quarta-feira, 8 de julho de 2015

A África na sala de aula

Obrigatoriedade de ensinar história e cultura africanas é o novo desafio dos professores brasileiros

Mônica Lima
No dia 9 de janeiro de 2003, foi aprovada a Lei no 10.639, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras nos níveis fundamental e médio. Os currículos deverão incluir "o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política (…)"
Por que uma lei para fazer valer conteúdo tão fundamental na história, especialmente na história nacional? O fato é que nossos antigos historiadores trataram indevidamente, ou ignoraram, a participação africana em nossa formação, influenciados por preconceitos originários da sociedade escravista, entre os quais os ideais de branqueamento da população brasileira nutridos, desde meados do século XIX, por boa parte das elites nacionais.
Essa ideologia foi tão forte que mesmo a intelectualidade mais progressista custou a reconhecer a questão africana na nossa história. Acreditava-se que a luta dos africanos deveria ser estudada dentro da "luta dos dominados", ou seja, segundo a sua condição de trabalhadores explorados.Nesta ótica, a África continuava fora da história: na história do Brasil, era apenas o lugar onde se buscavam os escravos; na história geral, o cenário da expansão colonial. Quanto aos afrodescendentes figuravam apenas como escravos que davam duro nas lavouras, na mineração ou nos serviços domésticos, vítimas da exploração de fundo capitalista, ou que fugiam para os quilombos. No século XIX, voltam à cena ao serem libertados do jugo escravista, para se tornarem, no século seguinte, parte da massa trabalhadora. Em alguns livros, ainda aparecem como agentes da cultura popular, o samba, a capoeira ou outra manifestação cultural mais conhecida; em outros, chegam a ser representados por personagens como Zumbi e João Cândido, mas, com algumas exceções, em breves passagens. Imagens parciais – as de oprimidos, explorados e, mesmo quando rebeldes, derrotados – que inibem a construção da auto-estima. Quem gosta de se identificar com elas?
Os estudos recentes mudam esta visão, mas é preciso saber levá-la às salas de aula. Antes, ainda, é preciso que a universidade deixe, ela também, de ignorar o tema. Que história será esta, se a maioria dos professores em atividade não a conhece? Quais serão nossos objetivos, conteúdos, abordagens? E se resgatar esta história é matéria para a construção da identidade brasileira, estamos diante de um desafio maior: Quem somos? O que desejamos ser?
Não há como recuperar a africanidade sem conhecer a própria história da África. Ao mesmo tempo, é necessário despirmo-nos dos preconceitos etnocêntricos (olhar um povo ou etnia com valores de outro) – a África como lugar atrasado, inculto, selvagem – e deixar de ou supervalorizar o papel de vítima – do tráfico, do capitalismo, do neocolonialismo -, atitude que alimenta sentimentos de impotência e incapacidade.
O fato objetivo de povos diversos terem sido espoliados por agentes externos, compactuados com agentes internos, não pode ser negado.Mas não dimensioná-lo em seu tempo e em suas implicações dentro da própria África acaba por fortalecer a idéia de que os africanos foram somente vítimas de um destino cruel, e não sujeitos de processos históricos complexos em que desempenharam outros papéis. Superar essa construção simplificada requer muito estudo, além de ampla divulgação do conhecimento. Quanto mais gente souber, melhor! Como diz a canção de Chico César: "Mais forte que o açoite dos feitores/ São os tambores".
De outra parte, cabe lembrar que é quase impossível falar da África no singular, de uma só África no Brasil: são muitas as origens, as trajetórias, as culturas. A própria noção de "africano" não existia entre os escravos até o século XIX. A identidade de cada povo, que o mundo escravocrata dissolvia, ainda assim prevalecia sobre a idéia da identidade africana, da África como terra de todos. Esta só se desenvolveria na própria África nos séculos XIX e XX, a partir das lutas de independência, que, por sua vez, culminariam, mais adiante, em ideários como os da negritude e do pan-africanismo.
