terça-feira, 7 de julho de 2015

Outras bandeiras do lucro infame

Auge do comércio de escravos foi liderado pela Grã-Bretanha, e trouxe Europa e Estados Unidos para a modernidade

Richard Price (Tradução: Rodrigo Elias)
Escravos capturados para serem vendidos no Suriname, em 1796. (Imagem: Reprodução)Escravos capturados para serem vendidos no Suriname, em 1796. (Imagem: Reprodução)
Ao longo de três séculos e meio de tráfico transatlântico de escravos, cerca de 12,5 milhões de seres humanos foram trazidos à força para as Américas. Entre 1492 e 1820, africanos escravizados constituíram mais de 80% das pessoas que desembarcaram nas Américas. Que nações participaram neste crime sem precedentes contra a humanidade? Que nações lucraram com o comércio?
Sabe-se que o Brasil recebeu cerca de 45% de todos os africanos trazidos como escravos para as Américas – mais do que qualquer outra nação – e que navios portugueses (e brasileiros) conduziram 47% de todos os africanos escravizados que cruzaram o Atlântico (37% deles foram transportados pelo Atlântico em embarcações que saíram do Brasil – 5% de Pernambuco, 15% da Bahia e 17% do Sudeste brasileiro, particularmente do Rio de Janeiro). E quanto às outras nações?
Deixando de lado Portugal/Brasil, as maiores nações comerciantes de escravos foram a Grã-Bretanha (cujos navios carregaram 26% dos cativos), França (11%), Espanha (8%), Holanda (4%), Estados Unidos (2%) e os Estados bálticos (menos de 1%). Ao longo de todo esse comércio de escravos, “embarcações do Brasil, Inglaterra, França, Portugal e Holanda carregaram 90% de todos os cativos transatlânticos removidos da África”, como escreveram em seu atlas David Eltis e David Richardson, cujas estatísticas tomo como base para este artigo.
Nos primeiros anos, as maiores nações comerciantes de escravos eram Portugal e Espanha. O comércio espanhol de escravos para as Américas começou em 1501, com embarcações partindo principalmente de Sevilha e, em menor número, de Cádiz, carregando ferramentas, mosquetes, pólvora, panelas, roupas, miçangas, chapéus e bebidas para trocar com africanos por pessoas escravizadas que eram muitas vezes cativos de guerras internas. Seus portos africanos preferenciais estavam na África Central Ocidental. Navios portugueses deixavam seus portos de origem em Lisboa e, em número menor, no Porto, também rumo à África Central Ocidental. Navios portugueses armados nesse período no Recife, em Salvador e no Rio de Janeiro tomavam o mesmo destino. Os espanhóis carregavam suas cargas humanas da África principalmente para o Caribe, enquanto os portugueses as levavam principalmente para o Brasil e, em menor escala, para a América espanhola. Entre 1501 e 1641, embarcações portuguesas ou brasileiras respondiam por três quartos do total do comércio, com navios espanhóis carregando o outro quarto (outros europeus transportaram apenas entre 1 e 2%). Mas o tráfico transatlântico de escravos estava apenas começando: todo esse período inicial representou apenas 7% do total de africanos escravizados que seriam transportados para as Américas até o século XIX.
Ao longo da costa ocidental africana, os europeus construíram fortes que constantemente mudaram de mãos nas guerras entre nações. Europeus conhecidos como “feitores” representavam companhias comerciais e negociavam escravos com líderes africanos, para os fortes ou castelos. As nações europeias se especializaram em diferentes mercadorias na troca por escravos. Os britânicos negociavam prioritariamente com “lãs e linhos de Manchester e Yorkshire, chitas da Índia, sedas da China, e facas, espadas, mosquetes, pólvora, barras de ferro e bacias de latão de Birmingham e Sheffield, além de lençóis velhos (muito procurados), chapéus pomposos, contas de vidro e várias bebidas destiladas”, segundo Daniel P. Mannix e Malcolm Cowley. Uma vez que a maioria destes produtos era de fabricação inglesa, aquela nação lucrava duplamente no tráfico de escravos. Franceses e holandeses também se utilizavam de bens manufaturados em seus próprios países, como têxteis e ferramentas de baixo custo.Neste aspecto os portugueses estavam em desvantagem, pois precisavam comprar na Holanda a maior parte dos bens para suas trocas.
