quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

A campanha civilista de 1910

Campanha animada


Civil ou militar? Brasileiros se mobilizaram para escolher o presidente em 1910


Vera Lúcia Bogéa Borges



Num tempo em que ainda não existiam tribunais eleitorais no Brasil, a escolha dos representantes do povo era tramada nos bastidores. A visão consagrada pela História é de que as eleições na Primeira República (1889-1930) eram mera formalidade: vencia quem as oligarquias estaduais, principalmente as de São Paulo e Minas Gerais, queriam que vencesse. No entanto, a eleição presidencial de março de 1910 rompeu essa harmonia política e mobilizou de verdade os brasileiros ao opor dois candidatos antagônicos: o marechal Hermes da Fonseca e o intelectual Rui Barbosa.

Quem andasse pelas ruas das principais cidades do país em 1909 e no início de 1910 não poderia ignorar que uma eleição presidencial se aproximava. Os meetings, hoje conhecidos como comícios, reuniam adeptos de uma e outra candidatura em teatros e outros locais públicos. Era programa popular entre os que tinham direito ao voto – que não eram muitos – acompanhar discursos dos candidatos ou dos seus cabos eleitorais.

Quem lesse jornais ou mesmo revistas de comportamento também estaria informado sobre o passo a passo pré-eleitoral. O assunto transbordou das colunas políticas e passou a ocupar outros espaços na imprensa, como mostra uma nota da revista carioca Fon-Fon, termômetro dos hábitos e costumes do início do século XX. Cheio de humor, o texto trata da “febre dos meetings”, na época em que o barão do Rio Branco ainda era apontado como possível candidato: 

“Os partidários do marechal Hermes e do barão do Rio Branco não descansam! É meeting sobre meeting, quase todos os dias e à tardinha, na hora da gente ir tranquilamente para casa. Esses meetings, entretanto, têm servido de capa a muito chefe de família bilontra, que aproveita os mesmos para chegar ao lar conjugal muito depois do assado ficar estorricado. (...) A pátria desse freqüentador de meetings usa naturalmente o cabelo oxigenado e anda sans dessous (sem roupa íntima) Crédulas esposas em guarda!”, dizia a revista.

E não era só no Rio de Janeiro que a campanha se desenrolava. Pela primeira vez na curta história republicana do Brasil, um candidato promoveu excursões eleitorais. Hermes da Fonseca também visitou o Rio Grande do Sul, o Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Em dezembro de 1909, Rui Barbosa foi recebido por multidões empolgadas no estado de São Paulo, onde contava com o apoio do governador (na época chamado de presidente de estado) Albuquerque Lins, candidato a vice em sua chapa. No mês seguinte, mobilizou a população na Bahia, sua terra natal, assim como fez em fevereiro de 1910 em Minas Gerais – apesar de o Partido Republicano Mineiro apoiar oficialmente Hermes da Fonseca, que tinha o presidente do estado, Venceslau Brás, em sua chapa como vice. Na capital federal, o Rio de Janeiro, não foi diferente: aplausos e mais aplausos.

O embrião de todo esse embate político surgiu no governo de Afonso Pena, que assumira a Presidência da República em 1906. Fortalecido pelo equilíbrio das finanças do país – resultado dos empréstimos obtidos no exterior pelos estados produtores de café –, ele se sentiu em condições de influenciar sua sucessão como nenhum presidente tinha feito antes. 

Sua primeira opção para sucedê-lo foi outro mineiro, João Pinheiro, que se destacou na administração do estado. Mas a morte de Pinheiro em outubro de 1908 sepultou os planos do presidente. A segunda alternativa foi Davi Campista, o então jovem ministro das Finanças responsável pela bem-sucedida política econômica. Diante dessa possibilidade, os políticos experientes, entre eles Rui Barbosa, manifestaram-se contra esse nome com o argumento de que não enxergavam nele experiência, maturidade e nem autoridade para o cargo.

Com o impasse, surgiu outro presidenciável, apoiado pelos militares. Era o então ministro da Guerra, Hermes da Fonseca, militar de carreira que nunca havia ocupado cargo eletivo e sobrinho do primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca. O poderoso senador gaúcho Pinheiro Machado deu-lhe apoio e justificou: “Não temos arbítrio da escolha, aceitamos o Marechal Hermes, homem sério e bem intencionado e que dirigiremos à nossa vontade”. Nem com a morte de Afonso Pena, em junho de 1909, a candidatura perdeu força. O vice Nilo Peçanha, que assumiu o governo, manteve o apoio ao marechal.

Os críticos do candidato oficial reclamavam de sua pouca experiência política. Argumentavam que a ascensão de um presidente militar seria uma marca negativa para o governo do Brasil dentro e fora do país, o que poderia dificultar a concessão de créditos. Estados Unidos e Europa olhariam o Brasil com a mesma desconfiança com que viam muitas repúblicas hispano-americanas chefiadas por militares na época. Às vésperas da eclosão da Primeira Guerra Mundial, o mundo se tornava mais bélico e a oposição civil versus militar era comum em vários países.    

