quarta-feira, 13 de abril de 2016

Direitas x Esquerdas : A força das circunstâncias

Da Era Vargas à redemocratização, as definições de direita e esquerda estiveram marcadas pela falta de liberdade política e pelo ideal de desenvolvimento

Nashla Dahás
Cerca de 60% da população brasileira era rural e analfabeta quando a "Revolução de 1930" estourou. Quando o movimento militar sob a liderança civil de Getúlio Vargas tomou o poder, ditadura, autoritarismo, golpe, democracia e comunismo eram percepções muito presentes no vocabulário político e no imaginário social da época. Mais do que as categorias de “esquerda” e de “direita” como símbolos de distintos projetos políticos. A participação política popular era quase nula, a não ser sob a forma de manifestações públicas quase sempre violentamente reprimidas. Também predominava certo consenso sobre o "atraso brasileiro", independente da filiação partidária. O que os diferenciava, em grande medida, era a forma como cada um propunha a palavra que tinha ar de mágica, "desenvolvimento".
No campo intelectual, por exemplo, Oliveira Vianna caminhou no sentido nacionalista e autoritário ao propor "um Estado soberano, incontrastável, centralizado, unitário, capaz de impor-se a todo o país pelo prestígio fascinante de uma grande missão nacional".Em Instituições Políticas Brasileiras (1949)o autor afirma que o Estado deve ser o principal promotor da integração nacional, o agente por excelência da "formação da nação", único capaz de superar o impasse criado pela distância entre o "Brasil real" e o "Brasil legal". A população, nesse caso, era desconsiderada como sujeito político e agente das transformações.
Sérgio Buarque de Holanda, de outro modo e com sua "metodologia dos contrários", para utilizar a expressão de Antônio Cândido, sugeriu que os processos que teriam condicionado nossa formação social seriam históricos - a nossa herança ibérica e colonial -, e, portanto, sujeitos a transformações. A seu ver, a articulação histórica no Brasil entre a cultura política e social "da personalidade" com a estrutura social e econômica marcada pelo "ruralismo" deveria ceder lugar para um novo centro de gravidade, mais voltado para os centros urbanos. Isso significaria um "lento cataclismo" pelo grau de mudanças que provocaria.

Universo político com Vargas
Retrospectivamente, é comum afirmar que Vargas foi ambíguo. Foi vários ao mesmo tempo: ditador, pai dos pobres e, por que não, da esquerda e da direita. O fato é que naquele momento essas divisões não tinham conotações definidas como as que viríamos a descobrir nos anos 1960. Também não seriam fixas, como talvez só hoje podemos perceber. Entre outras razões, Getúlio Vargas foi “muitos” porque muitos eram os caminhos possíveis diante da inexistência de uma sociedade civil reivindicativa, de uma burguesia emergente indefinida, e das propostas alternativas de governar; todos unidos, no entanto, pelo diagnóstico do "atraso" brasileiro, e pelo fascínio exercido pelo "desenvolvimento".
Nos anos 30 do século XX, desenvolvimento significava industrialização, máquinas, e produção de mercadorias em massa, não apenas na América Latina, mas em quase todo o mundo. Vargas foi realmente grande ao perceber (como nenhum outro político de sua geração) como lidar com o que lhe pode ter parecido um entrave ao modelo de desenvolvimento econômico estatista e industrial que pensara para o país. Segundo Jorge Chaloub, se tratava de um grupo social até então visto apenas como fonte de distúrbios para a ordem oligárquica que o antecedeu: as grandes massas urbanas. Às lutas desses grupos, o presidente respondeu com a concessão dos direitos trabalhistas garantidos pela CLT até hoje. Pela primeira vez na história republicana o Estado olhava para as pessoas comuns – que, é claro, já reivindicavam estes direitos. Essa mudança não poderia deixar de alterar o universo político, social e individual dos brasileiros. Mas ela não veio só; um quadro complexo de tradições políticas teria início ali.
Em primeiro lugar, o viés economicista pelo qual passava a noção de desenvolvimento nacional, voltado, sobretudo, para a construção e associação estatal com indústrias de base e de bens de consumo. Depois, o fazer político entendido como capacidade de articulação dos mais diferentes setores sociais: camponeses, trabalhadores urbanos, empresários, latifundiários, classes médias. Ou seja, política como ausência de conflitos, pelo consenso – ou pela força, tal como o fez Getúlio Vargas ao longo dos seus quase 20 anos no poder. Por fim, a tendência à infantilização do eleitorado, frequentemente despersonalizado, chamado de “massa” e tratado de forma paternalista; sujeito à carteira de trabalho e título de eleitor aprovado pelo Estado, inexperiente politicamente e ao qual, num futuro próximo, as esquerdas tenderiam a dirigir um discurso de "instrução", enquanto as direitas falariam de "manipulação".
