terça-feira, 7 de julho de 2015

Escravo é aquele que não sou eu

Escravidão era prática usual na África antes de os europeus chegarem e, quando virou negócio global, continuou enriquecendo africanos

Alexandre Vieira Ribeiro
Com quase quatro séculos de duração e mais de 12 milhões de seres humanos embarcados na costa africana, o tráfico transatlântico de escravos foi o maior fluxo migratório forçado da História, pelo menos até o século XIX. E os beneficiários desse comércio, rapidamente transformado em um dos principais motores da economia mundial, não estavam exclusivamente na Europa e na América. Os homens e as mulheres embarcados nos navios negreiros eram capturados e negociados por africanos. O tráfico foi um negócio afro-europeu. 
Gravura de atlas do século XVII. Antes do século XV, já havia um comércio de escravos que envolvia a África, o oriente Médio e o extremo oriente. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Gravura de atlas do século XVII. Antes do século XV, já havia um comércio de escravos que envolvia a África, o oriente Médio e o extremo oriente. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
A escravidão e o comércio de pessoas na África existiam antes da chegada dos europeus. Comerciantes atravessavam o deserto do Saara e o mar Vermelho com carregamentos de cativos que eram ofertados em mercados do norte da África e do Oriente Médio. Há notícias de envios de escravos para o Extremo Oriente, onde eram vistos como bens exóticos. A inserção dos europeus nesses mercados fez a atividade ganhar vulto. Começou ainda no século XV, como uma atividade paralela da expansão portuguesa pela costa ocidental da África. No contato com os povos subsaarianos, pequenas levas de escravos eram adquiridas e enviadas para Lisboa, Algarve e outras regiões do Mediterrâneo. No século seguinte, a opção pelo uso de mão de obra escrava nas colônias da América causou a explosão da demanda por africanos.

Em diversos pontos da costa africana, os europeus encontravam indivíduos dispostos a vender escravos. A diversidade de povos do continente impedia que se forjasse entre eles uma identidade comum. Não se reconheciam como iguais. Constituíam laços de solidariedade por meio de linhagens, clãs e Estados, e escravizavam os diferentes. O escravo era a única forma de propriedade privada na África, pois a terra era considerada um bem coletivo. A escassez de mão de obra possibilitou a disseminação de escravos por todo o continente, principalmente na realização de trabalhos agrícolas. Exerciam também funções de mineradores, artesãos, serviços domésticos e até mesmo militares.
Ao se tornar escravo, o indivíduo era deslocado de sua terra e perdia os vínculos com seu grupo de origem. Vencido numa guerra, tinha sua pena comutada: em vez da morte física, a “morte social”. Seu único laço era o senhor e somente a ele devia fidelidade, pois passara a viver como um estranho numa nova sociedade. Por isso muito líderes de Estados complexos tinham seus exércitos compostos por escravos e chegavam a incorporá-los em destacados cargos administrativos, tendo em vista as ameaças que sofriam de homens livres, mais devotos aos chefes de seus clãs e linhagens. Estabelecia-se uma relação orgânica entre senhor e escravo, na qual havia dependência mútua.
Os europeus souberam tirar proveito dessa situação e passaram a ofertar produtos em troca de escravos. Os bens importados eram supérfluos, como rum, cachaça, vinho, fumo, tecidos, armas de fogo, pólvora e utensílios de metal, muitas vezes de qualidade inferior àqueles produzidos na própria África. Mas davam prestígio. As lideranças locais adquiriam esses artigos para cooptar adversários políticos, angariar apoio e consolidar seu poder.
Europeus recebidos pela rainha Nzinga nos desenhos de Giovanni Cavazzi, 1678. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Europeus recebidos pela rainha Nzinga nos desenhos de Giovanni Cavazzi, 1678. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Sociedades descentralizadas também mercadejavam com os europeus. Muitas buscavam obter, em troca de escravos, objetos de metal que os ajudassem na agricultura, na caça e na defesa contra inimigos mais bem estruturados. Ou armas e munições que lhes garantissem maior poder de fogo. As guerras foram o mecanismo principal para a escravização de indivíduos. Como exigiam um alto nível de organização e investimento, só podiam ser realizadas pelos Estados mais fortes. Já as sociedades descentralizadas atuavam localmente, praticando raptos, cobrando dívidas e punindo crimes com a escravidão. Não raro, pessoas se entregavam à escravidão, juntamente com sua família, por falta de alimentos – fosse pela seca ou por pragas de insetos.

