quarta-feira, 13 de abril de 2016

Corpo Fechado

Tradição fetichista, as bolsas de mandinga ofereciam proteção contra males do corpo e do espírito e se popularizaram na Colônia

Leonardo Carvalho Bertolossi
Bahia de todos os Santos, ano de 1752. “E tomando pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.” (Lucas 22:19) Após a comunhão, o ex-escravo José Martins soube o momento certo de retirar discretamente da boca a hóstia que acabara de receber. Delatado aos inquisidores, ele confessou que, ao sair da cerimônia, abriu uma pequena bolsa repleta de mandingas que levava consigo e lá dentro pôs o corpo de Cristo. Acreditava que assim seu corpo estaria fechado.
Símbolo do intercâmbio cultural entre a Igreja das irmandades e os calundus, as bolsas de mandinga refletiam a diversidade de idéias e práticas da “medicina mágica”, muito popular na América portuguesa do século XVIII. Em um mundo fortemente marcado pelo medo do Diabo difundido pela Igreja, pela baixa condição social de seus habitantes, pela precariedade da medicina e ainda pela influência das religiões africanas e ameríndias, abundavam as mais diversas explicações e soluções oferecidas para a cura das dores do corpo e também do espírito.
Identificados popularmente como “mandingueiros” ou “calunduzeiros”, os que difundiam esses conhecimentos foram chamados também de “curandeiros” ou “feiticeiros negros” pelos inquisidores da Igreja Católica, que não os viam com bons olhos. Os calundus designavam  um conjunto muito variado de práticas religiosas africanas de diversas procedências, não raro mescladas. As curas mágicas praticadas por eles concorriam ainda com outros métodos e saberes médicos, como os remédios da botica, nome dado às farmácias coloniais, e a aplicação de sanguessugas, entre várias outras terapias.
Ao lado de terços, figas, ágnus-deis, brincos e colares feitos de corais, pencas de balangandãs, escapulários e outros amuletos, as bolsas de mandinga eram uma produção simbólica criativa dos escravos aqui subjugados. Símbolos de saber e poder paralelos aos conhecimentos das medicinas colonial e da Igreja, atingiram diversos segmentos da sociedade, de escravos e forros (escravos libertos) a padres, nobres e sertanejos, provocando fascínio e medo em muitos. A tradição européia de amuletos se misturava aos costumes africanos e aos fetichismos ameríndios.
De origem africana do reino muçulmano de Mali, que floresceu no vale do Níger e no Senegal por volta do século XIII, as bolsas de mandinga eram amuletos produzidos e usados, em busca de proteção e poder, pelo povo malinke ou mandinga.
Devido ao movimentado comércio que faziam com outros povos, os mandingas eram um povo rico. Tinham uma intensa vida urbana, com mais de 400 cidades no Império Mali. As mercadorias negociadas eram transportadas pelo deserto, chegando à Europa pelo Mediterrâneo, e também à África tropical. Ouro, sal, ferro, escravos, tecidos e marfim eram os produtos mais solicitados. Muito comuns na Costa da Guiné, os amuletos, chamados na região de gri-gris ou gris-gris, eram usados ao redor do pescoço e deveriam ser confeccionados por mestres espirituais letrados e inspirados em seus poderes místicos, tendo sido ainda fonte de renda para muitos por sua comercialização na África e em Portugal. Através deste intenso fluxo comercial, os amuletos, que no Brasil e em Portugal ficaram conhecidos como “bolsas de mandinga”, se espalharam por outros territórios de língua banto, até a Costa da Mina, por exemplo.  
Transportados para a América portuguesa como escravos, onde ficaram conhecidos como “malês”, os mandingas trouxeram seus amuletos, que vieram a ter ampla difusão na Colônia e foram usados como “patuás terapêuticos” contra doenças do corpo e da alma, receitados por calunduzeiros, mas também por padres. Na Bahia e no Rio de Janeiro, os malês eram identificados por usarem em torno do pescoço talismãs com insígnias de Salomão e papéis com versículos do Alcorão, e ao mesmo tempo eram considerados hábeis na magia negra.