UDN x populismo
Em 1932, um novo Código Eleitoral instituiu o alistamento eleitoral obrigatório, assim como o voto, agora secreto, e ainda o sufrágio feminino e a justiça eleitoral. Analfabetos (mais da metade da população) e baixas patentes militares continuaram excluídos da brecha de participação política que se abria com a legislação. Sobre essa história, é difícil tecer comentários no que diz respeito à percepção popular, já que as pessoas comuns jamais foram consultadas sobre o nascimento desse direito-dever, e entre outubro de 1934 e dezembro de 1945 as eleições estiveram suspensas no país. Apenas em 1946, após quase oito anos de ditadura, o Código seria retomado e ainda parcialmente, pois a Constituição daquele ano criou novos dispositivos eleitorais que lhe permitiram, por exemplo, cassar o registro do Partido Comunista Brasileiro. O que se pode dizer é que o fenômeno do "Queremismo" expressou elementos até então incomunicáveis da negociação entre o Estado e a Sociedade. A possibilidade da retirada de Vargas da cena política levou multidões às ruas "pela constituinte com Getúlio", ou até pela manutenção, fosse como fosse, de Getúlio no poder. Sua persona se consolidaria ali, após o Estado Novo e no momento da primeira redemocratização, como um marco fundador de sentidos para o "ser" de esquerda e de direita tal como conhecemos hoje.
O historiador Jorge Ferreira costuma lembrar a perplexidade da oposição a Getúlio diante das manifestações de afeto popular após o período ditatorial. Teria nascido dessa incompreensão política a categoria de interpretação intelectual "populismo". Ou seja, o atendimento pontual de necessidades populares, aliado ao discurso dos "ricos contra os pobres", dos "grandes contra os pequenos" - que vitimiza e heroiciza ao mesmo tempo -, poderia se colar a uma estrutura política, econômica e social bastante impopular e até autoritária.  A política, nesse caso, se vincularia mais ao discurso do que à prática, mas dependeria inevitavelmente da capacidade de decodificação das demandas populares em cada momento.
O “populismo” nasceu, portanto, na academia, mas foi como prática social que seus desdobramentos alcançaram dimensões atemporais. Com o fim Segunda Guerra Mundial e o consequente fim da ditadura estadonovista no Brasil, foi restaurada a arena política pluripartidária. A UDN, União democrática Nacional, foi até 1964 o maior partido de oposição a Vargas, e um dos primeiros a tornar “populismo” um xingamento, uma desqualificação política que incluía a “manipulação do povo” e a “demagogia política”. Representante do liberalismo econômico, o partido defendia o desenvolvimento pela via da livre associação das riquezas nacionais ao capital internacional, além de um profundo anticomunismo. Sob a bandeira da Democracia, a UDN participou de todas as tentativas de golpe até 64, e seu nome mais conhecido nacionalmente, o jornalista Carlos Lacerda, era inimigo público de Vargas e do “populismo”.
Golpismo, antivarguismo, anticomunismo e antinacionalismo udenistas apareceram naquele cenário como ameaças claras a toda a população para quem Vargas significou um marco de cidadania, para os comunistas e socialistas do PCB e de outros partidos menores, para o nacional-estatismo trabalhista do PTB, para os supostos democratas do partido de latifundiários PSD - Partido Social Democrático. A UDN, naquele momento histórico, conseguiu reunir todas as pautas da agenda conservadora brasileira desde os tempos da escravidão, e se tornaria símbolo radical do que é ser de direita no país.  
Sobre aquilo a que hoje chamamos de esquerdas, retrospectivamente, poderíamos pensar que após as experiências do nazismo alemão, do fascismo italiano, da morte em massa por motivos racistas na Segunda Guerra, e, internamente, após a ditadura varguista, seu nascimento em tempos democráticos seria marcado pelo desejo de liberdade. Tal como uma responsabilidade moral após os regimes autoritários. Mas não há o menor indício histórico de que, em qualquer lugar, a política obedeça à lógica da coerência. Foi a necessidade, intuitiva e estomacal, que ganhou lugar principal nos discursos que se diziam representantes das classes populares.