A presença de europeus na costa redirecionou muitos desses cativos ao tráfico transatlântico. Em geral as transações ocorriam no próprio navio negreiro ancorado ao largo da costa. Pequenos grupos de cativos eram levados por mercadores africanos ao capitão, que realizava ainda a bordo o pagamento. Outros tomavam a crédito produtos com a promessa de retornarem com carregamento de escravos. Como garantia, deixavam parentes sob a custódia do capitão. Algumas vezes as âncoras foram içadas e os navios partiram levando pessoas da estima dos comerciantes africanos.
Nem todos os escravos eram remetidos ao comércio internacional. Geralmente, as sociedades africanas retinham as mulheres e as crianças. A mulher, por sua capacidade reprodutiva, as crianças, por serem mais propensas a absorver uma nova cultura e códigos morais. Atravessaram o Atlântico principalmente homens adultos, atendendo à demanda dos mercados do Novo Mundo.
A associação de chefes locais com o tráfico internacional alterou o equilíbrio de forças em todo o continente. Novas organizações políticas sugiram, como o reino de Cassange, fruto da aliança de povos do interior da África Centro-Ocidental com os portugueses. Na baía de Biafra, os ibos e ibibios, aliados a ingleses e franceses, enriqueceram mercadejando escravos e viraram a nova elite econômica local.
Os marinheiros que quisessem ter acesso a escravos tinham que pedir permissão para uma autoridade local para permanecerem atracados e negociar. Pleiteavam também a construção de fortes para se resguardarem da chegada de rivais europeus, e de armazéns onde estocavam mantimentos e artigos usados nas trocas. A construção de fortes e feitorias nas praias africanas só era autorizada após uma série de tratativas com os líderes. Era preciso oferecer uma variedade de presentes para muitas pessoas a fim de garantir o bom andamento dos negócios. Ainda assim, nem sempre se agradavam os soberanos. Em 1759, insatisfeito com o andamento do comércio, o rei daomeano Tegbessu expulsou o diretor do forte português em Uidá, impedindo que navios baianos negociassem na região.
Mulheres e crianças no Congo, 1885. Em geral, os homens adultos eram os escolhidos para serem escravos no Novo Mundo. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Mulheres e crianças no Congo, 1885. Em geral, os homens adultos eram os escolhidos para serem escravos no Novo Mundo. (Imagem: Fundação Biblioteca Nacional)
Os comboios com carregamento de escravos vinham de regiões interioranas. Rotas de milhares de quilômetros de distância eram percorridas até que se alcançassem os portos de embarque. Por esse caminho, muitos lucravam com a venda de víveres para as expedições. Autoridades locais recebiam taxas pelo direito de passagem em suas terras. A dieta do escravo, desde o momento da sua captura, era insuficiente para nutri-lo de forma adequada. O índice de mortalidade era elevado, criando um ambiente propício para a disseminação de doenças que rapidamente se alastravam e atingiam regiões inteiras. Um surto de varíola fechou o porto de Luanda na primeira década do século XIX, estancando o fluxo negreiro e causando muitas mortes entre livres e cativos.

