quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

O cortiço

Quase real


Em O cortiço, Aluísio Azevedo apresenta ricos e pobres sem idealizações


Ligia Vassallo




Não é de hoje que a cidade do Rio de Janeiro é dividida entre ricos e pobres, morro e asfalto. Basta ler o romance O cortiço (1890), obra-prima de Aluísio Azevedo (1857-1913), um dos principais escritores da literatura brasileira, para se perceber que os contrastes sociais já faziam parte do dia a dia dos cariocas desde o século XIX. Ambientada nas vésperas da Abolição e da Proclamação da República, a obra revela um efervescente ambiente urbano, construído com base na observação do cotidiano e sob a influência da literatura francesa, especialmente do livro L’assommoir [A taberna], de 1877, do francês Émile Zola (1840-1902), criador, na Europa, da corrente naturalista, da qual Azevedo é seguidor. 

Na história contada pelo autor brasileiro, um muro separa dois núcleos que estão em permanente conflito. De um lado fica o sobrado da abastada família do comerciante Miranda. Na outra ponta, um agitado cortiço, com seus moradores pobres capitaneados pelo vendeiro português João Romão, amante da escrava Bertoleza. Nesse cenário, a “gente graúda” é composta de ricos estrangeiros da elite social: ingleses financistas, franceses do comércio de luxo da Rua do Ouvidor e portugueses atacadistas, como Miranda e João Romão (este na segunda fase da vida), protagonistas da história e concorrentes. Já a “gente miúda” é formada por pessoas com os mais variados matizes de pele, brasileiras e estrangeiras, identificadas quase sempre com estereótipos negativos, como barulho e sujeira.  

O cortiço é o primeiro romance brasileiro em que determinados tipos sociais são representados sem artifícios ou idealizações. Figuras como a do imigrante italiano, a do capoeira e as dos trabalhadores das ruas aparecem em situações bem reais, compatíveis com suas atividades e modos de viver de cada grupo naquele momento, em imagens sempre integradas à expansão da própria capital carioca. Os bandos de capoeiristas são apresentados com suas práticas e rixas, bem como os vendedores ambulantes, com destaque para o leiteiro, acompanhado de sua vaca, seguida por um bezerro amordaçado. Também são vistos os açougueiros com seus tabuleiros de carne fresca e outros mais. 

Ao mesmo tempo em que contrapõe os grupos sociais, a narrativa transforma a cidade no abrigo dessas diferenças entre ricos e pobres. Aliás, o modo como o ambiente urbano do período é retratado torna a história atraente e inteligível até para os leitores atuais. 
Nesse percurso, o Centro do Rio de Janeiro, com seu comércio elegante, é o local onde residem os profissionais bem-sucedidos, embora outros arrabaldes já estivessem crescendo para receber a elite. Miranda, por exemplo, transfere sua moradia da Rua do Hospício (hoje Rua Buenos Aires) para o bairro de Botafogo, um dos lugares mais procurados pelas famílias mais ricas durante o Segundo Reinado (1840-1889). Repleta de jardins, chácaras e mansões luxuosas, a região abrigava – e ainda abriga – o Palácio do Catete, construído em 1862 pelo barão de Nova Friburgo, e o Palácio Guanabara, que foi residência da herdeira do trono, a princesa Isabel.

Os palacetes exigiam empregados e fornecedores, que acabavam se instalando nas áreas menos valorizadas da região, como as imediações do Cemitério São João Batista, inaugurado em 1852. Em geral, essas pessoas ocupavam as infectas habitações coletivas para populações de baixa renda, anteriores às atuais favelas. Conhecidas como casas de cômodos, cortiços ou avenidas, eram verdadeiras colmeias humanas que concentravam cerca de 10% da população do Rio de Janeiro por volta de 1888. João Romão era dono de uma dessas áreas residenciais. Começou com uma casinha de duas portas em Botafogo que, aos poucos, atingiu 95 moradas da “Estalagem de São Romão”. Mais tarde, construiu a “Avenida São Romão”, formada por prédios de dois pavimentos que abrigavam centenas de casas pequenas. E ainda se tornou proprietário de lavanderias, pedreira, hortas, jardins, da casa de pasto mais famosa do bairro, de bazar variado e armazém com gêneros importados da Europa. 

O cortiço ocupava um enorme quadrilátero, cuja frente murada dava para a rua e era ocupada pela loja comercial e pelos aposentos do dono do estabelecimento. Em direção aos fundos do terreno, encontravam-se as moradias à esquerda e, mais além, uma imensa pedreira com seus profissionais, ferramentas e ruídos. No pátio interno ficavam as bicas de água e as tinas para lavar roupa. Não raro havia desentendimentos entre moradores e provocações entre a gente do cortiço e os vizinhos do sobrado. Naquela área vazia, todos eram obrigados a conviver e a disputar seu lugar, tanto para o trabalho quanto para o prazer ou a simples sobrevivência. Mas acabavam por se unir à força diante de um perigo maior, como um incêndio, a presença da polícia e a entrada de inimigos vindos de outros cortiços rivais.  

