sábado, 5 de janeiro de 2013

Sem intermediários

Teorias de Lutero romperam com a autoridade católica pregando o contato direto entre o homem e Deus pelo poder da fé


Evangélicos, batistas, presbiterianos, adventistas, pentecostais, protestantes, anabatistas e congregacionistas. Muitas vezes a discussão sobre a doutrina protestante se concentra no problema de classificar e diferenciar suas diferentes denominações. Mas, para além das definições dogmáticas e das confissões de fé, todas estas Igrejas – e outras que se desenvolveram ao longo da fragmentação religiosa da cristandade ocidental – têm o mesmo ponto de partida: o núcleo doutrinal luterano da justificação pela fé.
Entender o protestantismo significa compreender o que era a fórmula da “salvação pela fé”, tal como foi elaborada pelo frade agostiniano Martinho Lutero, na primeira metade do século XVI, e retomada sucessivamente pelos demais movimentos reformados.
Martinho Lutero (1483-1546) cresceu e se formou na fronteira eslava da cristandade, na Saxônia, Alemanha, ingressando aos 22 anos no Convento de Erfurt. Sete anos depois, tornou-se doutor em Teologia em Wittenberg, onde passou a lecionar Teologia e Exegese Bíblica. Este mergulho direto nas Sagradas Escrituras, entre 1513 e 1517, permitiu que ele formulasse uma nova interpretação do conceito de Deus e do Homem, condensada na sua doutrina da Teologia da Cruz.
O impulso definitivo rumo a esta nova doutrina foi a chamada “experiência da torre”, na qual Lutero elaborou o seu conceito de justiça passiva, refletindo sobre um trecho da Epístola aos Romanos, de Paulo: “o justo viverá pela fé”. Muitos haviam meditado sobre o sentido daquelas palavras, mas em Lutero elas dispararam uma reviravolta teológica: o homem era justificado apenas pela fé e de nada valiam as ações individuais, já que não poderíamos modificar a natureza pecaminosa. Lutero, portanto, desenvolveu uma visão muito pessimista da natureza humana, que, em seu entender, permanecia corrompida mesmo após a redenção, a remissão dos pecados que se realiza, para a humanidade, após o sacrifício de Cristo na Cruz.
Neste caso, a justificação do homem só poderia ocorrer por iniciativa divina: Cristo toma para si o fardo dos pecados dos homens, concentrando os rigores da justa e terrível cólera do Pai. Por mais que o homem fosse pecador, se tivesse uma fé maior que o pecado, Cristo o justificaria.
Ter fé, no sentido luterano do termo, significava compreender o valor do sacrifício de Cristo e crer em sua graça redentora para abrir o horizonte da salvação. Como era um dom totalmente gratuito, sem nenhum correspondente nas ações humanas, implicava a recusa da noção de “obras meritórias” – sobre as quais o papado havia construído sua própria autoridade, inclusive pela teoria das indulgências (remissão das penas cabíveis para os pecados cometidos).
Em suas 95 Teses (1517), Lutero condenava as indulgências, pois elas forneciam aos pecadores uma falsa segurança. Se o homem pecador não pode realizar obras boas, as indulgências são inúteis. O que salva o homem é somente a fé.
Sua luta contra os “abusos” da Igreja Católica não nascera com o objetivo de provocar um rompimento. Tornar laica a vivência religiosa – independente de instituições, de rituais e da presença em locais de culto – e abolir a separação entre o clero e os fiéis eram vistos como um retorno à forma primitiva e apostólica da Igreja, baseada na pregação e na relação direta do crente com Deus, pelas Escrituras.
No sentido católico do termo, ter fé era outra coisa: aderir à mensagem divina da Revelação do modo como os bispos e os párocos a ensinavam aos fiéis. A fé que salva era um sentimento subjetivo de misericórdia divina, a resposta para o problema angustiante da salvação, que seria alcançada, segundo a Igreja, quando se seguiam os seus ditames: confessar-se, arrepender-se e obter a absolvição libertadora, para realizar boas obras. A confissão, para ter valor, deveria ser completa, e os erros discriminados por quantidade, qualidade e circunstância. Era como contar as gotas de água em um oceano!
Nos séculos XVI e XVII, aos olhos de mercadores, artesãos, soldados e camponeses, a Bíblia traduzida para uma linguagem familiar e acessível ao fiel, sem cortes e sem precisar da mediação de intérpretes, significava poder encontrar o que buscavam avidamente: por um lado, um Deus vivo, fraterno e humano para com suas fraquezas, e, por outro, uma nova concepção do sacerdócio.
A definição reformada do sacerdócio universal, expressa pelo lema “Cada homem é pastor de si mesmo”, respondia a este desejo de contato direto com a Palavra de Deus e a uma recusa de todo tipo de intermediação. Para o mercador itinerante, por exemplo, o papel da Igreja como intermediária apagava seu mérito de ter obtido êxito em seu ofício graças ao empenho e a uma educação cultivada privadamente. O gosto pela autonomia e pelo governo de si mesmo não se manifesta apenas nas coisas políticas, refletindo-se também em uma religiosidade mais ativa. Fossem livres, rendeiros, assalariados ou servos, eles traduziam a atuação eclesiástica como mais uma forma de exploração senhorial ou como sua legitimação.
Para a maioria dos fiéis, a Reforma não era um protesto contra os “abusos” das autoridades eclesiásticas, mas uma revolução de sentimentos. A vida deixava de buscar na morte o seu ponto de referência, e os vivos se empenhavam em usar seus méritos aqui na Terra mesmo.

Silvia Patuzzié professora da PUC-Rio e da Fundação Getulio Vargas e autora de “Humanistas, príncipes e reformadores no Renascimento”, no livro Modernas Tradições. Percursos da Cultura Ocidental, séculos XV-XVII (Editora Access/Faperj, 2002).

Saiba Mais - Bibliografia
BAINTON, RolandH. Erasmo da Cristandade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
MAFRA, Clara.  Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

Saiba Mais - Filmes
Lutero”, deEric Till (2003).
“A rainha Margot”, de Patrice Chéreau (1994).
“Seis histórias brasileiras: Santa Cruz”, de João Moreira Salles (2000).
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/sem-intermediarios

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