sábado, 5 de janeiro de 2013

Multiplicação sem milagre


Crescimento dos neopentecostais não é fruto de maior religiosidade, mas de valores contemporâneos, como o individualismo

Orivaldo Pimentel Lopes Júnior



Manhã de domingo, periferia de Natal. Os fiéis da Igreja Pentecostal Santuário da Fé, apesar da chuva fina, montam algumas mesas de plástico na calçada, sob a marquise na frente da igreja. Sobre as mesas, uma variedade de frutas, pãezinhos, sucos, café. Do fundo vem o som animado de uma música gospel, e os participantes se servem enquanto dançam, riem e convidam os passantes a participar do encontro.
Naquele mesmo bairro de Felipe Camarão funcionam outras 86 igrejas evangélicas. Dez anos atrás, eram 33. Trata-se de uma tendência nacional: enquanto nos últimos 50 anos a população brasileira cresceu 63,2%, o número de evangélicos quase dobrou de tamanho (aumentou 93,3%). A razão pode estar na criatividade e na ousadia evangelística das igrejas neopentecostais,como a Santuário da Fé. Ou na sensação de segurança que os membros da vizinha Metodista Pentecostal celebram ao cantar com vibração: “Solta o cabo da nau/ E navega com fé em Jesus/ Pois com ele seguro serás”. Entretanto, fatores como criatividade ou a produção de uma sensação de segurança apenas descrevem a realidade, mas, isoladamente, não têm força para explicar os elementos imponderáveis dos fenômenos humanos que estão por trás da mudança do quadro religioso no Brasil.
O povo brasileiro sempre foi muito religioso. Nos últimos censos, mais surpreendente do que o crescimento dos evangélicos é o aumento daqueles que se declaram sem religião. Em 1960, estes eram apenas 0,5% da população. Em 2010, o percentual chegou a 8%. Esse aumento paulatino e significativo do número de pessoas avessas à adesão formal a uma religião instituída parece indicar que a religiosidade brasileira está diminuindo, pelo menos em sua face institucional. Curioso, pois não é a impressão que se tem ao ligar a TV ou observar as ruas das grandes cidades.
Ocorre que, até os anos 1960, praticamente todos os brasileiros se diziam católicos. Era uma identidade tão natural quanto o fato de falar português ou comer feijão com arroz. A hierarquia católica assentou-se tranquilamente sobre este fato, e cuidava apenas de manter os símbolos cristãos à disposição nos centros das cidades, nas escolas, nos lares e nas repartições públicas. Em uma geração, ou meio século, o quadro mudou. Antes meros 4% da população, os evangélicos no Brasil já são 22,2%. No caminho inverso, o catolicismo recuou.
Em 1872, os católicos brasileiros chegavam a 99,7% da população. Um dos marcos do protestantismo no país ocorreu em 1910, quando surgiram simultaneamente, em Sorocaba, São Paulo e Belém do Pará, as duas maiores igrejas pentecostais brasileiras: Congregação Cristã do Brasil e Assembleia de Deus. A partir desse momento, junto com as protestantes de migração (que já estavam aqui desde o início do século XIX) e as protestantes de missão (vindas na segunda metade daquele século), passam a ameaçar o monopólio religioso do catolicismo. Mas não se rompeu um traço cultural instituído por séculos com um punhado de igrejas espalhadas pelo vasto território brasileiro. Era uma presença incômoda de fato, mas só era incômoda porque era exótica. Não ser católico era uma agressão ao instituído, pois negava a brasilidade, traía a família e introduzia a desordem.
Ao longo do século XX, a identificação automática com uma religião passa a ser questionada. Quebrada a estrutura de coerção cultural, mais recentemente as pessoas passaram a se sentir livres para dizer “Sou sem religião”. Ou para optar por outras formas de pregação. Resultado: em 2010, os católicos não passavam de 64,6%.
