quarta-feira, 13 de abril de 2016

Um continente no currículo

Nova lei é a oportunidade de se ensinar devidamente a rica História da África e sua influência na formação do Brasil.

Marina de Mello e Souza
É curioso que raramente a História da África tenha sido abordada quando freqüentávamos os bancos escolares, aqueles nos quais se deu nossa formação básica. As pessoas de gerações mais antigas, nascidas no início do século XX, podem ter aprendido algo acerca dos grandes reinos africanos como a Núbia e o Mali, sem falar do Egito, que todos estudamos, mas sem articulá-lo ao resto do continente. Naquele tempo, a elite que freqüentava as escolas tinha uma formação bastante completa. Talvez fossem comentadas nas salas de aula as descobertas que o arqueólogo e antropólogo alemão Frobenius fez em 1910 das cabeças de terracota de Ifé. E provavelmente, como ele, os professores se interrogassem, de acordo com os padrões de pensamento da época, como objetos de formas clássicas, adequadas aos padrões de beleza do Ocidente greco-romano, poderiam ter sido feitos por povos africanos, considerados primitivos.
Para a geração dos que nasceram depois da Segunda Guerra Mundial, a África quase não apareceu na escola. Só existia nos filmes de Tarzan que passavam à tarde na televisão, nas imagens de animais majestosos como os grandes felinos, no negro de tanga de palha e lança em riste vigiando o explorador branco dentro do caldeirão fervente das tiras de quadrinhos do jornal.

Neste início do século XXI, o quadro começa a mudar. Teve que ser na base da imposição legal, regulamentada na lei n° 10.639 de 2003, resultante da atuação de alguns políticos e, principalmente, da pressão exercida por grupos de defesa dos direitos dos negros. Este ano, incorporou também a obrigatoriedade do ensino de história e cultura dos povos indígenas, mudando para lei n° 11.645. O texto diz que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira”, incluindo “o estudo da História da África e dos Africanos”.

Essa nova situação levou a uma busca de materiais didáticos com os quais trabalhar, e de aperfeiçoamento por parte dos professores que não tiveram contato com a História da África em sua formação. Como só há pouco tempo o tema passou a ser dado nas universidades e a ocupar com mais freqüência as preocupações dos pesquisadores, a carência de formação dos professores e de material didático é compreensível. Mas isto está mudando. Já há algum material em português para orientar professores e alunos dos vários níveis, como livros de literatura para crianças, didáticos para jovens e de cunho mais acadêmico para professores. Esses materiais ainda são escassos, e poucos são realmente bons, pois antigos preconceitos teimam em persistir, seja por desinformação, seja pela força das heranças recebidas.

Para mudar a forma como em geral lidamos com assuntos relativos à África e aos africanos, é indispensável conhecer um pouco acerca de suas realidades presentes e passadas. Antes de tudo, é necessário chamar a atenção para a diversidade das sociedades africanas, que viveram processos históricos variados e que devem ser entendidos como parte da história da humanidade.

Continente onde primeiro surgiu a vida animal, assim como o homo sapiens, ele conheceu a metalurgia pouco depois de ela aparecer, no século V a.C., na região da Anatólia, atual Turquia. À época das primeiras grandes civilizações da Antiguidade, o Egito, o porto mediterrânico de Alexandria, a Núbia – articulada aos circuitos do Mar Vermelho pelo porto de Axum – e cidades como Zanzibar, no Oceano Índico, estiveram ligados a circuitos comerciais e culturais do Mediterrâneo e do Oriente. Campo de atuação de pessoas vindas da Península Arábica, toda a região do Saara e seu entorno, e partes das costas índicas, adotaram o islamismo como religião e forma de vida por volta do século VIII, atribuindo-lhe temperos próprios.

No despontar da Idade Moderna, com as grandes navegações empreendidas a partir de Portugal, sociedades africanas da costa atlântica até então nunca visitada por povos de fora do continente também passaram a fazer parte de circuitos de relações intercontinentais. Algumas dessas sociedades forneceram grande parte da força de trabalho utilizada na construção de um Novo Mundo, como a América foi chamada, em carta escrita em 1502, por Américo Vespúcio, navegador que deu seu nome a esse continente, colonizado por europeus.

É a partir de então que a história das sociedades africanas se aproxima da nossa. O sistema colonial português incluía a África; a economia da colônia americana dependia dos africanos; o povo brasileiro se formou com a participação maciça dos afro-descendentes, e a sua cultura, principalmente a popular, deve muito às contribuições das culturas africanas trazidas pelos que foram escravizados em suas terras natais. Estas constatações nunca foram questionadas, mas, mesmo assim, o olhar dos brasileiros raramente se voltou para a África.

Nem sempre a África esteve distante das preocupações da elite bem pensante que controlava a economia brasileira. No tempo do tráfico de escravos, os interesses nas relações comerciais com os chefes locais e a presença portuguesa em algumas regiões do continente africano estimulavam os intercâmbios, inclusive com o envio ao Brasil de algumas embaixadas de Estados africanos, que buscavam melhores condições de comércio com as autoridades coloniais. Os luso-brasileiros se empenharam em conhecer melhor as terras com as quais comerciavam e de onde vinham os africanos escravizados, com os quais conviviam e dos quais muito dependiam. Exemplo disso é a narrativa acerca do reino do Daomé no final do século XVIII, deixada por Luís Antonio de Oliveira Mendes, erudito, jurista e inventor de máquinas engenhosas.