A “luta”, como se dizia à época, se deu pelo desenvolvimento econômico de bases industriais, liderado, porém, pelo “proletariado” e contra o “imperialismo”, principalmente norte-americano em tempos de Guerra Fria. A Reforma Agrária que nos anos 60 seria defendida pelas Ligas Camponesas “na lei ou na marra” seria o elemento mais desestabilizador das alianças políticas que colocam UDN à direita, PSD ao centro e PTB-PCB à esquerda. O objetivo da reforma trabalhista, no entanto, era estimular a formação de grupos de pequenos proprietários a partir da desapropriação por interesse social de latifúndios até então improdutivos que beiravam as estradas, rodovias e açudes construídos pelo Estado. Segundo o presidente trabalhista entre 1961 e 1964, João Goulart, a formação de pequenos proprietários acalmaria os ânimos no campo, estimularia a produção agrícola e desenvolveria o capitalismo de forma “mais humana”. Até o golpe civil-militar que instaurou mais 20 anos de ditadura no Brasil, as esquerdas democráticas – que desde 1958 contariam com o apoio do PCB -, defenderiam reformas no capitalismo que proporcionassem condições consideradas mais igualitárias. 
A esquerda de João Goulart
Em 2007, Jorge Ferreira e Daniel Aarão Reis, dois historiadores especialistas no período que vai de 1945 até o tempo presente, com variados temas e problemáticas, publicaram coletânea de três volumes intitulada As esquerdas no Brasil. Para avançar nas questões propostas, os autores pressupõem a necessidade de definir o que é ser de esquerda, e tomam emprestado o conceito de Norberto Bobbio ao qual somam alguns elementos. Ficou assim: ser de esquerda inclui as forças e lideranças políticas animadas e inspiradas pela perspectiva da igualdade, ou pela mudança – reformista ou revolucionária – em direção à igualdade, ou à crítica aos valores e às propostas do liberalismo, visto, por sua vez, como fonte de desigualdades, fonte e força de conservação da ordem tradicional.  Sobre o período que se estende da Constituição de 1946 até o “golpe civil-militar” de 1964, também chamado de “República Democrática”, afirmam tratar-se de um momento em que as esquerdas apresentaram várias propostas de reforma da sociedade ou de construção de novas alternativas. No conjunto, teriam sobressaído os comunistas do PCB e os trabalhistas do PTB, que, aliados no plano sindical e no campo político, teriam apresentado uma alternativa de poder.
O fato é que nos quase vinte anos que se seguiram à democratização (1945), o conjunto de propostas dominante no imaginário dos grupos institucionalizados que diziam representar a esquerda brasileira (vale lembrar que em 1946 o registro do PCB foi cassado), gravitou entre a possibilidade de ser proprietário de alguma coisa para além de sua força de trabalho e a expropriação do poder político concedido aos estrangeiros através da permissão de suas remessas de lucros garantidos pelas filiais nacionais às matrizes de origem externa. Ser de esquerda, para a maioria da população, configurou-se como lutar contra os ricos para ser proprietário também. A igualdade, ao que parece, tinha a ver com ser igual aos ricos, ter suas boas condições de vida, de trabalho e de lazer – tratava-se menos de uma alternativa ao modelo de sociedade capitalista do que de uma reconfiguração do mesmo modelo. Nos anos de 1960, cerca de 40% da população era rural, analfabeta e sem direito ao voto.
Uma “oxigenação” da vida social e do cenário político marcada pelo conflito ganhou dimensão inequívoca e espontânea apenas a partir de 1961, quando o herdeiro político de Getúlio Vargas tornou-se presidente do Brasil. João Goulart não foi eleito para esse cargo; era vice quando Jânio Quadros, apoiado pela UDN nas eleições de 1960, renunciou. A primeira reação ao retorno do “populismo varguista” no Brasil, no auge da disputa entre democracia liberal e comunismo no plano internacional, veio das direitas anticomunistas. Ministros militares tentaram inviabilizar a posse de Jango em razão de seus compromissos históricos com o movimento sindical “baderneiro” e “pelego”.