Esses talismãs se modificaram ao serem também difundidos pelos escravos bantos, entre eles muitos calunduzeiros, na América portuguesa. Passaram a ser confeccionados em pano, geralmente de cor branca, e a conter pedaços ou cacos de pedra d’ara (pedaço de mármore do altar) e pequenas tiras de papel cheias de símbolos. A estes eram acrescentados ainda diversos elementos, como olho de gato, pedra de corisco, pólvora, balas de chumbo, osso de defunto, moedas de prata, sangue humano e de animais. Além de acreditarem ter o corpo fechado ao usá-las, muitos daqueles que traziam as bolsas em volta do pescoço esperavam também que estas lhes trouxessem dinheiro, sorte e mulheres. 
A força das mandingas estava no ritual que lhes conferia um poder místico após sua confecção. Eram cozidas dentro de bolsas e defumadas com incensos e ervas para depois serem benzidas e enterradas em encruzilhadas à meia-noite ou depositadas debaixo do altar de uma igreja para serem rezadas, o que as tornaria ainda mais poderosas.
Nesta época, os amuletos de origem tradicional européia começavam a se misturar aos costumes africanos e aos fetichismos ameríndios. Devido à simbologia sincrética que possuíam, ao mesmo tempo mística e mestiça, as bolsas foram usadas em larga escala na Colônia por pessoas de diversas camadas sociais. Aliadas aos remédios da botica, consideravelmente menos procurados do que as diversas práticas de curandeirismo popular disponíveis, as bolsas de mandinga se inserem num vasto repertório de soluções alternativas – clandestinas, diga-se de passagem – que pretendiam curar as moléstias cotidianas dos colonos.
Introduzidas pelos malês na Colônia, as bolsas serviram como amuletos terapêuticos desde o século XVII. Muito difundidos no século XVIII, os amuletos foram utilizados na América portuguesa até o século XIX, tendo deixado marcas nos amuletos das religiosidades populares de várias regiões do país até a atualidade.
No ano de 1835, durante o Levante dos Malês, foram encontradas e apreendidas pela polícia do Império suras transcritas (capítulos do Alcorão) e rezas. Na maioria dos casos, os talismãs estavam escritos em árabe correto e bem ortografado. Isto pode ser um indício da importância da cultura escrita para os rituais e objetos sagrados dos malês.
De mandingas a malês, este povo africano foi se reinventando. Primeiro, mesclando, ao longo dos séculos, tradições de culturas tribais africanas e muçulmanas da Costa da Guiné e, posteriormente, de Angola. Quando chegaram ao Brasil, os malês incorporaram traços de expressões culturais ameríndias, africanas, e cristãs portuguesas. 
Apesar de ser visto como um elemento profano, o uso de amuletos presos ao corpo ou à roupa era comum na Europa desde a Alta Idade Média, tendo sido adotados também em Portugal. No Brasil, a primeira metade do século XVIII representou o auge do uso dos amuletos. Neste período, traços culturais cristãos e ameríndios se misturaram à expressão original africana, o que se observou no porte de bolsas de mandinga com orações muçulmanas e também católicas, como a de São Marcos, pelos roceiros e vaqueiros de Goiás, por exemplo.
Tanto no Brasil como em Portugal, o uso das bolsas de mandinga era recriminado pela Igreja Católica e pela Inquisição, embora os inquisidores estivessem mais preocupados em perseguir judeus e cristãos-novos, tidos como infiéis do Reino. A Igreja colonial foi conivente e, para não perder vinténs e tempo com os batuques dos negros, fez vista grossa às manifestações africanas. Mesmo assim, quando rituais considerados pagãos e heréticos eram delatados ou ganhavam muita visibilidade, estes deveriam ser recriminados e punidos, pois sua força religiosa ilimitada e contagiante poderia “poluir” e ameaçar a ordem social projetada pela Igreja.
