Parlamento também foram angariando restrições parciais, com o fechamento de algumas áreas de comércio escravista. Até que, em março de 1807, veio a suspensão total do tráfico britânico, colocada em prática no primeiro dia do ano de 1808.
Daí em diante, os ingleses se empenhariam no combate sistemático ao “infame comércio” realizado por outros países. Em 1814, com o possível retorno francês ao negócio, conseguiram reunir mais de 700 petições com assinaturas de quase 1 milhão de pessoas exigindo a abolição universal. No ano seguinte, as pressões só aumentaram, e o governo britânico negociou um tratado com Portugal, proibindo imediatamente o tráfico acima da linha do Equador e garantindo o início de sua extinção progressiva para o Brasil. Ainda em 1815, durante o Congresso de Viena, as principais nações europeias concordaram com as determinações inglesas, com exceção da França e dos países ibéricos. Contudo, com o fim das Guerras Napoleônicas, os franceses foram forçados a ficar ao lado dos abolicionistas da Inglaterra. Portugal e Espanha tornavam-se os únicos no velho continente a ainda praticar o comércio de escravos, mesmo com as proibições já firmadas.
O governo espanhol tentou ao máximo protelar a abolição total. Como perdera a maior parte de seu império na América com a independência de suas colônias, estava cada vez mais dependente da crescente economia açucareira de Cuba, sua principal fonte de financiamento. Por isso, acabou adotando uma espécie de jogo duplo, mantendo o tráfico naquela área colonial até o final da década de 1860.
O caso português era um tanto diferente. O país era intimamente dependente da Inglaterra: contava com sua proteção para o mercado de vinho do Porto e tinha apoio político em diversas questões continentais desde o século XVIII, especialmente nas lutas travadas contra a invasão napoleônica, a partir de 1807. Estava por isso muito mais vulnerável às investidas inglesas. Já em 19 de fevereiro de 1810, foi assinado o Tratado de Aliança e Amizade entre o Príncipe Regente de Portugal e o Rei do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda. Era o primeiro ato formal que daria impulso a uma série de tratados internacionais entre os dois países – e, após a Independência, com o Brasil – para dar fim ao tráfico de cativos.
Por este acordo, ficava firmado que o príncipe português, convencido da injustiça do comércio negreiro e decidido a cooperar com Sua Majestade Britânica, adotaria os meios mais eficazes para atingir uma abolição gradual em seus domínios. Contudo, nesse primeiro momento, nem todas as suas áreas seriam “fechadas”. Os direitos portugueses sobre alguns territórios africanos, como Cabinda e Molembo, ainda seriam mantidos. E o comércio com Ajudá e outros portos ocupados por Portugal também persistiria. Mesmo assim, ainda havia dúvidas sobre os locais na costa africana em que era permitido negociar escravos. Diversas embarcações de súditos portugueses acabaram sendo apreendidas sob acusação de tráfico ilegal, o que trouxe uma certa agitação entre os negociantes, especialmente os estabelecidos na praça da Bahia. Em apenas dois anos, 17 embarcações foram apresadas pela Marinha de Guerra britânica.
Tanto na província baiana como em outras terras e águas das Américas e da África, os britânicos enfrentavam forte resistência de governos e de pequenos e grandes mercadores. Para contorná-la, a solução era sempre a mesma: mais pressão. Além de firmar tratados cada vez mais rigorosos, aparelhavam ainda mais sua frota (estabelecida até mesmo no litoral africano) e criavam comissões judiciais mistas com outras nações. Com sedes em Serra Leoa, Rio de Janeiro e Londres, esses grupos – que contavam com funcionários dos países envolvidos – deviam julgar se os navios detidos eram ou não empregados no comércio de escravos. Se a acusação ficasse comprovada, a embarcação era confiscada e os escravos recolhidos, transformados em africanos livres – alforriados e estabelecidos como trabalhadores livres consignados ao governo do país em que foram julgados.
Mas nem todas essas medidas pareciam suficientes para paralisar as negociações negreiras. Nos anos de 1831 e 1832, o governo brasileiro aprovou uma legislação que supostamente colocava em prática a proibição oficial, permitindo a inspeção policial de todas as embarcações que chegavam a seus portos. Parece ter sido ignorada: o tráfico foi realizado abertamente até 1850, quando, enfim, os navios britânicos entraram em confronto direto com a frota mercante brasileira.       
Embora as repercussões tenham chegado a Cuba, os negócios ainda foram mantidos ali por mais uma década. A escravidão não acabava ali, mas o fim do tráfico determinou que seus anos estavam contados.
Juliana Barreto Farias é professora na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e coautora de No labirinto das nações. Africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX (Arquivo Nacional, 2005).


Saiba mais
BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráfico de escravos, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1976.
KLEIN, Herbet. O tráfico de escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: Funpec Editora, 2004.
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no fim do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850).Campinas, SP: Cecult/ Unicamp, 2000.

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