Além desses contatos mantidos pelas elites, muitas vezes as pessoas que foram escravizadas tinham notícias de suas terras de origem por intermédio dos tripulantes dos navios ou daqueles que aqui desembarcavam vindos de regiões próximas às suas. Esses intercâmbios ficam evidentes em situações nas quais pessoas conseguiram resgatar parentes traficados para o Brasil comprando sua liberdade. Na maioria dos casos, os que voltavam para a África quase nunca conseguiam retomar a vida anterior, tornando-se intermediários entre dois mundos: o africano e o luso-brasileiro.
Mesmo quando eram estreitas as relações entre o Brasil e algumas sociedades africanas, estas eram vistas como atrasadas, devido à predominância de um modo de vida mais rústico se comparado ao europeu ou ao oriental. Havia exceções, como Tombucto, centro de conhecimento islâmico e comércio de ouro, de onde chegavam até a Europa notícias desde o século XIV e na qual nenhum europeu pisou até o início do século XIX. Mas, no geral, o negro era visto como um ser inferior, o que era confirmado por argumentações teológicas e filosóficas que justificavam a escravização dos africanos.

O distanciamento radical entre o Brasil e a África ocorreu não só devido ao fim do tráfico de escravos, em 1850, e à interrupção do fluxo de entrada de africanos, mas também devido à adoção, por parte da elite política e intelectual brasileira, das idéias evolucionistas e racistas então predominantes na Europa. Com a lei que aboliu a escravidão (1888) e a instauração do regime republicano (1889), o negro ficou associado a uma situação de atraso, a um Brasil arcaico que a elite queria deixar para trás, tanto por remeter a um passado escravista como a uma África entendida como primitiva. Por que, então, tratar de temas ligados a esses assuntos na formação dos jovens brasileiros? Por que estudar a história de um continente ao qual estávamos indubitavelmente ligados, mas do qual queríamos nos distanciar? Por que considerar a contribuição dos povos e culturas africanos para a formação do Brasil se seu estágio de desenvolvimento era considerado atrasado?

Se era difícil incorporar o negro e as heranças africanas à configuração de uma nação moderna, houve jeito de admitir a mestiçagem. No início do século XX, a idéia de uma convivência harmoniosa entre as raças que se misturavam há séculos permitiu a disseminação da crença de que no Brasil não havia preconceito racial. No entanto, as imigrações de europeus e asiáticos, que passaram a disputar os postos de trabalho com os afro-descendentes – cuja pele expressava o estigma da sua suposta inferioridade –, foram mais um elemento a reforçar a marginalização dos negros. No Brasil que se industrializava, se urbanizava e garantia direitos mínimos ao trabalhador, a situação dos negros continuou ruim.

Na segunda metade do século XX, a tendência à superação das idéias racistas permitiu que os diferentes povos e culturas fossem percebidos a partir de suas especificidades. Grupos de negros pressionaram pela adoção de medidas legais que garantissem a eles igualdade de condições e combatessem a segregação racial. Chegamos então ao ponto em que nos encontramos, tendo que tirar o atraso de décadas de descaso por assuntos referentes à África.

Ensinar História da África e aspectos da cultura afro-brasileira nas escolas parece ser um bom caminho para nos livrarmos de preconceitos historicamente constituídos e que ajudam a impedir que a população negra tenha igualdade de oportunidades diante da parcela mais branca, ou mais clara, dos brasileiros. Isso não tem nada a ver com estimular antagonismos entre as raças, num país composto de pessoas de ascendências variadas, ou seja, mestiças. Mas sim com valorizar o que há de africano, e conseqüentemente de negro, em todos nós, assim como devemos valorizar o que há de europeu, de oriental e de indígena.

Marina de Mello e Souza é professora de História da África e de Cultura Afro-brasileira na USP e autora de África e Brasil africano (Ática, 2008).

Saiba Mais - Bibliografia:

CASCUDO, Luís da Câmara. Made in África. São Paulo: Global, 2001.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Classes, raças e democracia. São Paulo: Editora 34, 2002.

LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006 (1ª edição, 1988).

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Editora Contexto, 2007.

Saiba Mais - Filmes: 

“Diamante de Sangue”, de Edward Zwick (2006), Warner Bros.
“Pierre Verger, mensageiro entre dois mundos”, de Lula Buarque de Holanda (1998), Europa Filmes.

Para vários contextos, vários estilos

Há muitos livros com os quais se pode trabalhar a História da África. Para o nível fundamental, em Histórias de Ananse (Editora SM), Adwoa Badoe, nascida em Gana, registra fábulas tradicionais em torno das situações vividas por uma aranha. Por meio delas, é possível apresentar vários aspectos culturais da região. As panquecas de Mama Panya (Editora SM), de Mary e Rich Chamberlin, também permite aprender sobre a maneira de viver dos africanos de forma lúdica e agradável para crianças.

A África explicada a meus filhos (Agir), de Alberto da Costa e Silva, se destina ao leitor jovem, abordando temas da história africana de todos os tempos, num formato de perguntas e respostas propício para se trabalhar em conjunto com alunos de uma faixa intermediária.

Para o ensino médio e universitário, A experiência africana (Jorge Zahar), de Roland Oliver, apresenta temas “da pré-história aos dias atuais”. Em A África na sala de aula (Selo Negro), Leila Leite Hernandez se debruça sobre a história contemporânea, podendo assim analisar mais detalhadamente os fatos.
A literatura é uma porta privilegiada para o conhecimento de diversos aspectos e momentos das sociedades africanas. Bons exemplos são A gloriosa família, que se passa na Angola no século XVII, e A geração da utopia, sobre jovens angolanos envolvidos com movimentos de libertação colonial – ambos escritos por Pepetela e editados pela Nova Fronteira. Para a região do Mali, as memórias de infância de Amadou Hampâté Ba, Amkoullel, o menino fula (Casa das Áfricas e Palas Athena), são um retrato vivo das tradições ancestrais imersas na situação da dominação colonial francesa no início do século XX.

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