Não podemos perder de vista essas histórias compartilhadas em longos períodos. Nas grandes áreas geoculturais e lingüísticas, há africanidades profundas, da mesma forma que, no Brasil, povos diferentes criaram vocabulários e formas próprias de comunicação. Somente novas pesquisas podem revelar essas múltiplas Áfricas no Brasil.Mas há também que despertar curiosidade e admiração, trazer essas Áfricas para os espaços culturais e educativos, como já se tem feito, aliás. Ler, mas também escutar, ver, participar e perceber o quanto as trazemos dentro de nós. Despertar o orgulho da africanidade, de nossos heróis, não apenas os famosos – Zumbi, os Rebouças, João Cândido -, mas também os pouco conhecidos – Manuel Congo, Luíza Mahin – e os desconhecidos – os Antônios Minas, as Marias Cabindas, as Joanas Crioulas. Também não podemos mais repassar em nossas aulas informações folclorizadas ou idealizadas. Nem repetir modelos – a África apenas como a terra da macumba, da capoeira, do tambor.
O que está em jogo, mais do que a competência, é o nosso compromisso. Além de nos atualizarmos, vamos também cobrar das autoridades: foi estabelecida uma obrigatoriedade, mas isso não basta. Estudantes universitários, militem pela inclusão efetiva desses assuntos nos currículos de suas faculdades: professores, solicitem da rede de ensino a realização de cursos – isto já é realidade em alguns municípios. Busquem e criem novos espaços de estudos e pesquisas.
Muito já pode ser feito na sala de aula, independentemente de decisões institucionais. No ensino fundamental, trabalhar com lendas, contos, cantigas, brincadeiras. Nas aulas de Integração Social, falar da presença africana na música, nas festas, no vocabulário, na alimentação.No segundo segmento do primeiro grau, trabalhar a "Pré-História" – sem deixar de questionar o termo, pois não é a escrita que cria a história – como o tempo do processo de hominização, que se deu primeiro na África. Não deixar passar o esplendor do Antigo Egito, sem lembrar que este fica na África, algo óbvio, mas que acaba esquecido. Falar também dos grandes reinos africanos que, no período correspondente à Idade Média européia, ergueram cidades, com universidades, bibliotecas, contatos com o Oriente e Europa – e que tanto encantaram viajantes como despertaram a cobiça de outros povos com suas minas de ouro: "Falar em ouro na Europa medieval era falar da África", escreveu o historiador francês Pierre Vilar. E ao tratar do tráfico de escravos, mercadoria que fazia a riqueza de comerciantes, não esquecer da outra riqueza, a espiritual, que não se mede em ouro, trazida "lá de longe".
No ensino médio, situar o surgimento do racismo como projeto científico e político, utilizando estratégias que permitam aos alunos desconstruir e reconstruir idéias mediante pesquisas orientadas, júris simulados, dramatizações. Debater as formas do colonialismo europeu na África, as transformações que operou – discutir fronteiras, territórios e conflitos, temas da história contemporânea. E, articulando com a nossa história, assinalar a fratura exposta da desigualdade racial brasileira.Nunca é demais repetir: nossa pobreza tem cor, nossa exclusão tem cor.
Outro ponto fundamental é destacar aspectos da afro-americanidade, introduzindo elementos que aproximam e diferenciam a história dos afrodescendentes em todo o continente. Temos uma história comum não apenas entre África e Brasil, como entre os africanos e seus descendentes no Novo Mundo. Mas também nos unem as reflexões necessárias sobre os projetos de identidades nacionais no continente. Os currículos devem aprofundar a percepção destes processos na história da América. Trata-se, enfim, de resgatar a África e africanizar a história do Brasil: além do sentimento de um passado comum, consolidar um conhecimento libertador. Pois, como ensinam os versos de Antônio Jacinto, poeta e militante angolano,
"O ritmo do tantã não tenho
no sangue
nem na pele
tenho o ritmo do tantã
sobretudo
mais no que pensa"
("O Ritmo do Tantã")
Mônica Lima é professora de História do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense.

Fonte: LIMA, Mônica. A África na sala de aula. Revista Nossa História, ano 1, nº4, fevereiro 2004. P.84-86.

2 comentários:

  1. Boa noite, professor. Sou seu colega de profissão e gostaria de saber se este texto está na íntegra ou é uma análise sua do texto original.

    Obrigado.

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    1. Olá Victor. O texto está em sua totalidade, apenas copiei da revista. Boa leitura.

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