quarta-feira, 4 de maio de 2016

Educação étnico-racial: reflexões iniciais

Márcio Ramos

A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem um história tornar-se a única história  “

Chimamanda Adichie

A escola ainda é um dos locais fundamentais na formação do sujeito. Geralmente é no momento de chegada à escola que o mundo da criança se amplia e ela percebe o quão diferente as pessoas são, que ela que ela terá que lidar com essa realidade e estabelecer laços para se acomodar minimamente nesse novo mundo. A escola contribuirá para a formação dessa criança através de uma outra narrativa, diferente da que ela tinha acesso em seu grupo familiar e social.

É importante que essa narrativa que a escola constrói e transmite aos alunos que aqui chegam, dê conta da multiplicidade da experiência humana. Não se pode mais conceber uma educação que se baseie em uma interpretação única de mundo, ou que apenas reforce a visão das famílias sobre a realidade. A escola precisa ampliar o olhar de cada educando, dando-lhes asas, no dizer de Rubem Alves.

Neste contexto, uma educação étnico-racial é necessária. Principalmente em nosso país, formado por mais de 50 % de negros, marcado por mais de 300 anos de escravidão e que ainda não deu conta de resolver o grave problema do racismo e a inclusão social dos negros. Nos negamos a enfrentar a questão e adotamos o mito da democracia racial para manter uma aparência de paz social. Mas a necessidade da criação de uma lei que determina o ensino da história e cultura afro-brasileia nos mostra o quanto o problema ainda permanece.

Para se efetivar a implementação da Lei 10639 em sala de aula, algumas reflexões são necessárias. Penso que existem duas ações necessárias e complementares neste processo. A primeira linha de ação diz respeito ao nosso conhecimento sobre a África e sua relação com o Brasil e a discussão da temática com nossos alunos. O outro aspecto diz respeito à forma como lidamos com nossos alunos negros em sala de aula e como incentivarmos o respeito à diversidade e o combate ao racismo.

Sejamos realistas, o nosso conhecimento sobre os povos não europeus é muito precário. Os povos do “Oriente” e africanos aparecem em nossa cosmovisão como exóticos,estranhos, os “outros”. A maior parte das informações que temos tem origem nos programas de TV e de filmes, que caricaturizam a história e a cultura desses povos. É necessário um grande esforço para desnaturalizarmos essa visão, para conseguirmos ir além dessa narrativa hegemônica a que estamos submetidos.

O primeiro erro é pensar a África como um país. Sim, muitas vezes nos referimos à África como um país, esquecendo que o continente africano é formado por mais de 50 países, que são distintos entre si, tanto do ponto de vista geográfico, como político, econômico e cultural. Essas diferenças se dão pelo tamanho do continente e por sua história. Precisamos discutir com nossos alunos sobre essa diversidade e não tratar toda a África como algo uniforme. É necessário combatermos a visão midiática de que a África é uma região só de guerras civis, epidemias e pobreza. Apesar das dificuldades enfrentadas pela maior parte do continente, essa não é a realidade de todos os países africanos. Países como Seicheles e Maurícia possuem IDH maior do que o Brasil. Grande parte dos países conquistaram sua independência a pouco mais de 50 anos, estão se constituindo enquanto Nação e logicamente enfrentam dificuldades nesse processo.

Precisamos mostrar a nossos alunos que todos nós temos uma origem africana. Os primeiros homens viveram na África e lá se desenvolveram grandes civilizações, como o Egito Antigo. Muitas vezes falamos do Egito como se ele não fosse africano, e o cinema e novelas reforçam essa visão ao retratar os egípcios como brancos. Perceber as contribuições técnicas e culturais é importante para resignificarmos a imagem e o papel do negro na história. Os professores podem mostrar a técnica altamente desenvolvida pelos africanos na construção das pirâmides, seus conhecimentos medicinais e metalúrgicos.

A obrigatoriedade legal de se estudar história e cultura africana, assim como a indígena, pode nos proporcionar a oportunidade de tratar esses povos em sua humanidade. Ou seja, às vezes sempre partimos da discussão sobre a escravidão e podemos reforçar a imagem dos negros como escravo. Quando discutimos sobre escravidão, negro parece ser sinônimo de escravo. Por isso é preciso um cuidado muito grande na seleção e análise de imagens e textos para o trabalho escolar. Temos que problematizar a experiência histórica desses seres humanos, seus desejos, suas lutas, sua resistência.

Discutir e tratar as religiões de origem africana como parte da herança cultural da humanidade é essencial. Mostrar como as religiões tradicionais africanas valorizam a ancestralidade como força definidora da identidade de cada um pode levar nossos alunos a valorizar a história e origem de seu grupo familiar e social, combatendo esse imediatismo contemporâneo. Às vezes temos dificuldades em discutir as religiões de matriz africana devido ao forte preconceito presente em nossa sociedade. Mas porque não dar o mesmo valor a essas manifestações culturais assim como dado a mitologia grega?

Um detalhe importante sobre as religiões existentes na África é que, ao lado das religiões tradicionais, temos a presença do islamismo, principalmente no norte do continente, assim como das religiões cristãs. Homogeneizar a experiencia religiosa africana é empobrecer nosso conhecimento sobre ela.

Da mesma forma que o conhecimento sobre a África e suas contribuições para a formação da sociedade brasileira são importantes para permitir a formação de identidade dos alunos, a forma como lidamos com as questões suscitadas nos conflitos do dia a dia na escola, também é definidora de uma boa educação étnico-racial. Não podemos jogar para debaixo do tapete situações de discriminação e racismo.

Não podemos apenas realizar comemorações esporádicas e especificas como o Dia da Consciência Negra e não enfrentar nossa dificuldade em lidar com a questão racial. Não basta o tema estar no currículo oficial da escola, se no currículo oculto negamos a esse sujeito sua humanidade. Continuar o debate e construir ações para uma educação que respeite a diversidade e as várias narrativas existenciais  é o desafio que temos pela frente e toda a comunidade escolar precisa se apropriar desta importante discussão.

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