Apesar da repressão, a convivência e a conivência cotidianas da sociedade com os calundus e toda sorte de calunduzeiros, associados e confundidos com benzedeiros, rezadeiros, curandeiros e adivinhos, permitiram que eles continuassem a existir durante anos na América portuguesa. Minas Gerais foi a região colonial onde mais se encontraram calundus, e, curiosamente, onde mais surgiram irmandades negras até o fim do período colonial. Um exemplo desse fenômeno é a angolana Luzia Pinta, calunduzeira muito solicitada e bem-sucedida na freguesia de Sabará, em Minas Gerais, entre 1720 e 1740, que misturava tradições africanas, católicas e indígenas em seus rituais (dando origem ao que se convencionou chamar posteriormente de umbanda).
Outra manifestação notável foi o calundu de Josefa Maria ou Josefa Coura. Conhecido por sua “dança de Tunda” ou “Acotundá”, o ritual era realizado no arraial de Paracatu, em Minas Gerais, na segunda metade do século XVIII, em devoção a um deus do golfo da Guiné. Vale ressaltar ainda o caso da famosa “feiticeira-calunduzeira” Rosa Egipcíaca, prostituta em Minas Gerais e vidente no Rio de Janeiro durante o século XVIII, a quem muitos solicitavam os serviços de vidente para a proteção do corpo. 
Além das “profanas” bolsas de mandinga, outros pequenos amuletos, como os “bentos” escapulários, tiveram grande popularidade na Colônia. Foi o caso das figas, associadas também aos mandingueiros e calunduzeiros, e atreladas a um passado escravista. Possivelmente de origem européia, a figa foi um dos amuletos mais antigos, usado para trazer sorte e proteção, e também símbolo de fertilidade.
‘Terapias” como amuletos de corais e balangandãs também tiveram ampla difusão na “medicina mágica” colonial. Usados especialmente nas Minas Gerais do século XVIII por homens e mulheres que buscavam proteção contra o mau-olhado e outras ameaças, os amuletos de corais eram feitos nos reinos de Costa do Benin, Mina, Daomé e Yoruba. Ao contrário dos balangandãs, eram usados em torno do pescoço e vinham da Ásia e do Oriente Médio para a África Central por intermédio de mercadores portugueses, venezianos, muçulmanos e africanos.
Penduradas na cintura, as pencas de balangandãs, como ficaram conhecidas na Colônia, foram muito usadas por escravas e forras que também procuravam obter proteção e fartura, especialmente na Bahia e, em menor quantidade, em Minas Gerais. Surgido na América portuguesa, este conjunto de enfeites ou penduricalhos possuía similares africanos e renascentistas. Compostas por elementos também encontrados nas bolsas de mandinga, como ossos, dentes, ouro, prata, ferro, pedras, madeira e sementes, as pencas de balangandãs foram igualmente associadas a práticas heréticas e a cultos fetichistas ao Diabo pela Igreja colonial.
As bolsas de mandinga eram uma das saídas encontradas para os que buscavam proteção contra os males de um mundo conflitante e ambíguo, com diversas influencias culturais se mesclando e assolado pelo medo do Diabo, em que se transformara a América portuguesa. Por meio delas e de outros amuletos “terapêuticos” da medicina mágica, negra e alternativa, podemos observar o trânsito entre os calundus e o catolicismo negro das capelas de engenho e, posteriormente, das irmandades. Entre os conhecimentos médicos e espirituais dos calunduzeiros com suas mandingas e a assistência dos boticários das cidades, os escravos africanos tentavam superar as dificuldades e rivalidades impostas ao seu cotidiano, deixando profundas marcas na religiosidade e na cultura colonial.
Leonardo Carvalho Bertolossi é pesquisador do projeto “O Sistema de Saúde do Escravo no Brasil do Século XIX”, da Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz, e recém-aprovado no concurso de mestrado em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.

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