Ainda que vizinhos, ricos e pobres não sobreviviam da mesma maneira. Quem morava no cortiço trabalhava todos os dias em atividades pesadas – na pedreira, na tina de roupa, na loja. Quando doentes e acidentados, buscavam cuidados médicos em hospitais como o da Misericórdia ou em alguma irmandade católica. No romance, nota-se isto por meio do personagem Jerônimo. Este imigrante português, de início um ajuizadíssimo trabalhador na pedreira de João Romão, acabou decaindo moralmente e certa vez meteu-se numa luta corpo a corpo com o capoeira Firmo na disputa pela vizinha Rita Baiana. Foi quando recebeu uma navalhada, da qual convalesceu na irmandade de São Francisco. Já Bertoleza só conseguia realizar seus abortos com as ervas da lavadeira Paula, mais conhecida como Bruxa. 

Como suas moradas eram minúsculas, quase tudo acontecia ao ar livre: tarefas profissionais, comilanças de domingo, pequenos prazeres, brigas. Sem transportes coletivos, a opção era morar perto do trabalho, considerado uma “obrigação”, e se locomover a pé pela cidade. Depois de recuperado, Jerônimo e seus comparsas assassinam o capoeirista rival e cruzam várias ruas do bairro para fugir da cena do crime. Passaram pelas ruas Sorocaba, Bambina, São Clemente e a Travessa da Passagem, alcançaram a Praia de Botafogo e rumaram para o Centro da cidade. No caminho, ainda atravessaram os bairros do Catete, da Glória e da Lapa.

Bem diferente era a vida da gente abastada do sobrado. Sempre com ótima saúde, todos gozavam de folgas permanentes. Miranda dirigia um estabelecimento comercial e já havia conseguido seu título de barão. João Romão, depois que se tornou capitalista, deixou a administração do escritório para circular nos meios financeiros, especular na Bolsa e fazer grandes transações comerciais. Com a casa sempre cheia de agregados, hóspedes, afilhados, protegidos e criados, a intensa vida social se passava em ambientes fechados, das pequenas reuniões às grandes recepções. Dispondo de carruagens ou de bonde para chegar à elegante Rua do Ouvidor ou ao Largo da Carioca, as mulheres também se divertiam com visitas e compras, enquanto os homens preferiam sair com as “cocotas” de luxo, às vezes estrangeiras, como a francesa Léonie. 

Os dois grupos contrastavam ainda na organização da família. Nas camadas populares, as uniões, multirraciais ou não, acabavam e recomeçavam sem muitas formalidades. O parceiro simplesmente ia embora. Ou, então, bastava gostar de alguém para não só morar junto como, se fosse o caso, também realizar um casamento oficial – situação do casal formado pelo policial negro Alexandre e a lavadeira branca Augusta.  A simples união informal foi a escolha de Rita Baiana: ao se cansar do capoeirista Firmo, simplesmente o abandonou e passou a viver com Jerônimo, que também abandonou a esposa, Piedade.

Já entre a elite branca, os rituais eram seguidos à risca: enxoval, noivado, casamento. O matrimônio era decidido exclusivamente pelos homens, como acontece com João Romão depois que sobe na vida, pois ele decide seu casamento com a filha de Miranda em negociações com o pai dela, sem se preocupar em consultá-la. A união matrimonial estava fundada em interesses econômicos e patrimoniais, sendo, portanto, indissolúvel. O que importava era manter as aparências, mesmo em caso de adultério. É o caso de Miranda, que fingia ignorar os casos de traição de sua esposa com seus empregados para não se separar dela, porque isto o obrigaria a devolver o dinheiro do dote de casamento. Para evitar o falatório, prefere mudar para um bairro mais distante da sua loja.

O uso do espaço urbano pelos personagens de O cortiço permite reconhecer a obra de Aluísio Azevedo como um romance especificamente carioca. A preocupação com a veracidade, própria do realismo-naturalismo, fornece um painel da cidade e da sociedade em momento de intensa transformação. Pouco a pouco, os contrastes entre casa-grande e senzala foram dando lugar às diferenças entre sobrado e cortiço. Com sua detalhada pesquisa, Azevedo acabou produzindo um verdadeiro documentário sobre a cidade do Rio de Janeiro, um passeio através do trabalho, da moradia e do lazer de seus habitantes. Da elite ao povo.  

LIGIA VASSALLO É PROFESSORA DA UFRJ E AUTORA DE “TRABALHO E LAZER N’O CORTIÇO”. IN REVISTA DA BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE, N° 57. SÃO PAULO: 1999, PP. 107-115

Saiba Mais - Bibliografia

AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Moderna, 1983.  
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos, um Haussmann tropical. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
CANDIDO, Antonio. “De cortiço a cortiço”. In O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993. pp. 123-152.
COUTINHO, Afrânio (org). A literatura no Brasil, volume 3. Realismo, Naturalismo, Parnasianismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editorial Sul-Americana, 1962. 
LOBO, Eulália. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital industrial e financeiro). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, 1987.
ROCHA, Oswaldo Porto e CARVALHO, Lia de Aquino. A era das demolições, habitações populares. 2ª ed. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1990.


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