Cinco anos antes, Goulart havia sido eleito vice-presidente na chapa de Juscelino Kubitscheck, do qual se diferenciava pela relação mais próxima com os movimentos sociais. Ao que tudo indica, Jango cumpria o papel de equilibrar o governo apoiando greves e apresentando e reapresentando propostas consideradas mais populares ao Congresso Nacional. Estas proposições giravam em torno das relações de propriedade, controle do capital externo, relações trabalhistas e distribuição de renda. Enquanto isso, JK “desenvolvia” o país numa velocidade de 50 anos em apenas 5. Capital e indústrias internacionais ganhavam o mercado brasileiro em associação com empresários e latifundiários nacionais, eletrodomésticos e automóveis satisfaziam as classes médias, e a televisão começava a promover esses bens à categoria de sonhos de consumo e realização pessoal de todas as classes e grupos. 
A posse de Goulart vinculou-se à condição parlamentarista, mas soou como uma vitória aos ouvidos das classes populares. Nos pouco mais de dois anos seguintes, a sociedade experimentaria movimentação política de natureza popular inédita. Surgiram, por exemplo, as organizações de esquerda revolucionárias em defesa de um sistema socialista de governo, ainda que bem pouco definido programaticamente, mas estimulado pelas possibilidades que a Revolução Cubana despertava – um movimento que libertava o povo da opressão social.
Em menos de dois anos, todas as possibilidades, foram, no entanto, eliminadas do cotidiano político. Em duas décadas, elas seriam eliminadas do imaginário social. É claro que mesmo as organizações brasileiras menos institucionalizadas pensavam dentro de parâmetros capitalistas de produção. A revolução era entendida mais como uma redistribuição radical de bens e riquezas do que como uma via alternativa de ser e de viver. Parar a produção industrial, por exemplo, era impensável, mas a ideia era redistribuir o controle dos conglomerados industriais “exploradores” e “imperialistas”. Sem dúvida que mesmo a viabilização das reformas de base do latifundiário João Goulart teria sido uma revolução na tradição autoritária e elitista da cultura política brasileira. Mas Goulart assinou a Lei de limitação das remessas de lucros para o exterior ainda em 1961; em 1964 ainda não a havia regulamentado para que entrasse em vigor. Todos perderam a paciência e, no momento de crise e de polarização política, as forças da tradição pesam imensamente.
Brasília - Marco entre a ditadura e a democracia, Constituição de 1988 completa 25 anos. 1 de Fevereiro, 1987 Constituinte instalada, o povo lota a Esplanada dos Ministérios
Brasília - Marco entre a ditadura e a democracia, Constituição de 1988 completa 25 anos. 1 de Fevereiro, 1987 Constituinte instalada, o povo lota a Esplanada dos Ministérios

Polaridade nos anos de chumbo
À direita e à esquerda, exclamavam os jornais da época, esperemos um golpe. À direita e à esquerda, sim, mas em desigualdade clara de forças. UDN e PSD aliaram-se convocando a moralidade na defesa de seu programa político econômico. Ao lado do antipopulismo, do anticomunismo, antivarguismo, antinacionalismo, e do liberalismo econômico, ser de direita incluía agora a defesa da família, da ordem, da propriedade, da moral e dos valores cristãos – de forma muito semelhante ao que podemos observar hoje. Com as esquerdas ficaram as reformas que não vieram, propostas indefinidas de revolução e o discurso da mudança, seu elemento mais poderoso e mais temido, também ainda hoje. O que se pode dizer é que um caminho à esquerda talvez pudesse ter marcado a história do Brasil, não fosse o curso daquele processo mais determinado pela necessidade e miséria populares, do que pelas exigências de libertação e de mudanças. Escapou aos grupos que se diziam mais revolucionários a questão até hoje não resolvida do sentido e do significado da mudança política para as esquerdas. O novo início contido na defesa da revolução socialista acabou mimetizando em linguagem, organização interna e despreparo para a ação política, as esquerdas consideradas tradicionais e reformistas.
Nas décadas que se seguem, em meio à ditadura, é difícil imaginar outra posição possível às esquerdas de qualquer natureza, que não fosse a resistência, o retorno à democracia que permitisse ao menos a liberdade de expressão e de organização. Em 1968, quando todo o mundo ocidental vive a descoberta de muitos outros conflitos dentro do conflito de classes - a luta das mulheres, dos negros, dos índios, e dos homossexuais, por exemplo -, o Brasil passa por seu momento repressivo mais duro com o decreto do Ato Institucional Nº5.  Foi exatamente nesse ano que surgiram outras formas de pensar as diferenças sociais, não mais reduzidas à divisão entre ricos e pobres – isto é, não apenas uma reconfiguração do modelo capitalista. Nas palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, naquele momento “a pobreza deixava de ser uma categoria econômica, tornando-se uma categoria existencial que envolve a justiça. E a justiça não é só dar dinheiro para o pobre, mas reconhecer todas as diferenças que eram ignoradas e que explodiram”. Em 68, o socialismo começou a se desacreditar e a política de esquerda não pôde mais ser feita como antes. Mas nós estávamos blindados.
