quarta-feira, 13 de abril de 2016

Apelo sobrenatural

A crença na magia e na feitiçaria era compartilhada por brancos e negros no Mato Grosso colonial

Mario Teixeira de Sá Junior
Quando viu aquele embrulho suspeito na porteira do curral do capitão Carlos de Oliveira em Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, o preto alforriado Joaquim Moreira achou por bem averiguar o que havia ali dentro.  Encontrou, entre outros objetos, pedaços de couro, corais, uma argola de ferro, versos de uma oração e até mesmo alguns bicos de pássaros, tudo isso envolvido por um lenço de tabaco. Pensando ser feitiçaria, Joaquim ateou fogo naquelas coisas. Contrariado, o escravo Manoel Quiçamá, autor do embrulho, foi tomar satisfação, afirmando que “aquilo não era feitiço, mas remédio para curar os outros de feitiço”. 

As práticas de feitiçaria e magia faziam parte do dia a dia dos habitantes da região do Mato Grosso no século XVIII. Casos como o de Joaquim Moreira e uma série de denúncias sobre práticas de adivinhadores, rezadores, curadores e feiticeiros podem ser encontrados nos Autos da Devassa da Visita Geral da Comarca Eclesiástica de Cuiabá, realizada em 1785. Apesar de o Tribunal do Santo Ofício – braço da Igreja responsável pelo julgamento de crimes religiosos – não ter se estabelecido no Brasil, seus representantes realizaram sete importantes visitas, além de outras de menor impacto.

Os números da Devassa, que significa “investigação”, revelam aspectos muito interessantes sobre as acusações. Das 15 denúncias de prática de magia, 12 foram feitas por brancos. Em relação às acusações de feitiçaria, temos uma proporção próxima: das 48 acusações, 30 foram feitas brancos. Seguindo a mesma lógica, das 15 pessoas acusadas por magia, apenas seis eram brancas. Além disso, entre os supostos feiticeiros não havia sequer um branco. O grande número de denúncias de magia e feitiçaria feitas por brancos mostra como eles acreditavam que negros e índios usavam estas práticas nos conflitos cotidianos. 

Apesar de ambas apelarem ao sobrenatural e serem proibidas, as duas práticas tinham grandes diferenças. Enquanto a magia se ocupava de intervir na ordem natural, à feitiçaria cabia a tarefa de criar ou solucionador malefícios, lidando, direta ou indiretamente, com a presença dos agentes do mal. Por esta razão, era considerada um crime mais grave. Dessa forma, a magia se ocupava mais de ações como a cura de doenças por meio de rezas e remédios, e a feitiçaria buscava as forças do outro mundo, maléficas – segundo a Igreja –, para solucionar ou criar problemas. 

Se a crença nessas práticas era coletiva, o papel reservado a cada grupo social nelas envolvido era diferenciado. Enquanto ao branco cabia o papel de cliente, ao negro e ao índio estava reservado o de fazedor e curador do feitiço. Um exemplo de como os brancos temiam que a feitiçaria fosse usada contra eles por negros e índios encontra-se nos Anais de Vila Bela, de 1770. Buscando uma razão para a longevidade de um quilombo, o autor do documento recorre a explicações de outra ordem. Segundo ele, o quilombo teria como “maior oráculo o tal Piolho, por ter sido, em outro tempo, rei em um quilombo que se dissolveu nos matos da cidade do Rio de Janeiro”. O papel de destaque conferido ao oráculo sugere a crença de que os poderes “diabólicos” nos quais o quilombola Piolho se fiava – como afirmou o autor – teriam contribuído para a duradoura resistência do quilombo. Acreditar em tais denúncias significaria crer que o diabo realmente se colocava ao lado de negros, índios e seus parceiros, contra os brancos. 

O advogado e cronista Barbosa de Sá (17?/1776) registra um fato curioso ocorrido após a monção de 1734. As monções eram viagens em barcos que levavam tudo o que fosse necessário para se sobreviver e produzir nas minas e terras de Cuiabá e Mato Grosso entre os séculos XVIII e XIX. Após a frota ter passado pelo Rio Cuiabá e já ter alcançado o Rio Paraguai, avistaram-se fogueiras. Temendo encontrar índios guaicurus ou paiaguás, os marujos “rodaram mansamente sem fazer estrondo e antes da meia-noite chegaram aos fogos (ou seja, às habitações)”. Lá estavam os paiaguás, que já sabiam da presença daquela monção. Surpresos e impressionados, os expedicionários associaram o fato a uma “revelação dos seus feiticeiros (dos índios)”. 

Um outro caso reforça a tese de que africanos, indígenas e seus descendentes ocuparam em maior número o papel de magos feiticeiros. Em 1799, morreram cinco escravos do alferes Joaquim Paes. Dois feitores, o escravo Francisco Preto, o Suçu, e o branco José Barros, foram acusados de maus-tratos, o que teria provocado as mortes. Somente no processo de Suçu há um outro motivo para a acusação: o uso de feitiçaria. O mais curioso é que a denúncia foi feita pelos próprios escravos, colegas de Suçu. Isso demonstra que os atos de acusação não ficaram restritos aos brancos. Eles se disseminaram por toda a sociedade.

