sábado, 5 de janeiro de 2013

Jeitinho evangelizador


Seja em programas de TV ou no boca a boca, estratégias missionárias brasileiras são um sucesso, inclusive no exterior

Eduardo Refkalefsky


Se igreja fosse um produto da balança comercial, o Brasil estaria com superávit. Nas últimas décadas, foi invertida a tendência histórica, iniciada com a colonização, de receber mais missionários do que enviá-los para o exterior. Agora são os nossos evangelizadores que conquistam o mundo.
A expansão das Igrejas brasileiras no exterior segue as mesmas estratégias ligadas ao seu crescimento dentro do país. O caminho mais visível é aquele que envolve alto investimento midiático e a construção de megatemplos. A Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo, é o melhor exemplo. O uso intensivo da mídia – especialmente o rádio e a TV – e a importância dada às instalações físicas demandam grande volume de capital, bem como uma estrutura de comando rigidamente centralizada. Em relação à hierarquia, essas igrejas se definem como “apostólicas”, cujo poder está na mão do clero, que foi “escolhido por Deus”. Em seus templos no exterior, o poder fica concentrado nas mãos de pastores e, se houver, bispos.
Mas existe outra forma de evangelização extremamente bem-sucedida. É uma estratégia sutil – quase invisível para quem tem pouco conhecimento do meio –, mas que se mostra igualmente eficaz, ou talvez mais, pois gera vínculos duradouros entre os convertidos e as organizações religiosas. Trata-se da “estratégia missionária”, associada aos protestantes tradicionais ou históricos. A palavra “missão” é o centro de todas as suas ações, que não utiliza meios de comunicação e, às vezes, nem mesmo templos. No lugar de uma estrutura centralizada e altos investimentos de capital, concentra-se no papel de missionários isolados, que muitas vezes vão para o exterior só com a própria família.
Enquanto a Igreja Universal é o modelo da estratégia midiática, a Igreja Batista simboliza a estratégia missionária. A constante evangelização (proclamação do Evangelho) faz parte do ideário batista que chegou inicialmente ao Brasil após a Guerra Civil americana, por volta de 1870. Não é comum encontrar nomes como “Igreja Batista de Copacabana”, mas “Primeira Igreja Batista de Copacabana” (“PIB”). Ou seja, pastores e missionários fundam uma igreja já pensando na segunda (“SIB”) ou mesmo na terceira (“TIB”). Estratégias semelhantes são utilizadas pela Congregação Cristã do Brasil (fundada em 1910) e pela Assembleia de Deus (1911), entre outras: foco na comunicação boca a boca e na evangelização pessoal. Em vez de megatemplos, várias igrejas pequenas espalhadas em comunidades na periferia e no interior – ou, às vezes, apenas núcleos missionários ou subcongregações sem templos. Ilustrativa dessa forma de evangelizar é a imagem de um pastor com terno velho, mas bem conservado, Bíblia na mão, indo de bicicleta para o culto em uma pequena igreja.
O objetivo prioritário desses missionários (quando não o exclusivo) é a conversão do evangelizado. Ele se torna membro de uma comunidade de fiéis, o que só se completa com a participação em atividades de ministérios (por exemplo, encontro de casais) ou de evangelização, seja no território nacional ou no exterior. A estrutura congregacional descentralizada permite maior delegação de poder, o que possibilita ao convertido se tornar, ele também, agente evangelizador. A participação e o compromisso costumam ser cobrados pelos próprios fiéis nessas igrejas. Aqueles que só comparecem ao templo uma vez por semana, por exemplo, são pejorativamente tachados de “domingueiros”.
A estratégia midiática, por sua vez, concede pouco ou nenhum poder ao fiel. Ele apenas assiste aos cultos e deposita suas contribuições em ofertas e dízimos. Por mais que a conversão seja desejada e de fato ocorra, a Universal foi pioneira – e logo copiada por outras Igrejas – em abrir espaço para diversos tipos de vínculos entre os fiéis e a instituição. Aceita em seus cultos, principalmente naqueles com um fim específico (prosperidade, emprego, saúde), a presença de católicos, espíritas, umbandistas e praticantes do candomblé. Não exige necessariamente a conversão, no que se adequa ao mundo contemporâneo: o indivíduo recebe influência de diversas instituições produtoras de sentido, sejam formais ou informais (Igrejas, Estado, escola, família, amigos) e faz a sua síntese individual e particular.