O interessante é constatar que o catolicismo “praticante”, responsável pela ocupação dos templos, tem aumentado. A histórica adesão automática a essa religião fez surgir no país a categoria de “católico não praticante”. São estes que, livres para escolher, se afastam de uma opção da qual já não eram próximos. Afinal, se os 123.280.172 católicos no Brasil se reunissem em templos e capelas, numa média de 123 pessoas em cada um deles, o território nacional precisaria ter um milhão de templos. Porém, só para se ter uma ideia, no mesmo bairro de Natal onde está a Igreja Pentecostal Santuário da Fé, para dar conta dos quase 40.000 moradores que se declaram católicos, deveria haver 350 locais de culto. Mas só existem dois templos e duas pequenas capelas.
Quem são os evangélicos brasileiros?A maioria é pentecostal – entre60% e 80%. Convencionou-se classificá-los em três subgrupos: os da primeira onda são aqueles surgidos na primeira metade do século XX – como Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil; os da Cura Divina, ou segunda onda, surgiram nos anos 1950 – como Deus é Amor e Brasil para Cristo; e os neopentecostais se consolidaram entre as décadas de1970 e 1980 – como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja Internacional da Graça de Deus.
O termo neopentecostal, apesar de consagrado, dá margem a certas confusões. Nem todas as centenas de novas denominações pentecostais que surgem são neopentecostais. O “neo” se refere à forma de ser pentecostal, e não ao tempo em que surgiu a Igreja. Devido ao sucesso, ao profissionalismo de sua aplicação e, especialmente, à crise da modernidade, práticas neopentecostais, como “declaração” de vitória e prosperidade, cânticos triunfalistas, segmentação de “mercado”, especialização litúrgica em torno de determinados temas como casamento, trabalho e doenças, estão presentes em qualquer tipo de igreja evangélica, e até mesmo em algumas católicas.
Enquanto não foi quebrado o monopólio do catolicismo, o Brasil permaneceu à margem daquilo que se convencionou chamar de modernidade ocidental. Racionalidade econômica, ordenação jurídica do Estado laico e democrático, universalização do ensino, mudanças na estrutura agrária, entre outros elementos que caracterizam a modernidade, só ocorreram paralelamente às mudanças culturais próprias do fim do monopólio religioso católico. A insistência pioneira do protestantismo e do pentecostalismo em quebrar esse monopólio permitiu o florescimento de um modo alternativo de se pensar a sociedade. Contudo, em menos de um século a nação caminhou para uma modernidade globalizada e consumista, na qual a religiosidade das soluções mágicas e imediatas encontrou larga aceitação.
Resultado: a religião que mais cresce no Brasil de hoje é aquela que resolve os problemas individuais e distribui benefícios simbólicos imediatos ou celestiais, mas que tem pouco a dizer à sociedade. Seus efeitos políticos ainda são, em sua maioria, eleitoreiros e corporativistas. As atividades sociais que ela promove não obtêm impacto significativo na coletividade. Compõe a paisagem, mas não chega a imprimir uma nova mentalidade.
Novembro de 2009, periferia de Natal. O pastor Edmilson de Melo, do Ministério Pentecostal Unidos por Cristo, é assassinado durante uma vigília de oração em uma duna da região – uma das mais violentas da cidade. O assunto não despertará a atenção dos membros da Igreja Metodista Pentecostal, no mesmo bairro. Nem da sua vizinha, a Igreja Pentecostal Santuário da Fé, ocupada em promover seu apetitoso café da manhã para atrair mais fiéis.

Orivaldo Pimentel Lopes Júnioré professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e autor de “Protestantismo, Democracia e Violência”, no livro Novas Perspectivas sobre o Protestantismo Brasileiro (Edições Paulinas, 2009).

Saiba Mais - Bibliografia
BURITY, Joanildo A. Redes, parcerias e participação religiosa nas políticas sociais no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, tempo e mercado: organização e marketing de um empreendimento neopentecostal. São Paulo: Vozes e Umesp, 1997.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.
Fonte:http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/multiplicacao-sem-milagre

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