Apinhados dentro de embarcações em condições degradantes, homens e mulheres, adultos e crianças, padeciam durante a travessia atlântica. Havia racionamento de comida e a água de qualidade duvidosa era limitada a pequenas doses. O ar dos porões onde eram acomodados era nauseabundo, uma mistura de suor com dejetos humanos. Alguns comandantes, conscientes do valor de seu carregamento, permitiam que os escravos circulassem por alguns minutos no convés para respirar. Não é de surpreender que no século XVIII a mortalidade nesses “tumbeiros” girasse em torno de 14%.
O sistema de navegação à vela precisava seguir a orientação dos ventos e das correntes marítimas do oceano. No Atlântico norte, eles movimentam-se no sentido horário, o que forçava os navios que partiam da Europa para o Caribe a descer primeiro em direção à Linha do Equador para depois navegar para o norte. No Atlântico sul, os ventos e as correntes marítimas movem-se no sentido anti-horário, levando navios que partiam do Brasil para a África a seguir primeiro a corrente rumo ao sul para cruzar o oceano, e então tomar a corrente de Benguela para o norte ao longo da costa africana.
Foram esses ventos e correntes marítimas que influenciaram as conexões entre regiões americanas e africanas. O comércio de escravos brasileiro importou cativos de cinco amplas áreas daquele continente: Senegâmbia, Costa da Mina, baía de Biafra, África Centro-Ocidental e Sudeste africano. A Senegâmbia compreendia a costa entre os rios Senegal e Gâmbia e foi uma das primeiras regiões a fornecer escravos ao tráfico transatlântico. Os navios luso-brasileiros embarcavam escravos nos portos de Cachéu e Bissau e em mercados próximos, estabelecidos na região de Serra Leoa, nas ilhas de Cabo Verde e Bijagós. A Costa da Mina era o maior território costeiro envolvido no comércio de escravos. Compreendia a área entre as atuais Libéria e Nigéria. Nessa região, os capitães luso-brasileiros costumavam negociar na baía do Benin. Na baía de Biafra, entre os atuais Nigéria e Camarões, os traficantes ingleses tiveram grande atuação, mas dali também saíam escravos em quantidade para os comerciantes brasileiros. A região Centro-Ocidental (do atual Gabão até o sul de Angola) estava entre as primeiras grandes fornecedoras de cativos para o Brasil. E o Sudeste africano, principalmente a atual costa de Moçambique, era a mais longa rota da atividade negreira, apenas uma alternativa às demais fontes de escravos.
Comerciantes baianos tinham representantes em portos da Costa da Mina, enquanto os cariocas privilegiavam a África Centro-Ocidental. As redes comerciais inter-regionais garantiam o bom andamento dos negócios. Uma das chaves para o sucesso era o acesso à informação: sócios em ambos os lados do Atlântico trocavam mensagens comunicando as necessidades e o ambiente de negócios nos portos. A confiança no parceiro de negócios era fundamental, uma vez que milhares de milhas náuticas separavam as duas esferas desse mercado.
O trato negreiro era uma atividade muito arriscada. Para além da mortalidade dos escravos em alto mar, havia o risco de rebeliões, pirataria e naufrágios, que poderiam causar danos irreparáveis aos negócios de um comerciante em início de carreira. Por isso, era também uma atividade concentrada nas mãos de poucos. Com os 10 contos de réis empregados no custeio da viagem do bergantim Ceres para a Costa da Mina, em junho de 1803, podia-se adquirir, na Bahia, o Engenho do Macaco, na Vila de São Francisco da Barra, com todas as suas casas e benfeitorias, e ainda sobrariam quase 3 contos de réis. Em suma, com a quantia necessária para uma expedição negreira, os traficantes poderiam converter-se em senhores de terras e de homens. Se assim não o faziam é porque o retorno do comércio negreiro era bem superior aos investimentos produtivos, como fazendas e engenhos.
O tráfico de escravos causou sofrimento incomensurável a milhões de seres humanos, levados à força de suas terras, apartados de seus parentes e amigos. E mudou o mundo, principalmente o Novo Mundo. Influenciou aspectos políticos, econômicos e sociais tanto nas áreas agrícolas como nas urbanas. E sua herança cultural definiu o que seriam os povos da América, moldando sociedades miscigenadas.
Alexandre Vieira Ribeiro é professor da Universidade Federal Fluminense e autor da tese “A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo mercantil (c.1750-c.1800), (UFRJ, 2009).
Saiba Mais:
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul séculos XVI e XVII. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003

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