Esse modelo proliferou a partir da década de 1960, com o crescente questionamento das bases do mundo moderno, como a fé no progresso e na ciência. Quando os indivíduos já não aceitam mais os antigos discursos para dar sentido à vida, novas explicações para a realidade ganham espaço e possibilidade de alcançar um público cada vez mais amplo. E a organização religiosa, que acolhe desde o fiel que se torna obreiro, participando diariamente dos trabalhos da igreja, até o pedestre atraído pelo cartaz “Pare de sofrer!” (muito usado na Universal), consegue dar conta da complexidade social do mundo de hoje.
No Brasil, a grande presença da Igreja Universal nos meios de comunicação – em especial após a compra da Rede Record de televisão, em 1989 – provoca em muitos a impressão de que ela seja a maior organização evangélica do país, ou de que sua estratégia de crescimento seja a mais bem-sucedida. Nenhuma dessas teses é verdadeira: de acordo com o IBGE, as maiores Igrejas evangélicas do Brasil são, pela ordem, Assembleia de Deus, Igreja Batista e Congregação Cristã (todas com estratégia de crescimento radicalmente diferente da estratégia da Universal). Embora passe despercebida pela classe média urbana, incluindo muitos jornalistas e acadêmicos, a estratégia missionária tradicional, do boca a boca, também tem grande penetração.
Mídia e capital de um lado, evangelização “formiguinha” de outro. Essas duas formas são mais complementares do que opostas, e ambas explicam o sucesso das igrejas evangélicas brasileiras no exterior. Cabe perguntar: junto com as igrejas, estamos exportando uma cultura religiosa própria? Será que a singularidade da cultura brasileira representa um papel importante nesse crescimento?
O Brasil é o único caso de uma miscigenação em larga escala de três etnias, como foi apontado por diversos autores, entre eles Gilberto Freyre (1900-1987) e Darcy Ribeiro (1922-1977). No plano religioso, o equivalente da miscigenação é o sincretismo, principal elemento daquilo  que o sociólogo José Bittencourt Filho chamou de “Matriz Religiosa Brasileira”. Algumas de suas características: o uso da religião para fins práticos e cotidianos (como passar em um concurso); uma moral “franciscana” (termo de Gilberto Freyre para um ideal de mundo simples, pré-racional, anticultura letrada e antimercantil); e a religiosidade entendida como sentimento individual em relação ao sagrado, à parte das religiões institucionalizadas (o que explica, por exemplo, a expressão “católico não praticante”).
Igualmente complexas e contraditórias, essas características parecem se adequar a um momento em que o mundo passa por grandes transformações, relacionadas, sobretudo, ao processo de globalização. A cultura brasileira, caracterizada pela convivência e síntese de opostos, parece ser a resposta ao choque de visões de mundo que ocorre na atualidade. E não apenas com as igrejas evangélicas, mas também com outras experiências religiosas ou místicas, como as mães de santo que têm entre seus clientes corretoras da Bolsa de Nova York, o fenômeno esotérico Paulo Coelho e o sucesso de novelas da TV Globo que têm como base o romance espírita kardecista.

Eduardo Refkalefskyé professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de “Estratégias de Comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus no Brasil e dos Televangelistas nos EUA: um estudo comparado” (UFRJ, 2004).

Saiba Mais - Bibliografia
BITTENCOURT FILHO, José. A Matriz Religiosa BrasileiraPetrópolis/Rio de Janeiro: Vozes/Koinonia, 2003.
MENDONÇA, Antônio Gouvêa de. Protestantes, pentecostais e ecumênicos.São Bernardo do Campo: Umesp, 1997.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiroSão Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/jeitinho-evangelizador

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