Nas práticas de feitiçaria, os conceitos de bem e mal, certo e errado, divino e diabólico podiam coexistir de forma ambígua, diferentemente do cristianismo. Se, por um lado, o feiticeiro podia ganhar uma reputação negativa, por outro, sua sabedoria era valorizada por muitos. Os conhecimentos sobrenaturais que lhes foram atribuídos seriam capazes de “explicar” e propor soluções para uma série de males e conflitos cotidianos enfrentados pelos seus contemporâneos. 

Mas, afinal, para que servia a feitiçaria? Assuntos ligados ao amor ou à saúde, problemas econômicos, sociais ou judiciais, entre outros, faziam parte da longa lista de motivos. Praticamente qualquer problema podia ser levado ao feiticeiro ou mago. 
Alguns souberam se aproveitar de tamanha demanda. Em uma denúncia, a testemunha branca Ursula Rondon relatou que Moxiba, escravo do capitão Carlos de Oliveira, teria ido atender uma escrava sua “enferma, que diziam enfeitiçada”. Após esfregar um frango sobre a cabeça da doente, Moxiba anunciou a aparição de certa quantidade de cabelo dentro da ave. Feitiço? Fraude? Não se sabe. 

Em outra denúncia, feita pelo minerador Francisco Garcia ao visitador do escravo Moxiba, ele afirma que o capitão Carlos recebia “jornal”, isto é, pagamento, do escravo. Apesar de muitos outros delatores terem relatado ignorar tal fato, é possível que as práticas servissem para uma espécie de “feitiçaria de ganho”, na qual o senhor ficava com uma parte do dinheiro e o escravo desfrutava de uma autonomia maior que a de costume. Os cativos ainda podiam sonhar com a compra de sua liberdade. 

Alguns dos feiticeiros de Mato Grosso eram escravos “quartados”, assim chamados porque haviam negociado o pagamento de sua alforria em um período de quatro anos ou mais. Era o caso de Manoel Quiçamá. Outros, como Maria Eugênia e Pai Miguel, já eram alforriados. 

A história de Pai Miguel nos mostra um outro papel reservado aos feiticeiros, o de solucionadores de mistérios – espécie de detetives auxiliados pelo sobrenatural. O minerador e proprietário de escravos Gaspar da Silva Rondon relata à Devassa que Lourenço Fontes, após procurar sem sucesso uma barra de ouro perdida, mandou chamar o feiticeiro. Depois de receber a quantia de dois tostões, Miguel começou “a rosnar consigo tendo na mão uma panelinha de barro, que tirara de dentro de um saco, na qual a panela mostrava ter dentro um óleo, ou azeite, e ajuntando a panelinha a boca estivera batendo-lhe com as mãos”. O feiticeiro afirmou, então, ter tido uma visão que lhe mostrara uma negra de Francisco Guimarães encontrando o ouro. Ao procurar a escrava, a vidência do feiticeiro se confirmou: a barra de ouro estava com ela. 

A documentação sobre Maria Eugênia revela ainda outros detalhes sobre a feitiçaria. Em carta ao governador Luís Cáceres (1739-1792), o capelão José Leitão descrevia o comportamento da feiticeira, que se encontrava presa na cadeia de Cuiabá, em 1778. Ele relata que, antes de enviar os requerimentos ou cartas ao governador em busca da sua liberdade, Maria Eugênia “pulverizava” os documentos e os passava “por certas fumaças”. Nesse caso, a feitiçaria deveria influenciar as decisões da Justiça. 

Mergulhar no fascinante e misterioso universo da feitiçaria no Mato Grosso do século XVIII nos permite ampliar os horizontes da história do período. Mas resta uma pergunta: o saldo de suas práticas trouxe aos feiticeiros mais conquistas ou perdas? Mesmo perseguidos e denunciados, muitos escravos conseguiram, graças a supostos dons sobrenaturais, afrouxar os grilhões e renegociar sua condição. 

Ainda hoje, basta caminhar pelo centro das grandes cidades brasileiras para nos depararmos com panfletos anunciando os serviços de feiticeiras e mães de santo que, entre outras proezas, trazem a pessoa amada em poucos dias. Este fato mostra como tais crenças permanecem vivas no Brasil, oferecendo soluções mágicas para pessoas que querem resolver problemas em suas vidas. Em outras palavras, somos herdeiros do feitiço. 

MARIO TEIXEIRA DE SÁ JUNIOR É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS E AUTOR DA TESE “MALUNGOS DO SERTÃO: COTIDIANO, PRÁTICAS MÁGICAS E FEITIÇARIA NO MATO GROSSO SETECENTISTA” (UNESP, 2008).


Saiba Mais - Bibliografia

BETHENCOURT, Francisco. O Imaginário da Magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

CRIVELENTE, Maria Amélia Assis Alves. Uma devassa nas Minas: imigração e moralidade na fronteira mais remota da colônia Mato Grosso, 1785. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2006.

MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo na Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

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