A repressão violenta e arbitrária não impediu que no dia 26 de junho de 1968, cerca de cem mil pessoas ocupassem as ruas do centro do Rio de Janeiro e realizassem o mais importante protesto contra a ditadura civil-militar. A manifestação cobrava uma postura do governo diante das demandas estudantis e, ao mesmo tempo, refletia o descontentamento com a vida em tempos de ditadura, por parte de intelectuais, artistas, padres, grande número de mães, entre outros grupos sociais. Era o que era possível fazer, lutar contra a ditadura.
Oposição na redemocratização
Em 1985, quando o regime de exceção estendido por quase vinte anos cedeu lugar ao sistema democrático depois de um processo lento, “seguro” e gradual comandado pelos militares, ser de esquerda significava ter sobrevivido. Significava contentar-se com uma anistia nem ampla nem geral nem irrestrita e recíproca, como lembra a historiadora Lucília de Almeida Neves: “uma lei que anistiava envolvidos nos crimes da ditadura sem anistiar muitos dos seus atingidos: os presos, por exemplo, saíam das prisões pela redução das penas com a nova lei de segurança nacional, um ato que, por fim, confirmava as condenações; uma lei que ignorava os militares de baixa patente, ratificando, mais uma vez, a punição pela ousadia da recusa à hierarquia e à disciplina.”
Apesar de tudo, uma primeira “agenda democrática” havia sido cumprida, estávamos novamente em um contexto de liberdades políticas e individuais. Um parêntese muito importante, no entanto, se faz necessário. Na década de 1970, um filho de sertanejo, como narra a jornalista Eliane Brum, pega o rumo para São Paulo e lá se torna operário e depois líder sindical, na região até hoje mais industrializada do país. “Ele é filho de uma família retirante que queria primeiro fugir da fome, depois subir na vida pelo ingresso na fábrica, pela via do “progresso” e da industrialização”, conta a escritora. Casa melhorada, roupa boa, geladeira nova e cheia e um carro na garagem são os sonhos mais acalentadores daquele que se tornaria o maior líder entre as esquerdas não apenas no Brasil, mas na América Latina do século XXI.
Luís Inácio Lula da Silva comandou as maiores greves sindicais dos anos 70, em meio ao último extermínio dos integrantes do PC do B pela repressão militar no conflito que ficou conhecido como a chacina da Lapa, também em São Paulo. Por que Lula e seu movimento de esquerda são permitidos pela ditadura?  Porque os sentidos de “ser de esquerda” não são estáticos e têm sido construídos menos à luz da história e muito mais em função do presente. Naquele momento, inequivocamente, a referência era a democracia e não mais a revolução.
Quase trinta anos depois da redemocratização, a política real, prática entre as esquerdas, continua sendo pautada pela busca de igualdade em relação aos ricos, ou, na hipótese do antropólogo já citado, Eduardo Viveiros de Castro, em relação ao “branco”, ao colonizador, ao vencedor do jogo capitalista. Será que esse modelo continua fazendo sentido? Ou podemos nos perguntar o que é ser de esquerda, hoje?
Nashla Dahás é pesquisadora da Revista de História da Biblioteca Nacional e autora da dissertação O Comício da Central: trabalhismo e luta política através da imprensa no Brasil. (1961-1964)
Saiba Mais:
RIBEIRO, Darcy. Aos trancos e barrancos: como o Brasil deu no que deu. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). Nacionalismo e reformismo Radical (1945 – 1964). As Esquerdas no Brasil. vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
SAFATLE, Vladimir (Org.); TELES, E. L. A. (Org.). O que resta da ditadura: A exceção brasileira. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2010.
CHALOUB, Jorge. “Dois liberalismos na UDN: Afonso Arinos e Lacerda entre o consenso e o conflito”. Revista Estudos Políticos, n. 6 (UFRJ, 2013).
DANOWSKI, Déborah, CASTRO, Eduardo Viveiros. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Instituto Socioambiental, 2014.

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