Foi na segunda metade do século XVII e durante o longo século XVIII (até 1807) que o comércio transatlântico de escravos realmente decolou. As nações cujos navios carregaram a maior parte dos escravos durante o período foram, em ordem, os britânicos, com 3.247.000 cativos (38% do total), os portugueses, com 3.061.000 (36%), os franceses, com 1.188.000 (14%), os holandeses, com 541.000 (6%), os norte-americanos, com 292.000 (3%) e os espanhóis, com 42.000 (menos de 1%).
Durante o século XVIII, toda a costa ocidental e central ocidental africana estava explorada, mas diferentes nações europeias preferiam partes específicas do continente, onde haviam estabelecido relações especiais com os governantes. Os portugueses mantinham laços com Angola e Congo – 75% de todos os africanos levados para o Brasil saíram destas regiões, em parte porque a distância entre essa região e o Brasil é menor (Salvador foi uma exceção: estabeleceu uma ligação forte com a enseada de Benin.) Os britânicos comercializaram mais ao norte da costa ocidental, sendo o Golfo de Biafra, a enseada de Benin e a Costa do Ouro suas áreas preferidas.
Surpreendentemente, cerca de 46% de todas as viagens transatlânticas de escravos foram organizadas nas Américas, e o Brasil respondeu por mais de 75% delas. Na Inglaterra, Liverpool, Londres e Bristol foram armados 30% dos navios usados nesse comércio. Os portos franceses de Nantes, La Rochelle, Le Havre e Bordeaux respondem por cerca de 12% do total. Lisboa armou 4%, portos holandeses 4% e espanhóis 1%. Quanto aos Estados Unidos, que respondem por apenas uma pequena parte (1%) do tráfico de escravos, os principais portos escravistas estavam, curiosamente, no norte: New London (em Connecticut), Newport, Bristol e Providence (em Rhode Island), e Boston e Salem (em Massachusetts).
O comércio transatlântico de escravos foi formalmente abolido pelas nações europeias entre 1803 (data do banimento dinamarquês) e 1836 (quando Portugal se tornou a última nação do continente a banir o tráfico), e pelos Estados Unidos em 1807. Mas o tráfico continuou até 1867, quando o último navio negreiro chegou a Cuba. Durante todo esse período ilegal, mais de 1 milhão de escravos africanos desembarcaram nas Américas: 70% para o Sudeste do Brasil e a maior parte dos restantes para Cuba. O comércio ilegal foi organizado principalmente a partir de portos franceses, espanhóis e portugueses. Nantes era o maior, seguido por Lisboa, mas outros portos europeus participaram – como Liverpool, Le Havre e Cádiz.
Não é possível classificar nações a partir do quão cruéis eram as condições em seus navios negreiros: a vida a bordo era sempre miserável. Em alguns casos infames, capitães pensavam que poderiam ter mais lucros resgatando apólices de seguros de escravos do que vendendo-os em seus destinos, então simplesmente atiravam africanos vivos ao mar, alegando às seguradoras que eles haviam ficado doentes e morrido.
Desde Capitalism and Slavery (“Capitalismo e Escravidão”), de 1944, livro clássico de Eric Williams, que argumentou que escravidão e comércio escravo forneceram o capital para a Revolução Industrial na Grã-Bretanha, houve muito debate sobre a lucratividade do comércio negreiro e se ele foi abolido por razões econômicas (porque a escravidão não era mais rentável do que o emprego de trabalho livre) ou por motivos humanitários. Parece claro que o comércio transatlântico de escravos desempenhou um papel fundamental não apenas fornecendo capital para a Grã-Bretanha, mas também trazendo a Europa e os Estados Unidos completamente para a época moderna.
Richard Price éprofessor emérito de Estudos Americanos, Antropologia e História do College of William & Mary nos Estados Unidos e coautor de O nascimento da Cultura Afro-americana (Editora Pallas, 2003). Seu site é www.richandsally.net.
Saiba Mais
ELTIS, David & RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven: Yale University Press, 2010.
MANNIX, Daniel P. & COWLEY, Malcolm. Black Cargoes: A History of the Atlantic Slave Trade. New York: Viking, 1962.
REDIKER, Marcus. The Slave Ship. A Human History. New York: Viking, 2007.  

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