terça-feira, 7 de julho de 2015

Em nome do Pai, do filho e da Real Fazenda

Europeus buscavam na religião as justificativas para o comércio de escravos, mas a grande preocupação dos colonizadores era com o fluxo de trabalhadores
Joice Santos
Em 21 de outubro de 1795, D. Fernando José de Portugal e Castro, governador da Bahia, dava o seu parecer sobre a chegada de uma embaixada daomeana e, mesmo com as considerações negativas sobre daquele potentado africano, destacava a sua importância em termos econômicos: “À vista da carta que me apresentaram do rei Dagomé [...] e da consideração de que convém a boa harmonia com este potentado sumamente ambicioso e soberbo, em razão do comércio de resgate dos escravos tão interessante à Real Fazenda e tão necessário para a subsistência da lavoura destas colônias”.
Os interesses da Real Fazenda e a subsistência da lavoura foram justificativas formadas ao longo do período em que o reino português estabeleceu sua administração no além-mar. Os primeiros argumentos para a submissão de outros povos, entretanto, não tinham relação direta com economia – eles vieram sob a forma de aprovação da Igreja Católica. Através das bulas Dum Diversas (1452), Romanus Pontifex (1455) e Inter Coetera (1456), Roma legitimava a escravização dos infiéis e a conquista e a vassalagem de todas as populações ao sul do Cabo Bojador, no Marrocos, com o objetivo de conversão ao cristianismo. Em um plano mais geral, justificava a expansão marítima portuguesa.
A expulsão dos muçulmanos e judeus de Portugal em 1496 estimulou o “resgate” dos povos não cristãos. O próprio termo dava conta da tentativa de trazer à luz divina aqueles que estavam na completa ignorância, não os muçulmanos, já que estes já rejeitavam o cristianismo, mas aqueles que desconheciam a palavra divina. Os que seriam resgatados, segundo a lógica do cristianismo europeu, teriam a possibilidade de viver em melhores condições do que na África, em meio à barbárie.
Em relato de meados do XV, o cronista português Gomes Eanes de Zurara (1410-1474), ao narrar as aventuras do Infante D. Henrique, afirmava que os negros africanos tinham sinais de bestialidade pela forma como se alimentavam, se vestiam e se relacionavam com os seus semelhantes. Para defender a legitimidade do resgate, Zurara indicava que os africanos que haviam migrado para Portugal aprenderam o português, além de terem adquirido novos hábitos em decorrência do seu contato com os europeus.
Os cristãos, naturalmente, faziam esta justificativa remontar ao texto bíblico. A maldição lançada por Noé ao seu filho Cam havia recaído sobre os negros, que seriam seus descendentes, destinando-os à servidão. O cristianismo, portanto, teria um papel civilizador ao resgatá-los da barbárie. Esse mesmo princípio de civilidade dada pela religião justificou a escravidão indígena na América espanhola, através de bula promulgada pelo papa Alexandre VI ainda no início do século XVI. A população indígena foi forçada a trabalhar em um sistema chamado de encomienda, no qual o rei concedia benesses aos primeiros colonizadores, incluindo a força de trabalho dos índios. No entanto, o ritmo de trabalho adotado, aliado às doenças trazidas pelos europeus, fez com que esta população entrasse em declínio. Em função dos maus-tratos e das denúncias da própria Igreja, a Coroa espanhola acabou por interferir na relação entre os colonizadores e os indígenas, em 1542, proibindo a escravidão indígena, determinando o fim da encomienda e estabelecendo o repartimiento – na prática, mantendo o trabalho forçado dos indígenas, agora de forma sazonal.
O fim da exploração indígena na América espanhola foi defendido pelo frade dominicano Bartolomeu de Las Casas (1484-1566), que não reconhecia, em oposição à posição defendida por Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1573), a barbárie dos indígenas: “eles não são ignorantes, desumanos ou bestiais. Ao contrário, muito antes de ouvirem a palavra ‘espanhol’ tinham Estados adequadamente organizados, sabiamente governados por excelentes leis, religião e costumes”.
A defesa e o fim da escravidão indígena já nos primeiros decênios da colonização espanhola não foram seguidos no caso lusitano. Os chamados “negros da terra”, termo adotado por jesuítas e colonos portugueses para designar os índios, foram utilizados em larga escala no início da colonização. Segundo o historiador norte-americano Stuart Schwartz, a palavra “negro” em Portugal estava diretamente relacionada a uma posição servil e deixou de designar os indígenas apenas na medida em que aumentou o número de escravos africanos na América portuguesa.
Essa transição entre a mão de obra escrava indígena e a africana não se deu por conta da proibição de aprisionamento dos primeiros, o que de fato ocorreu em meados do XVIII. Também não se deu por conta de alguma pressão ideológica contra o cativeiro dos nativos – a exemplo de religiosos como o padre Antônio Vieira (1608-1697). Em terras portuguesas, ao longo de todo o século XVII, ainda era válida a prática das “guerras justas” com o objetivo de salvação cristã – com a consequente escravização dos derrotados. Também valia a máxima cunhada por Pero de Magalhães de Gândavo, autor de História da Província de Santa Cruz (1576): tratava-se, para os portugueses, de povos “sem fé, nem lei, nem rei”. A substituição da origem dos braços escravizados se deu, em parte, pelo reconhecimento das habilidades dos africanos na iniciante indústria açucareira, além da maior suscetibilidade dos índios às doenças europeias.
A presença africana na América portuguesa, entretanto, se estabeleceu de forma maciça na medida em que esta se tornou imprescindível para a administração colonial e por conta das atividades que geravam lucro para a Real Fazenda – escravos africanos eram mercadorias tributadas nas alfândegas de Sua Majestade. O resgate justificado pela cristianização e pela expansão da civilização continuou ocorrendo ao longo dos séculos, menos como uma crença e mais como um recurso para estabelecimento da colonização e da permanência das lavouras. Ao menos é o que indica a preocupação do governador da Bahia no final do XVIII.
Joice Santos é pesquisadora da RHBN e autora da dissertação “As embaixadas dos reinos da costa africana como mediadores culturais: missões diplomáticas em Salvador, Rio de Janeiro e Lisboa (1750-1823)”, (Puc-Rio, 2012).
Saiba mais
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
CANDIDO, Mariana. “O limite tênue entre a liberdade e escravidão em Benguela durante a era do comércio transatlântico”.Afro-Asia, Salvador, nº 47, 2013.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 2002.

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