E foi justamente o fato de ser um civil opondo-se a um militar o grande atrativo de Rui Barbosa e sua candidatura inovadora. Batizada de Campanha Civilista, ela se baseou na reputação construída em mais de 30 anos de vida pública de Rui. Quando foi escolhido candidato, em agosto de 1909, ele ocupava o cargo de senador e presidia a Academia Brasileira de Letras. Apenas dois anos antes, tinha experimentado seu maior momento de glória ao ser aclamado por sua atuação na Conferência de Haia (Holanda), que elaborou um dos mais importantes tratados internacionais sobre crimes de guerra [ver artigo em RHBN 24, de setembro de 2007]. 

Com a definição das duas candidaturas, estava quebrada a aparente harmonia política típica da Primeira República. Essa harmonia era marcada por práticas como a “política dos governadores”, espécie de pacto estabelecido pelo presidente Campos Sales (1898-1902), que garantia ao governo central o apoio dos estados onde os fazendeiros detinham o poder.

Dentro desse jogo, a função das eleições não era promover a alternância de poder e nem revelar a vontade popular, mas sim solucionar os eventuais conflitos políticos dentro dos estados e controlar a multidão para a manutenção da ordem vigente. Entre os meios utilizados para isso estava o “voto de cabresto”: eleitores escolhiam os candidatos determinados pelos “coronéis”, ou grandes proprietários rurais locais.

Fraudes ocorriam na seção eleitoral, como a elaboração de atas falsas de votação, preparadas antes do dia do pleito. Outro mecanismo se chamava “degola”. Por meio dela, o candidato eleito não era diplomado pelo Poder Legislativo e, portanto, ficava impedido de tomar posse. Qualquer suspeita de fraude ou rasura em ata, por exemplo, eram pretextos para o uso desse mecanismo.

Com todas essas maneiras de burlar a votação sendo amplamente utilizadas, era mesmo difícil que uma eleição tivesse um resultado que não interessasse ao grupo com maior apoio entre as elites. Embora as campanhas tenham se diferenciado das anteriores, dando um sopro de juventude à República Velha, o resultado mais uma vez confirmou a vitória do candidato governista. Em julho de 1910, o Congresso Nacional reconheceu a vitória da chapa do marechal Hermes da Fonseca e de Venceslau Brás.

Hermes da Fonseca teve contados a seu favor mais de 403 mil votos, enquanto Rui Barbosa teve cerca de 150 mil, isto é, 37% dos votos. Mais importante do que o resultado foi o fato de existir participação popular com luta política através dos jornais, uma vez que houve rompimento do consenso oligárquico. Apesar do resultado final que confirmou a vitória do candidato governista, a eleição de 1910 mostrou como a Primeira República era complexa e intensa. Esta eleição não foi apenas um rito de passagem para constar, para oferecer uma capa de legitimidade à República. Nela houve uma verdadeira disputa desde o lançamento da candidatura Hermes (maio de 1909) até o dia do pleito (1° de março de 1910), constituindo-se, assim, no mais longo processo eleitoral até então. 

O consenso oligárquico se rompeu, os grandes periódicos se dividiram entre um lado e outro e a população urbana participou ativamente das diversas atividades de campanha (recepções de chegada e partida das excursões eleitorais, meetings, etc). As ideias e as propostas apresentadas na sucessão presidencial apontam mais na direção de uma verdadeira disputa do que de uma simples armação para ficar tudo na mesma. Desse modo, a eleição de 1910 não se resume à campanha civilista. Este é apenas um dos lados da disputa.

Vera Lúcia Bogéa Borges é professora de História do Colégio Pedro II e autora de Morte na República: os últimos anos de Pinheiro Machado e a política oligárquica (1909-1915). ( Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Editora Livre Expressão, 2004). 

Saiba Mais - Bibliografia


BARBOSA, Rui. Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1967. Tomo I, volume XXXVII. 
LUSTOSA, Isabel. História de presidentes: a República no Catete (1897-1960). Rio de Janeiro: Agir, 2008. 
VISCARDI, Claudia Maria Ribeiro. Teatro das oligarquias: uma revisão da “política do café com leite”. Belo Horizonte: C/Arte, 2001.

Saiba Mais - Internet

Cronologia da campanha civilista:
Casa de Rui Barbosa/Rui Barbosa/Cronologia/Civilismo
http://www.casaruibarbosa.gov.br

Seminário promovido pela Casa de Rui Barbosa sobre a Campanha Civilista (3-4/11/2009): Revista de História/Observatório/Primeiros palanques 
www.rhbn.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=2718


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